Música

A paixão segundo Maria Bethânia

“Viver é Sempre Questão de Vida e Morte, Daí a Solenidade.” Clarice Lispector

sábado, 14 de agosto de 2021

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CENA 1

Maria Bethânia é acima de tudo uma criadora. Se interpretar consiste em cantar, dar feição teatral, ela vai além, porque interpretar significa também revelar intenções, criar sentidos. Seus discos são obras – conjuntos coerentes, forma e conteúdo indiscerníveis, realizações coesas do trabalho e da inspiração, da intuição e do projeto. Em seus álbuns – assim como nos espetáculos – reconhecemos as linhas de força construídas ao longo da extensa carreira e deparamos com o apetite genuíno pela reinvenção. Cada obra construída por Bethânia encerra uma poética – a sua –, na qual repercutem escolhas estéticas e princípios éticos. Mostra-se aí, em sentido amplo, uma personalidade.

Como é da natureza das obras musicais, tudo se dá em colaboração, em companhia. Gravado entre setembro e outubro de 2020 e em maio de 2021, no estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio de janeiro, Noturno tem direção musical e arranjos de Letieres Leite e produção musical de Jorge Helder, este último, baixista que integra o esplêndido conjunto instrumental reunido para o disco.

Noturno – não significa ausência de luz. Refere-se, antes, à noite – quando, não raro, luzes se acendem. No roteiro construído por Maria Bethânia, assistimos – vivemos com ela – a um complexo jogo de luz e sombra. A primeira dá cor e forma à alegria, à esperança, ao amor, à paz, à amizade, à fé. A segunda imprime os contornos ásperos da solidão, da tristeza, do abandono, da traição, do terror. Mas tais experiências não surgem aqui isoladas, estanques. Ao contrário, complementam-se, fundem-se, vibram umas nas outras, lutam entre si. Não é por acaso que o belo nome do último espetáculo de Bethânia“Claros Breus” (2019) – dava a ver a tensa relação entre luz e sombra que retorna agora em “Noturnos”. E sendo ela uma criadora enraizada neste formidável berço do barroco tropical –a Bahia –, não seria exagero ver no jogo entre a claridade e atreva uma tensão barroca. Tudo isso, no entanto, é bem mais que projeto intelectual – as sofisticadas criações de Bethânia nascem de sua sensibilidade inteligente, ativa e atenta.

Em Noturno, os clarões e as fagulhas, assim como a vasta escuridão e as pequenas zonas opacas, dizem respeito tanto às experiências íntimas e subjetivas quanto ao quadro amplo das vivências sociais. Estão em cena, portanto, as vicissitudes e o júbilo amoroso, mas também a intensa alegria e a dor vividas coletivamente. A experiência com o obscuro nasce de uma consciência dividida. Aqui, a luz é também uma lucidez exasperada.

O canto de Bethânia é ele mesmo um jogo – arriscado,veemente – de claro-escuro, um corpo em dramática vibração. Vou ao seu primeiro álbum, lançado em 1965, no qual ela canta “Sol negro”, de Caetano Veloso, que traz uma imagem reveladora: “O meu canto é a luz de um sol negro”. Bethânia –tão solar – é íntima da noite. Basta lembrar que “Drama – 3ºato” (1973), registra em disco o espetáculo “Drama – luz da noite”. Em “Pássaro da manhã” (1976), ela canta, em contraste com o nome do álbum, o “mundo da sombra, caverna escondida,onde a luz da vida foi quase apagada” (“Balada do lado sem luz”, Gilberto Gil). Os exemplos seriam muitos. E seria preciso lembrar que Bethânia traz insistentemente em seu repertório a lua e as estrelas – como adoradora, ou ainda, como uma sacerdotisa.

Em Noturno, tudo é instável – o sol brilha, mas logo vem a noite, inquietante; e esta também não dura. Na intrincada paisagem, cruzam-se superfícies, brilhos, texturas, trilhas sinuosas. Os momentos de iluminação e de sombreamento por vezes aparecem explícitos. No primeiro caso: “É nota tão clara bem na minha mão” (“O sopro do fole”), “Bota pavio no candeeiro” (“Lapa santa”), “Gente que acredita / que o sol sempre há de brilhar” (“De onde eu vim”), “No sé qué sueño do rao/ cruzó por la mente mía” (“Vidalita”), “O amor de novo /acende as luzes da cidade”(“Música música”), “Vaga-lumes nas crateras” (“Luminosidade”). No segundo caso: “Apague essa luz/ que eu quero ficar sozinha” (“Bar da noite”), “O amor não gosta mais de mim / Nunca mais vi seu clarão” (“A flor encarnada”), “A noche mientras dormia” (“Vidalita”). E há outros sóis e outras nuvens.


Foto: Jorge Bispo

CENA 2

O disco se abre com “Bar da noite”, joia do repertório da grande Nora Ney, no qual Bethânia já foi buscar “Preconceito” ("Maria Bethânia", 1969) e “Se eu morresse amanhã de manhã” (“A tua presença”, 1969). Se a noite diz respeito à atmosfera emotiva,traz também a ambiência noturna dos bares, boates e restaurantes, espaços privilegiados da vida boêmia, nos quais se viveu intensamente a canção popular. Assim, “Bar da noite”,como abertura de Noturno, traz na voz de Bethânia a memória de Isaurinha Garcia, Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Dolores Duran, Nubia Lafayette, mas também de Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Lucio Alves – cito apenas alguns daqueles que tiveram peças de seus repertórios reinterpretadas por Bethânia. Nomes fabulosos, sim, da chamada “época de ouro” da canção popular, quando –paralelamente ao regozijo solar do carnaval – o ouro lunar brilhava sobre o fundo nostálgico e mágico da noite. Lembro-me do registro ao vivo de “Recital na boite Barroco” (1968). Lembro-me também de que “A cena muda” (1974) é “dedicado aos cantores do rádio”. Na emocionante abertura de Noturno, quero ver também uma homenagem implícita aos compositores que brilharam nas décadas de 1920 a 1950, como se, junto aos nomes de Bidu Reis e Haroldo Barbosa, os autores de "Bar da boite", cintilassem os daqueles que já ganharam a voz de Bethânia, como Noel Rosa, Dorival Caymmi, Herivelto Martins, Luiz Peixoto, Custódio Mesquita, Lupicínio Rodrigues, Antônio Maria, Mário Lago, entre outros. Canção romântica, “Bar da noite” soa especialmente reservada: o piano de Zé Manoel, delicadíssimo, suave, parece contradizer tudo o que de mais pungente se diz na letra da canção, como se notas e acordes mentissem: “eu sou mais feliz assim”. Desse modo, vem a primeiro plano mais a melancolia e o silêncio do bar vazio do que a exacerbação da dor. A voz de Bethânia repercute nítida como a fumaça de um cigarro desenhando-se contra a pouca luz do bar. A interpretação é contida, mas intensa. Para usar uma expressão de Carlos Drummond de Andrade: “paixão medida”.

Segue-se “O sopro do fole”. É quase como se a canção de exílio nordestina se confirmasse aqui como um gênero litero musical, que tem como nomes maiores Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Outra confirmação é o talento de Zeca Veloso. O violão de Pedro Franco é deslumbrante, com ornamentos precisos, deixando lugar para os silêncios. No clima de doce fragilidade, Bethânia canta como o passarinho magoado da letra, que faz da canção sua casa. O acordeon de Toninho Ferragutti respira emocionado e garante a atmosfera melancólica.

“Lapa santa”, já lançada em single do álbum, é uma canção de paisagens generosas, horizontes bem desenhados pela melodia, que se estende líquida e luminosa na noite. Bethânia move-se à vontade, mas com a solenidade necessária, entre rezas, devotos, procissões, oratórios. É também uma tocante homenagem a Francisco Guarany (1884-1985), célebre artista baiano, considerado o mestre maior na arte de talhar carrancas para as proas das barcas, tradição fantástica das águas do São Francisco. A canção é uma parceria de Paulinho Dafilin – paulista, mas santo-amarense de coração e de vida, melodista brilhante, violeiro de primeira linha – com Roque Ferreira. Da mesma parceria, Bethânia já gravou a belíssima, puríssima, “Casa de caboclo” em “Quintais” (2014). Falando em entrevista sobre “Pássaro proibido” (1977), Fauzi Arap afirmou que Bethânia “foi a primeira cantora a cantar – não por modismo; por fé – a música religiosa do povo brasileiro.” (O Globo,13/01/1977). Bethânia seguiu assim, iluminando seu canto com sua fé, e fez desse casamento insolúvel um modo de representar um traço fundamental do Brasil.

“De onde eu vim”, agora assinada apenas por Paulinho Dafilin, abre-se com a esplêndida percussão de Marcelo Costa – é o indício de outras belezas por vir; e tal promessa não vem por acaso, já que a letra fala de uma “batucada anunciando o carnaval”. É um samba contagiante, ensolarado. Se aqui se trata de uma despedida da terra natal, nada lembra exílio ou perda. Ao contrário – o novo lugar a que se chega é uma festa. Mesmo a saudade é alegre.

A “parceria” de Bethânia e Adriana Calcanhotto vem de longe, e sempre nos dá momentos de grande beleza. Primeiro single a anunciar o disco, lançado em 25 de junho nos aplicativos de música, “A flor encarnada” foi apresentada ao público ainda antes, no espetáculo “Claros breus”. Mas se lá a composição de Adriana Calcanhotto ganhara o tratamento de um samba-canção, ela ressurge agora reencarnada em novo molde – muito mais descarnada. O que resulta excepcional nesta gravação é uma espécie de desencontro entre a interpretação de Bethânia e o piano de Zé Manoel: o músico, em vez de sublinhar os contornos afetivos da canção – endurecendo-os com pinceladas fortes e dramáticas –, opta por amenizar a expressão, deixando que Bethânia cante quase em perfeito estado de solidão. O resultado é pungente e noturno.

Maria Teresa Martin Cadierno – conhecida apenas por Mayte Martín – é uma compositora e cantora catalã consagrada no universo da música flamenca. Em “Vidalita”, ela recorre a um estilo de canção flamenca chamado exatamente “vidalita”, cuja longa e complexa história une Espanha e países hispano-americanos. A composição de Mayte enquadra-se numa tradição criada pelo grande Manuel Escacena, que adaptou ao flamenco uma canção argentina gravada por ele em 1928, na qual incorporou à letra a própria palavra “vidalita”. O canto de Bethânia alcança uma concentração máxima. Sua interpretação “vai por dentro”, dispensa os adornos vocais do flamenco, mas não deixa de fazer ecoar, discreta e comedidamente, certas características do cante, graças aos ataques firmes, a alguns vibratos e ao brilho áspero da voz. O violão de João Camarero segue no mesmo caminho de síntese, numa operação que parece dar corpo à dor, sem nenhum alarde e sem os golpes dramáticos do flamenco. O resultado da união entre voz e instrumento é uma espécie de caminhada sonâmbula, como num sonho, por uma paisagem deserta e silenciosa.

“Prudência”, de Tim Bernardes, é um bolero que se confunde perfeitamente com os clássicos do gênero. Zé Manoel, João Camarero, Jorge Helder e Marcelo Costa respondem com brilho às exigências da canção, enquanto Bethânia move-se com desenvoltura, como se a canção fosse um daqueles sucessos que ouvira no rádio quando menina. A intensidade da paixão vale pelo que tem de luz e sombra.

“Música música” é mais uma entre as muitas belezas criadas por Roque Ferreira e cantadas por Bethânia. Roque é um compositor plural, que circula por vários gêneros e modos, bastando lembrar, entre outras, “Guriatã” e “Domingo” (“Tua”, 2009), “Santa Bárbara” e “Encanteria” (“Encanteria”, 2009), “Casablanca”, “Fado” e “Barulho” (“Oásis de Bethânia”, 2012). Aqui, tudo é esperança, renascimento, luz – ou ilusão de luz.

“Cria da comunidade” é um samba primoroso, cantado por Bethânia com Xande de Pilares, autor da canção em parceria com Serginho Meriti. O duo é perfeito, exibe uma alegria contagiante. Aqui está o Brasil luminoso, o quadro é fulgurante, afirmativo. O samba faz a crônica da superação, da difícil vitória do povo brasileiro acima das adversidades. A luz poderia ser mais intensa? É uma bela história de amizade. A “janela da composição” é a do trem, mas também a da própria canção, epor ela entra a luz do sol e a luz de uma vida conquistada diariamente.

Mas, sob sol do Rio de Janeiro, do Brasil, pode ter lugar a trevada tragédia pessoal e social. Assim, com “29 graus celsius, / céu claro”, surge o momento mais sombrio e absurdo do disco: “Dois de junho”. A canção de Adriana Calcanhotto, inédita, foi apresentada por ela mesma em uma live (agosto, 2020).

Na gravação de Bethânia, a interpretação dramática, crua, é sublinhada com força pelo arranjo de Letieres Leite, com destaque para a guitarra de Pedro Sá. Mesmo sendo uma espécie de crônica – com nomes, referências e detalhes descritivos – a canção vai além, e graças aos recortes e à montagem, como em uma narrativa cinematrográfica, constrói a síntese poética dolorosa de um episódio que revela o pior de nós. Realidade e pesadelo fundem-se na escuridão.

Mas Bethânia não nos deixaria no escuro. “Luminosidade” é mais um formidável encontro entre ela e Chico César. O arranjo de Letieres Leite cria uma atmosfera mágica, redentora. Tudo flutua leve. As cordas transferem a canção para o sonho.

O disco se encerra com a leitura de fragmentos do poema “Uma pequenina luz”, de Jorge de Sena – um dos grandes poetas portugueses do século XX. Todos sabemos que Bethânia contribuiu decisivamente para a popularização de Fernando Pessoa no Brasil; que dedicou todo um disco a Sophia de Melo Breyner Andresen (“Mar de Sophia”, 2006); e que outros autores portugueses aparecem em seus espetáculos musicais e recitais, mas, agora, pela primeira vez, dá sua voz a Jorge de Sena. A leitura ao final, a capela, é um fecho perfeito para tudo o que repercute ao longo de "Noturno". Está tudo lá: a pequenina luz, no meio de nós, e os que raivosamente assopram, desejosos de que a treva se espalhe. Mas, Bethânia afirma, com Sena, a presença da luz – ainda que pequenina – quando tudo parece escuridão. Uma declaração política? Uma declaração de fé? De esperança? Cada um ouvirá como quiser. Uma coisa é certa: a voz de Bethânia é um clarão.

Zuza Homem de Mello – viva! –, que tantas vezes escreveu sobre discos de Bethânia, diria que Noturno é uma obra-prima. Como sempre, estaria certo.

Boa-noite pra quem é de boa-noite; bom-dia pra quem é de bom-dia.

EUCANAÃ FERRAZ

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