Sobre a Canção

O Palimpsesto Sertanejo de Makely Ka

quarta, 01 de maio de 2024

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Makely Ka é um artista em movimento. Embora cada um dos seus trabalhos e álbuns seja um todo autônomo, faz mais sentido avaliarmos cada um como parte de um caminho que ele percorre, um caminho que não é exatamente linear, mas antes de ampliação de horizonte, como círculos concêntricos. Assim, depois de um primeiro álbum coletivo (com Pablo Castro e Krystoff Silva, mas também com boa parte da cena musical de Belo Horizonte), “A outra cidade”, em 2004 e um álbum de rock em 2007, “Autófago”, Makely mergulhou no sertão em 2014 com o “Cavalo Motor” (e ainda no álbum instrumental de viola “Rio Aberto”), e agora, em “Triste Entrópico”, ele segue sertanejo, mas amplia e consolida sua visão, assim como, ao visitar pela segunda vez um lugar, nosso olhar consegue alcançar detalhes que passaram despercebidos e nossa visão de conjunto se torna mais nítida.

“Cavalo Motor” teve sua ignição na viagem empreendida por Makely, reconstituindo de bicicleta o “Itinerário Tartarana” (uma das canções do álbum) percorrido em “Grande Sertão: Veredas”. O álbum não seguia à risca este itinerário e nem era um álbum conceitual. Mas agora em “Triste Entrópico” o roteiro da viagem é inteiramente planejado por Makely. E se em “Cavalo Motor” a sonoridade de violas e percussões sofre interferências eletrônicas diversas e a guitarra particularíssima de Arto Lindsay, desta vez estes recursos são dispensados em favor de uma sonoridade mais direta (mas com exceções, a serem tratadas adiante). Em compensação, a poética de Makely segue afiada e cumpre por sua vez a função de atualizar o sertão, ultrapassando os limites alcançados no álbum anterior - ou antes, partindo do ponto em que este nos deixara.

A escrita de Makely, mesmo desde “Autófago” e quando referenciada à cidade e ao mundo urbano, já trazia em si estruturas formais típicas do interior e do Nordeste - e quando digo escrita, me refiro tanto à literária quanto à musical. Por um lado, a organização estrófica e de rimas e escolha das metrificações dialoga com tradições brasileiras diversas, assim como a poética de Siba (mas este com um maior rigor de uso das metrificações tradicionais e Makely sem o compromisso da forma estrita); já as melodias e acompanhamentos de violão de Makely passeiam livremente por modalismos, num estilo particular desenvolvido lentamente e que se mostra ainda mais desenvolto aqui, a ponto de, permitir que, na faixa título, o movimento do arranjo (em compasso quinário!) se sobreponha a uma melodia quase estática, mostrando uma visão composicional que vai bem além do trinômio letra/melodia/acordes.

E por outro lado, a escrita de Makely se atualiza dentro da tradição de duas formas: uma, na narração de um sertão não idealizado, mas atual e real, em que o agro não é pop, mas destruidor, - “Vou me contaminando desse estado / Do agronegócio e tanto fertilizante”, canta ele na faixa título - e muito menos óbvio, em que o já cantado e consagrado pode ser um pouco deixado de lado em favor de locações e visões diversas; e além disso, sua poética dialoga não apenas com o sertão, mas com diversos outros cantos, sejam do sertão ou não - ou ampliações do sertão por parte de seus autores ou por parte da apropriação deles feira por Makely.

A primeira canção, “Vento Vivo”, referencia o “Vento Bravo” de Edu Lobo e Paulo Cesar Pinheiro, inclusive na divisão rítmica das primeiras estrofes. Já “Suburbiando”, a segunda, ressoa “A Violeira”, de Tom Jobim e Chico Buarque e interpretada por Elba Ramalho no filme “Para viver um grande amor”, com a diferença em que ela termina sua epopeia no Rio de Janeiro e nem trator nem alavanca a arrancam de lá, enquanto ele termina em Salvador e, ao descobrir-se filho de Exu, orixá dos caminhos e encruzilhadas, abre a possibilidade de não parar lá e continuar seu caminho adiante, sem porto nem pousada.

Assim, Makely se deixa levar pelo vento e passeia não apenas pelo Brasil ou pelo sertão, seja de que tamanho for, mas também pelo imaginário do sertão, igualmente expandido. Além das menções mais ou menos sutis mencionadas acima, algumas outras são francas e diretas: A “Feira de Araçuaí” rebate diretamente as concorrentes já cantadas em busca de sua própria identidade:

Não é Caruaru e nem é Acari / É a feira de Araçuaí
Não é Mangaio, não é São Cristóvão / Não é a Feira Hippie nem a do Açaí

Dois diálogos em particular merecem um olhar mais detalhado. O primeiro (não na ordem das faixas, apenas em nossa atenção) é a “Derrubada do Marco Marciano”, resposta de Makely à canção “O Marco Marciano”, de Lenine com Bráulio Tavares, gravada pelo cantor em seu álbum “O dia em que faremos contato”, de 1997. “O Marco Marciano” narra a edificação deste monolito kubrickiano na superfície de Marte, com “Torreão, levadiça, raio-laser / E um sistema internet de radar”. A canção se vangloria da inexpugnabilidade de seu marco, numa auto-louvação típica do repente nordestino - e a forma da canção, em contraste com o tema, é exatamente a de um repente, acompanhado apenas da viola de 10 tocada por Lenine.

Pois esta é a deixa aproveitada por Makely: pois a auto-louvação, no repente, pede um desafio. E a resposta de Makely então segue o mesmo esquema de métrica e rimas escolhido por Bráulio para narrar como este marco seria destruído, e usando das mesmas hipérboles pluriculturais: se Bráulio compara seu marco com com “os muros Ciclópicos de Tebas / E as fatais cordilheiras da Espanha” e o diz esculpido “Pelos rudes martelos de Vulcano”, Makely responde na mesma moeda, comparando sua nave com a “Carruagem de Arjuna no deserto / A quadriga de Apolo, sol dos gregos” e ataca o marco “Com um martelo forjado em Urano, feito de liga de aço unobtanium.”

A disputa sertaneja/estelar, no entanto, além de fazer o sertão estender não apenas aos confins do mundo mas ainda a outros mundos, mas serve também para situar Makely e o álbum esteticamente, inscrevendo-o em uma linhagem de revisita da tradição projetando-a na direção do futuro. Uma ideia que tem muitas vertentes: o afrofuturismo, por exemplo, ou o álbum de Thiago Thiago de Mello “Amazônia Subterrânea”, que em minha análise batizei, entre a blague e a seriedade, de amazônico-futurismo. Makely não chega a estabelecer aqui as bases teóricas do sertanejo-futurismo, e nem é esta sua intenção. Mas a ponte (ou o buraco de minhoca) estabelecida com a canção de Lenine serve para abrir esta possibilidade dentro do álbum, como um contraponto à destruição predatória do capital, demarcando um território onde este não alcança; e também para situar Triste entrópico em um lugar não apenas estético, mas até mesmo político, ou reivindicar este lugar. Assim como a “Feira de Araçuaí”, no Médio Jequitinhonha, ao se diferenciar de suas, digamos, co-irmãs, reivindica um lugar entre elas.

Mas ainda mais complexa e cheia de desdobramentos estéticos e de sentido são as duas menções de Makely à obra de Caetano Veloso. Em “Toma tento”, ele inclui como música incidental “Araçá Azul”, última faixa do álbum de mesmo nome de Caetano, e o mais experimental de sua carreira. “Araçá Azul”, o álbum de 1973, representou uma revisita de Caetano aos princípios mais radicais da Tropicália, mas também ao mesmo tempo ao repertório da cultura popular, discutindo a identidade brasileira com um novo sentido estético. Não por acaso, o álbum é aberto pelo canto de Dona Edith do Prato, conterrânea de Caetano em Santo Amaro da Purificação, na cantiga de domínio público “Viola meu bem”, cujos primeiros versos são “Vou me embora pro sertão.”

E a outra menção é mais que uma menção. A canção “Triste Entropia” é construída a partir da estrutura de “Triste Bahia”, gravada por Caetano em 1972 no álbum “Transa”. O diálogo entre ambas é tão próximo que a canção de Makely aproxima-se de uma paráfrase, mantendo não apenas a métrica dos versos mas as próprias rimas em “ado” e “ante”, com versos que se aproximam da sintaxe dos originais, apontando em outras direções: de “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante” para “Triste entropia resignificante” e de “Tanto negócio e tanto negociante” para “Do agronegócio e tanto fertilizante”

Porém, “Triste Bahia” não é uma composição apenas de Caetano, mas sim sua versão musicada das duas primeiras estrofes de um soneto de Gregório de Matos, o poeta português radicado em Salvador no século XVII. Gregório que, por sinal, é também musicado no “Araçá Azul”, em “Gilberto Misterioso”. Isto confere a “Triste Entropia” uma intertextualidade mais recuada no tempo, pegando carona na relação traçada por Caetano entre a Tropicália e o Barroco e levando-a ao sertão ainda mais decididamente que Caetano o fizera. Pois o lamento da decadência baiana (ou seja, de Salvador) feito pelo conservador Gregório e repaginado por Caetano num contexto ditatorial (mas não apenas) é levado por Makely até o neoliberalismo predatório que exporta as montanhas de Minas Gerais in natura e devasta o bioma do cerrado para plantar soja.

A escolha de Makely do Caetano Veloso de 1972/73 tem também sua significância, em especial por Transa ser o segundo álbum gravado por ele quando exilado pela ditadura na Inglaterra (o primeiro, de 1971, se encerra com uma lancinante gravação de “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, tornada de canto do migrante sertanejo para canção de exílio). Outra vez os significados se sobrepõem, num movimento que pode ser visto de várias formas dependendo do ponto de vista, como na experiência da relatividade restrita: é o sertão que se expande ao Atlântico Norte? Ou é Makely que é um exilado do/no sertão, estranho e refratário a suas transformações deletérias?

A letra de “Triste Entropia” mereceria ela própria uma análise mais detalhada, sendo a que deu a partida para o projeto do álbum e estabeleceu seus parâmetros. Menções ao “Guesa Errante”, poema de Sousândrade, e o vaqueiro Grivo, personagem de Guimarães Rosa, incluem-se na rede de relações tecida por ela. O Guesa, adolescente que seria sacrificado aos deuses por seu povo andino, escapa e se vê subitamente em Wall Street, com seus perseguidores sacerdotes convertidos em capitalistas. Já o Grivo é enviado por seu patrão, o vaqueiro Cara de Bronze, em missão de viagem para... para quê? Para lhe trazer “o porquê de tudo nessa vida”. Grivo é comparado a Prometeu por Makely, ávido de saber os segredos dos deuses. Makely canta a perda de sentido do sertão traçando-lhe paralelos metalinguísticos e interculturais, e enquanto isso viaja na direção contrária da entropia, buscando na linguagem sua contínua reconstrução.

Como música incidental em “Triste Entropia”, Makely repete o canto de capoeira entoado por Caetano na gravação de “Triste Bahia”, porém não como Caetano o canta, e sim remetendo à gravação original de Mestre Pastinha. Pastinha é mencionado por Caetano na letra (“Pastinha já foi à África / pra levar capoeira do Brasil”, canta Caetano, e mesmo estes versos são de Pastinha, gravados no álbum “Capoeira Angola - Mestre Pastinha e sua Academia”, de 1969). Os versos cantados por Makely são:

Eu já vivo enjoado
De viver aqui na terra,
Oh mamãe eu vou pra lua,
Falei com minha mulher,
Ela então me respondeu,
Nós vamos se Deus quiser.

Esta é, portanto, a segunda menção interplanetária de Triste Entrópico. E não deixa de ser interessante notar seu contraste com o canto de Dona Edith do Prato no início de “Araçá Azul” – ela voltando para o sertão – e Makely também, conforme canta em “Regresso ao Agreste” – e Pastinha indo à Lua – e Makely a Marte. O sertão de Makely parece sempre apontar para fora, um sertão em movimento - em "Cavalo Motor", Makely se movia pelo sertão, agora ele retorna ao sertão, mas também é o sertão que se move.

Mas se “Triste Entropia” referencia “Triste Bahia”, “Triste Entrópico”, apenas com a ligeira mudança de sufixo, passa a referenciar o clássico livro do antropólogo Claude Levi-Strauss em que, entre idas à Índia e reflexões sobre o budismo e o islamismo, trata em quatro capítulos dos povos guaicurus, bororos, nambiquaras e tupi-kawahib - nenhum dos quatro é mencionado, mas poderiam estar, na letra de “Ex-extintos”, em que Makely lista povos originários que desapareceram, estão em vias de, ou, em casos raros, conseguiram se reestruturar e sobreviver contra todas as possibilidades, já que as forças que devastam o sertão também se voltam contra eles.

Porém, mais que o assunto tratado no livro, o título “Tristes Trópicos” tornou-se um epíteto grudado à pele do Brasil tanto quanto outro título célebre, o de Stephan Zweig – “Brasil, país do futuro”. A referência a esta tristeza, já vista no soneto de Olavo Bilac “Música Brasileira” (no verso “flor amorosa de três raças tristes”), assim como a previsão de Zweig, torna-se algo que é simultaneamente uma bênção e uma praga, uma característica da qual parece não ser possível se livrar. E com a passagem de “trópico” para “entrópico” esta tristeza se torna ainda mais patente, diante de um desastre anunciado, como um futuro que se esfacela. O sertão se dissolve e se recria, em Makely balança entre o pessimismo e o futurismo.

Mas se tanto falamos das intertextualidades deste trabalho, e ainda surgirão outras, é preciso voltar ao que as embala, pois não se trata de uma obra literária e muito menos um tratado acadêmico, mas um álbum de música popular, e é nela que ele se escora para tudo isso. Falar por exemplo, da voz de Makely, que com seu tom algo gutural é uma espécie de Arnaldo Antunes sertanejo. A voz de Makely, sem se a de um cantor consumado, acrescenta um tom de credibilidade ao que é cantado para além da autoralidade. Makely, em “Triste Entrópico”, mostra uma sutil evolução técnica ao revelar os desenhos de melodias mais sinuosas. Mas a de “Desanuvio” com saltos melódicos e curvas perigosas, ele deixa a cargo de Ná Ozzetti. É preciso destacar também os arranjos de metais em algumas faixas feitos por Maurício Ribeiro, músico mineiro da geração de Makely e falecido precocemente em abril de 2023. 

O núcleo instrumental do álbum está no violão de Makely, frequentemente secundado por outro nas mãos de Tabajara Belo ou Gustavo Souza, o baixo de Paulim Sartori e as percussões múltiplas de Yuri Vellasco, na maioria das faixas. Sobre esta base vão sopros e outras participações e interferências. Chico Neves acrescenta efeitos sutis em “Vento vivo” e “Acho é pouco”, e André Cabelo na “Derrubada do Marco Marciano”, aqui acompanhando apenas a viola de 10 de Makely - neste caso muito a propósito, estabelecendo no contraste de sonoridades a dialética do sertão marciano.

O roteiro de canções de “Triste Entrópico” não deixa de sugerir uma viagem, mas o “Vento vivo” conduz o ouvinte por um itinerário menos geográfico (ou astronáutico) e mais - difícil fugir da palavra - conceitual, no sentido de várias vertentes de país se fazerem presentes. Assim, além dos povos indígenas listados em “Ex-extintos”, Makely reconta em “Chachá” a história de Francisco Félix de Souza, maior traficante de escravos brasileiro e praticamente um rei no Daomé na virada dos 1800, indo ao passado como contraponto ao futurismo de outras canções. E em “Ajayô”, canção-saudação à cultura afrobrasileira, entre orixás e autoridades religiosas como o babalaô, Makely inclui na letra uma saudação ao Metá-metá, trio formado por Juçara Marçal, Kiko Dinucci e Thiago França cujo trabalho é fortemente estribado nas raízes africanas da música brasileira, mas com uma sonoridade contemporânea e mesmo jazzistica ou roqueira em alguns momentos. Sua presença na letra é como que uma gota de futuro temperando a tradição.

A viagem de Makely termina, e tenho a impressão de que não poderia ser de outro modo, em Canudos. “Os Sertões”, última faixa do álbum, toma emprestado o título do clássico de Euclides da Cunha, aproveitando para lembrar que o sertão não é só um, são muitos. E mais uma vez não perde a oportunidade de trazer o passado para o presente, com referências a Stalingrado, bastião da resistência contra os nazistas na Segunda Guerra Mundial, e à Guerra do Vietnã, com “jagunços vietcongs” e a menção a Võ Nguyên Giáp, o general que derrotou os EUA. Se Stalingrado e Hanói sobreviveram de fato, Canudos persiste na memória. “Do leito do Vaza-Barris”, último verso do álbum e córrego em cujas margens Canudos foi fundada, ele segue em movimento como um rio faz, e nunca nos banhamos no mesmo. “Contra o pacto caduco / Do agro gorando espaço” (versos de “Eu acho é pouco”) Makely estende mais uma vez o sertão, ou os sertões, para além do alcance de seus predadores, traçando uma teia de relações que o expande para muito além de seus limites geográficos. O sertão é do tamanho da ideia.


Triste Entrópico está disponível para escuta em todas as plataformas com exceção do Spotify a partir do dia 1º de maio, e desde já no Bandcamp, plataforma gratuita de streaming – uma das muitas militâncias de Makely no sentido da democratização da cultura e contra os abusos cometidos pelas plataformas pagas contra os artistas.

Ouça: https://makelyka.bandcamp.com/album/triste-entr-pico

https://immub.org/album/triste-entropico


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