Colunista Convidado

Mauro Senise toca Johnny Alf em 'Ilusão à toa'

quinta, 05 de novembro de 2020

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Houve antecessores, como Garoto, Vadico, Valzinho, Mario Reis, Dick Farney e Lucio Alves. E tentativas, na matriz, de fusão da música brasileira com o jazz, nos três discos “Brazilliance”, a partir de 1953, do violonista Laurindo de Almeida com o saxofonista Bud Shank, da orquestra em que atuava, do estratosférico Stan Kenton. Mas os acordes dissonantes, intervalos inusitados e sincopas inesperadas da bossa nova, só foram realmente consolidados a partir do piano, voz e composições de Alfredo José da Silva, o Johnny Alf (1929-2010). Carioca de Vila Isabel, negro, filho de uma empregada doméstica e um cabo do exército, que morreu quando ele tinha três anos, Alf contrariava o estereótipo – branco, abastado, zona sul - depois pespegado no movimento. Em 1953, (cinco anos antes do histórico “Chega de saudade” por João Gilberto), a então rainha do rádio Mary Gonçalves lançou o disco “Convite ao romance”, com nada menos de quatro composições de Alf.

Duas delas, “O que é amar” e “Podem falar”, atravessaram os tempos. 67 anos depois, ressignificadas, cintilam no CD “Ilusão à toa” (Biscoito Fino), em que o sax/flautista carioca Mauro Senise toca Johnny Alf”, com acompanhamentos instrumentais variados. O grande músico, aluno de Odette Ernest Dias e Paulo Moura, de memoráveis atuações ao lado de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Wagner Tiso e Luiz Eça, fundador do grupo Cama de Gato, já dedicou álbuns às seletas obras de Noel Rosa, Edu Lobo, Sueli Costa, Dolores Duran e Gilberto Gil. Verbete incandescente do lirismo sem derramamentos de Alf, “O que é amar” espraia-se no piano de Cristovão Bastos, enquanto Senise paira ao sax alto, com espaços para improvisos, num percurso que ultrapassa nove minutos. Mais picotada, “Podem falar” traz o solista na flauta, a bordo um grupo encorpado. Do vibrofone sambalançado de Jota Moraes ao bordado violão de Jaime Alem, baixo de Jefferson Lescowich, bateria de Danilo Amuedo e percussão de Mingo Araújo.

Pioneira na temática homoafetiva, a sinuosa “Ilusão à toa” (1961), que intitula o disco, troca apenas a cozinha rítmica, assumida pelo solitário Fabio Luna. Surpreende a introdução do arranjo de Jota Moraes, desta vez ao piano. Dois outros megaclássicos da fase inicial de Alf, os suingados “Rapaz de bem” (1956) e “Céu e mar” (de 1960, originalmente um baião, como me informou o autor) contam com acendrados arranjos de Roberto Araújo, faiscante sax alto de Senise, piano arisco de Adriano Souza e mais o pulso heterodoxo de Bruno Aguilar (baixo) e Ricardo Costa (bateria). No segundo tema, instala-se uma irresistível jam session com a adesão do sax tenor de Raul Mascarenhas, em desafiador duelo com o alto de Senise, comparado aos encontros de Charlie Parker e Lester Young, no texto de apresentação do enciclopédico Roberto Muggiati.

Irônica apropriação erudita, “Seu Chopin, desculpe” (1964), com piano e arranjo de Adriano reencarna os drible sutis do compositor na flauta do solista e eventuais pontuações do baixo de Bruno. Lançada por Sérgio Mendes em seu “Dance moderno”, de 1962, a estupenda parceria de Alf com o gaitista Mauricio EinhornDisa” desliza no sax alto de Senine, em diálogo com o piano de Jota Moraes, também autor do arranjo. Mesmo arredio a badalações, o homenageado participou de dois festivais, na era mais competitiva dos certames. No Festival Internacional da Canção, de 1968, concorreu com “Plenilúnio”, revisitada no disco no encontro intimista da dupla Gilson Peranzetta (piano e arranjo) e Senise no alto.

E o célebre da TV Record de 1967, que desvelou “Ponteio” (Edu Lobo/ Capinan), “Domingo no Parque” (Gilberto Gil), “Roda viva” (Chico Buarque) e “Alegria, alegria”, Caetano Veloso. Mesmo que sua bossa/balada “Eu e a brisa" defendida pela cantora paulistana Márcia tenha passado quase despercebida, a exposição a grandes platéias fez com que ela se tornasse o maior sucesso popular do compositor. É uma das duas únicas faixas cantadas do disco, levada na voz bem colocada de João (filho de Mauro) Senise

A outra exceção é uma preciosidade. O próprio Alf, ao piano, entoa a erudita “Melodia sentimental”, de Villa Lobos, com inserções posteriores do “Prelúdio no. 3”, do mesmo autor, na flauta em sol de Senise. Um grand finale para um encontro com tantos ases.

Tárik de Souza

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