Resenha de Samba

Vizinha Faladeira e a Praça Onze dos anos 1930

sexta, 15 de março de 2024

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Escola de Samba se tornou mitológica ao unir irreverência, luxo e valentia

A Escola de Samba Vizinha Faladeira foi fundada no ano de 1932 no bairro da Saúde, região portuária do Rio de Janeiro, debaixo do manto de estrelas numa noite de carteado, por iniciativa do malandro David da América e do batuqueiro Saturnino Ferreira. David regressava de um ensaio na Estação Primeira de Mangueira e, ainda embriagado com as melodias de Cartola e os versos de Carlos Cachaça, sonhou ter uma Escola também em seu bairro. 

Os fundadores da Vizinha David e Beringa com bandeira do Carnaval de 1939 | JB, 1979

David, então, apresentou a ideia a Saturnino, que se entusiasmou imediatamente. Nessa data, a noite virou dia e o desenrolar desse sonho entrou definitivamente para os anais da História do Carnaval brasileiro, com a fundação da Escola de cores azul e branco. Filha de sambistas e batuqueiros da Cidade Nova, a Vizinha era composta em sua maioria por negros, mas também agrupava italianos e alguns portugueses. Em sua meteórica existência inicial, já que após o Carnaval de 1940 enrolou a bandeira, a agremiação conquistou títulos, o respeito e a reverência dos maiores sambistas que já existiram. 

Após essa parada, as atividades da Vizinha Faladeira foram retomadas no ano de 1989 e todos os sacrifícios, vivências e empenho das novas gerações dessa etapa moderna da agremiação estão retratados na recém-lançada série documental “Conversas com a Vizinha Faladeira” (2ª temporada), com direção de Bia Marques, ABC, DAFB, Leo Torres e Nico Silva. A pesquisa é de Chico Serra, Leo Torres e Luiz Torres. Confira a seguir pequeno histórico dos primórdios da Vizinha Faladeira.

Bambas da Vizinha

Na Vizinha Faladeira despontavam grandes bambas do mundo do Samba. Pra começar, é preciso dizer que na Escola da Praça Onze saía ninguém menos que Oliveira da Cuíca, um dos mais geniais cuiqueiros dos primórdios do Samba e que também já havia feito parte da pioneira Deixa Falar, do Estácio. A Escola não estava para brincadeira e seus sambistas comprovavam isso.

Oliveira da Cuíca foi um dos célebres sambistas da Vizinha Faladeira

Em seu time de compositores, a Vizinha Faladeira tinha Enéas Brites, que em 1955 compôs o hino da Estação Primeira, “Exaltação à Mangueira”. Infelizmente, nenhuma melodia ou letra composta para a Vizinha por Enéas Brites (que era cunhado de David) ficaram para a posteridade. Era um tempo em que o desinteresse na produção musical das Escolas era grande e raramente um compositor desse universo conseguia superar a barreira do mercado fonográfico. 

Porém, ao que parece, a honra de um sambista oriundo da Vizinha Faladeira ter um samba seu gravado pela primeira vez coube ao compositor Haidon Nogueira, em 1949, com “Que Vida é Esta”, na voz de Flora Matos. Haidon, que também assinava apenas como H. Nogueira, foi gravado por grandes intérpretes de nossa música, como Roberto Silva, Risadinha, Noite Ilustrada, Dalva de Oliveira, Jorge Veiga e Zé Keti.

Além disso, a Vizinha talvez tenha sido a primeira Escola de Samba a apresentar como Diretor de Harmonia uma mulher. Isso em plena década de 30, quando o machismo predominava de forma muito mais contundente. Ocupar o mais importante cargo musical de uma Escola requer autoridade e respeito, e era justamente isso que Dida, a Diretora de Harmonia da Vizinha Faladeira inspirava.

Contemporânea de Tia Ciata (1854-1924), Tia Carmem (1879-1988) pode ter sido a mais longeva das Tias Baianas do início do século XX. Grande aglutinadora da cultura afro-brasileira na Praça Onze, Tia Carmem também fez parte do time de bambas da Vizinha Faladeira.

A baiana Tia Carmem desfilava na Vizinha Faladeira nos anos 1930

Outra mulher a se destacar na história da Vizinha foi Olga Martins, que no ano de 1934, brigou de igual para igual no primeiro concurso de Rainha das Escolas de Samba. Não venceu, já que o primeiro lugar coube a Vilma Campos, da Escola de Samba Recreio de Ramos. Mas ficou com um louvável segundo lugar, demonstrando que a Vizinha Faladeira estava no páreo.

No ano de 1938, a Vizinha fez bonito na disputa de Cidadão Samba, premiação para o maior sambista vivo entre todas as Escolas de Samba daquele tempo. Havia apenas 2 anos de disputa, sendo que em 36 o título ficou com Mano Eloy da Deixa Malhar e em 37 com Paulo da Portela. Nos primórdios deste concurso, cada Escola tinha direito a um voto, o que significa que o bamba contemplado era aclamado pelo voto dos próprios sambistas, o que pouco depois se modificou. O Cidadão Samba de 1938 foi Antenor Gargalhada, mas logo em seguida, com um honroso 2º lugar, veio Benedito Correia, da Vizinha Faladeira

Os sambas de Haidon Nogueira, Enéas Brites, Benedito Correia e outros bambas proporcionaram muitas noites de festa a R. América, quando seus sambistas brincavam com liberdade e grande desembaraço.

Saturnino Ferreira

Antes de se aprofundar na história da Vizinha Faladeira, é necessário dizer que o seu fundador Saturnino Jovino Ferreira, nascido presumivelmente em 1908, é filho de ninguém menos que Hilário Jovino Ferreira (1873-1933), sambista da chamada pioneiríssima geração, mestre que ensinou os segredos do Samba a bambas como Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e Getúlio Marinho “Amor”

Hilário Jovino, pioneiro do Samba da região portuária do século XIX

Retirante nordestino, Hilário era natural de Pernambuco e criado na Bahia, onde brincava o Reisado, no Dia de Reis, em 6 de janeiro. Figura de proa nas sessões de Samba e Candomblé nas casas das Tias Baianas do Rio de Janeiro, Hilário era diverso: foi exímio versador de Partido-Alto, tocava violão, era ogã do terreiro de João Alabá, além de ser um grande capoeira e o responsável por introduzir a figura do Mestre-Sala no Carnaval brasileiro. Em suma: um sambista nato, completo. E muito provavelmente Saturnino, seu filho, cresceu absorvendo toda essa malícia de seu pai e seus contemporâneos. 

Quando se fala nos primórdios da Vizinha Faladeira, a fonte mais confiável para se extrair informações é o ensaio do grande historiador do Samba Francisco Duarte, “Vida e Morte da Visinha Faladeira, Uma Escola dos Tempos Heroicos da Praça Onze”, publicado em 1979 no Jornal do Brasil. Duarte colheu depoimentos com o próprio David da América, entre outros componentes da Escola. Mas é preciso saber ler o ensaio e as sutilezas do mestre Duarte, que habilmente nomeia David como malandro e Saturnino como batuqueiro.

Francisco Duarte documentou a trajetória dos primórdios da Vizinha | JB, 1979

Quando Duarte diz que David era malandro, possivelmente quer dizer que o sambista se valia de expedientes para resolver contendas da vida, como uso de navalha, por exemplo. Já quando nomeia Saturnino de batuqueiro, Duarte se refere ao termo dos primórdios do Samba para quem participava do jogo de pernada, que nada mais é do que a capoeira carioca.

Saturnino ao que parece não foi tão diverso quanto seu pai, porém, se tornou um grande bamba de pernada. Tia Carmem, ao recordar os “valentes mais valentes” de seu tempo, citou entre eles Saturnino

Segundo relato de Madame Satã (1900-1976), o valente mais temido do bairro da Lapa, Saturnino dominava a região da Praça Onze, onde era conhecido e temido pelo vulgo de Moleque Saturnino. Conforme relato do mesmo Satã, a Praça Onze era um reduto de malandros “muito entendidos em capoeira”. 

Moleque Saturnino teve um trágico fim: foi morto com um tiro na boca, na zona do Mangue em novembro de 1935, aos 27 anos. O velório de Saturnino foi feito na R. da América, nº 35, cercado pelos seus parceiros da Vizinha Faladeira.

Foi com o cacife de um valente como Saturnino Ferreira que a Escola de Samba Vizinha Faladeira ensaiou os seus primeiros passos. Mas eram tempos difíceis em que as Escolas de Samba eram marginalizadas e tinham que se defender. Por isso, em praticamente todos os redutos de Samba havia batuqueiros hábeis em pernada e valentes em porfias da vida.

Na Deixa Falar do Estácio havia Baiaco; Em Mangueira, Juvenal Lopes; na Portela, Manuel Bam-Bam-Bam; No Salgueiro, Neca da Baiana; na Deixa Malhar, Mano Eloy e na Vizinha Faladeira, Saturnino Ferreira. Os valentes também ofereciam serviços de proteção a figurões políticos e, também por isso, usufruíam de condição financeira razoável.

E Saturnino era um desses valentes que não brincavam quando o assunto era dinheiro. Fora o filho de Hilário Jovino, a Vizinha Faladeira passou a ter em seu quadro bicheiros; jogadores; contraventores; batuqueiros; malandros; cafetões; comerciantes e vereadores. Ou seja, homens com condições financeiras diferenciadas.

Em pouco tempo, a Vizinha institui para quem tivesse melhores condições de vida a cobrança de mensalidade no valor de 5 mil réis. Outra mensalidade no valor de 3 mil réis era cobrada do restante de seus componentes, constituídos por estivadores da Resistência do cais do porto; trabalhadores; artífices; jornaleiros e meretrizes. 

Vizinha Rica

Por ser uma Escola localizada na região central do Rio de Janeiro, com componentes que quando não eram assalariados, ganhavam a vida de diversas formas em que a receita era garantida, a Vizinha veio com força. Por isso, permaneceu no imaginário dos velhos sambistas como a Vizinha Rica

Logo em seu primeiro desfile, no ano de 1933, a Vizinha Faladeira ousou e veio com uma Comissão de Frente com carros de luxo abertos e limusines utilizadas em casamentos da alta sociedade. Como David da América com bom-humor relatou a Francisco Duarte: para trabalhar, iam de bonde, mas para sair no Carnaval, iam de carro alugado e aberto.

Na terça-feira de Carnaval daquele ano, faleceu o pai de um dos fundadores da Vizinha Faladeira, Hilário Jovino Ferreira e, com ele, partia muito do Samba e do Carnaval dos primórdios.

Em 1934, a Vizinha prosseguiu rica e inovou com uma Comissão de Frente que vinha a cavalo, além de megafones de corneta, antecipando a amplificação vocal dos desfiles das Escolas. Já em 1935, a Vizinha apresentou aquele que é considerado o primeiro carro alegórico dos desfiles das Escolas de Samba e mais uma vez veio com a Comissão de Frente montada a cavalo.

No Carnaval de 1937 a Vizinha veio mais rica do que nunca e, com 40 gambiarras, iluminou todo o seu desfile na Praça Onze com lampião de carbureto e não com lamparinas, como era mais comum. Em 1938 choveu copiosamente, a comissão julgadora não compareceu e o desfile foi cancelado. Mas ainda assim a Vizinha desfilou, pois suas damas eram as únicas entre todas as Escolas que estavam munidas de sombrinhas.

David e Beringa, sambistas da Vizinha em Carnaval de outrora | JB, 1979

O Carnaval de 1939 da Vizinha foi apoteótico, diziam ser o maior desfile de uma Escola de Samba de todos os tempos. Com o enredo “Branca de Neve e os Sete Anões”, a Escola saiu com a primeira Ala mirim da história, com crianças representando cada um dos anões.

Toda essa estrutura financeira proporcionada por seus sócios, do operário ao valente, do estivador ao bicheiro, da meretriz ao cafetão, possibilitava que a Vizinha Faladeira desse realmente o que falar em seus desfiles e ficasse na história e no imaginário dos sambistas como a Vizinha Rica.

Valentia

A Vizinha Faladeira também foi protagonista de episódios de valentia e brigas que muitas vezes chegavam às vias de fato. A mais célebre delas aconteceu no Carnaval de 1934, quando a Vizinha se defrontou com sambistas da Escola Azul e Branco, do Salgueiro

Mas sem dúvida alguma, o episódio de valentia protagonizado pela Vizinha Faladeira que ficou na história do Carnaval carioca aconteceu no desfile de 1935. A Vizinha mais uma vez fez um belo desfile, porém, o título ficou com a Portela, o primeiro de muitos na trajetória da Azul e Branco de Oswaldo Cruz. Entretanto, na comissão julgadora se encontrava ninguém menos que Ismael Silva, um dos sambistas responsáveis pela existência dos desfiles das Escolas, que declarou abertamente ao jornal Avante ser contrário ao resultado, já que julgava como justo que a Vizinha Faladeira se sagrasse a campeã naquele ano.

Jurado do Carnaval de 35, o grande Ismael Silva declarou publicamente que a Vizinha merecia ser campeã | Foto: Acervo Museu da Imagem e do Som (MIS)

Inflamado com o sentimento de injustiça, o time de valentes, batuqueiros e malandros que impunha respeito e temor a qualquer Escola tomou a taça da Portela no peito. Isso aconteceu antes de Natal da Portela, bicheiro temido por seu poder financeiro e sua canhota certeira, assumir os destinos da Portela. A valentia de Manuel Bam-Bam-Bam e de outros de Oswaldo Cruz não foi páreo para a turma de Moleque Saturnino, o Rei da região da Praça Onze.

O sambista Rafael Lo Ré, do agrupamento Glória ao Samba, narra que alguns anos atrás, certo dia na quadra da Portela teve conversa informal com o saudoso Monarco e outro senhor de mais idade, do qual não se recorda o nome. E esse senhor falava insuflado que a Portela tinha uma taça que estava na R. da América e que era preciso ir até lá recuperar essa taça. Se a Vizinha Faladeira não levou o título no ano de 1935, entrou para história com passagens mitológicas como esta.

União das Escolas de Samba (UES)

Em dezembro de 1933 foi fundada a União das Escolas de Samba, entidade que visava defender os direitos civis dessas agremiações perante a sociedade e, principalmente junto ao poder público. Os sambistas da UES, malandramente, percebendo os ares nacionalistas do governo de Getúlio Vargas, dentro de um contexto de dinâmica de negociações, entraram no jogo. E logo em janeiro de 1935, na sua primeira carta endereçada ao Prefeito do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, solicitando subvenção, a UES tratou logo de esclarecer se tratar de uma entidade onde “se cultiva a verdadeira música nacional, imprimindo em suas diretrizes o cunho essencial de brasilidade”, com “cortejos baseados em motivos nacionais”. A leitura malandra do momento feita pelos sambistas foi precisa e em apenas 3 dias Pedro Ernesto aprovou o pedido de subvenção.

Uma das primeiras reuniões da União das Escolas de Samba, em 1933

Em seu estatuto original, a UES de modo bem direto, sem espaço algum para qualquer tipo de dúvida, proibia enredos que tivessem base em “histórias internacionais, [sejam elas] em sonhos ou figuração”.

Porém, a Vizinha Faladeira parecia navegar na contramão dessa corrente de jogo com o poder público, mesmo participando ativamente dos quadros da UES, por meio do sambista Gaudêncio de Castro, que compunha o Conselho de Julgamento.

No regulamento para aquele ano algumas proibições foram impostas, como instrumentos de sopro, uso de estandarte e de carros alegóricos. Entretanto, em seu desfile a Vizinha Faladeira apresentou o primeiro carro alegórico que se tem notícia no Carnaval das Escolas. Talvez a quebra desse quesito do regulamento tenha contribuído para a indesejada 4ª colocação que a agremiação ocupou.

Para o carnaval de 1937, a UES liberou o uso de carros alegóricos, a Vizinha Faladeira veio imponente e venceu o Carnaval, sem dúvida um marco para esta festa. Já no Carnaval de 1938, a UES exigiu que as Escolas se apresentassem “de acordo com a música nacional”, proibindo carros alegóricos e carretas. 

Paralelamente, a entidade criada pelos sambistas passava por grave crise política interna, ao ponto de modificar o seu nome em janeiro de 1939 para União Geral das Escolas de Samba (UGES).

O mais triste episódio da história da Vizinha Faladeira ocorreu no Carnaval de 1939. O regulamento do desfile daquele ano foi apresentado a poucos dias do desfile com proibição de enredo internacional e, ao que tudo indica, a Vizinha já tinha feito a sua escolha por “Branca de Neve e os Sete Anões”. 

É preciso destacar que “Branca de Neve e os 7 Anões” é uma lenda do folclore alemão, documentada pelos Irmãos Grimm em livros de contos publicados entre 1817 e 1822.

Porém, foi somente com o lançamento do filme dos estúdios Disney em 1937 que a história dos 7 anões se popularizou em nível global. Os integrantes da Vizinha Faladeira certamente ficaram encantados com o mundo de magia da Disney e decidiram colocá-lo em desfile.

O filme de Walt Disney de 1937 foi um grande sucesso no mundo todo

Talvez esse tenha sido o desfile mais luxuoso e mais ousado das Escolas de Samba dos anos 30. Ao encerrar o desfile, havia pouco espaço para dúvida: a Vizinha Faladeira seria campeã, mais uma vez.

Porém, o que a Escola não imaginava é que a UGES iria fazer valer o regulamento do desfile a ferro e fogo. A Portela ainda não havia aceito o despeito do roubo da taça de 1935 e foi a primeira a lançar uma grita contra o desfile da Vizinha Faladeira, defendendo a sua desclassificação.

E assim foi feito: a Vizinha Faladeira foi desclassificada por não apresentar um enredo baseado em tema nacional. O regulamento foi cumprido, não sem um punhado de tristeza, pranto, mágoa e lamentação. Aquela derrota amargou os sambistas da Vizinha Faladeira que, num ato de coragem, tomaram a decisão mais imprevisível da história do carnaval das Escolas.

Irreverência

Apesar de ter ganhado fama por sua valentia e pelo luxo de seus carnavais, o maior legado da Escola de Samba Vizinha Faladeira foi o espírito irreverente, típico dos dias de Carnaval. Seu próprio nome foi classificado por seus componentes como uma “crítica” a algumas senhoras do bairro que eram muito fofoqueiras, entre elas Dona Rosa Faladeira. Foi com esse mesmo espírito crítico que a Vizinha Faladeira existiu em seus poucos, porém intensos primeiros anos de vida no longínquo decênio de 1930.

O que dizer de sua atitude perante a revelação do resultado do Carnaval de 1935? Seus integrantes não só tomaram a taça da Portela no peito, como também tiveram uma ideia genial. A Escola teve a brilhante iniciativa de doar o valor em dinheiro recebido por sua 4ª colocação ao Instituto dos Cegos, numa homenagem para lá de irreverente a comissão julgadora.

O único samba que se tem notícia da Vizinha Faladeira dos anos 30 foi ensinado por Tia Maria do Jongo (1920-2019) a Rafael Lo Ré e Paulo Mathias, fundadores do grupamento Glória ao Samba, numa visita a casa da sambista no Morro da Serrinha no ano de 2014. Se não é um primor de poesia, é certamente um primor de ironia, além de um retrato histórico exato em forma de samba:

“Papagaio Linguarudo / Eu acho bom você ficá mudo / Você tem fama de falador / Eu quero vê sua inspiração”

Um samba debique, em afronta a outra Escola dos anos 1930 que deixou de existir, a não menos debochada Papagaio Linguarudo, do Morro do Pinto. Uma cabeça de Partido-Alto, que servia de tema para os bambas do lugar entrarem com seus versos maliciosos. Um pequeno frasco com alta dose de veneno, que demonstra todo o espírito irreverente e contestador da Vizinha Faladeira.

Tia Maria do Jongo ensinou a componentes do Glória ao Samba único samba que se tem notícia da Vizinha dos anos 30 | Foto: Império Serrano - Museu Virtual

O próprio desaparecimento da Vizinha, além de ser um posicionamento muito sério e muito firme, foi uma ode à irreverência. Inconformada com a eliminação do Carnaval de 1939 legitimada pela UGES com base em seu regulamento, a Vizinha armou a sua cartada final. Tramando secretamente com seus integrantes, em 1940 a Vizinha Faladeira realizou o seu desfile normalmente. Entretanto, ao chegar próximo a comissão julgadora, seus sambistas passaram por trás dos jurados, num protesto sério e irônico, abrindo uma grande faixa, onde se podia ler:

“DEVIDO ÀS MARMELADAS, ADEUS CARNAVAL. UM DIA VOLTAREMOS” 

Foi um fim apoteoticamente debochado, comprovando que a Vizinha Faladeira era a própria encarnação do espírito do Carnaval. O protesto da Vizinha Faladeira é profundo e merece reflexão mais expansiva. O Carnaval passava cada vez mais das mãos do povo as mãos do poder público. Os sambistas não eram obrigados até aquele momento a desfilarem com temas nacionalistas. Decidiram por eles próprios que essa era uma forma inteligente de estabelecer diálogo com os governantes, agradando-os com o espírito nacionalista que grassava no ar. Ao procurarem financiamento público para suas agremiações, os sambistas iniciaram tratativas e negociações.

Escola mitológica dos anos 30, a Vizinha Faladeira não poderia resistir aos anos 1940 repleto de imposições institucionais, tinha que encerrar a sua história naquele findar da década de 1930. A Vizinha não compactuaria com o modelo de carnaval das Escolas após a demolição da Praça Onze, em 1942. E não houve forma mais genial de terminar a sua histórica trajetória inicial do que uma bela virada de costas a tudo e a todos, num gesto sagrado de irreverência carnavalesca.

Praça Onze, onde o Samba pulsou e a Vizinha Faladeira deslumbrou | Foto: Augusto Malta (Acervo Biblioteca Nacional)

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