Historicizando as canções

Sou o mesmo de antigamente só que agora nada mais me encuca: 75 anos de Odair José

segunda, 21 de agosto de 2023

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Em 16 de agosto de 1948 nascia na cidade de Morrinhos, interior de Goiás, Odair José de Araújo, hoje conhecimento simplesmente como Odair José, mas que na verdade recebeu várias alcunhas como “O terror das empregadas”, “O Bob Dylan da Central do Brasil”, “O cantor da pílula” e muitos outros.

Em 1969, de acordo com o próprio Odair, ele gravou pelo selo Genial, de Rossini Pinto, um compacto com uma de suas primeiras composições, "Uma lágrima". Ele tinha 250 cópias desse compacto e foi distribuindo nas rádios, fazendo a própria divulgação. A música fez certo sucesso no Rio de Janeiro e por conta disso conquistou o sonhado contrato com uma gravadora, no caso, a CBS, na época uma das maiores do país, casa de Roberto Carlos, não era qualquer coisa.

“Uma lágrima
Eu deveria ser
Somente pra dizer
Nasci de um amor que em mim nasceu”
Odair José - Uma lagrima 1969 (1º Disco)

Em 1970, já contratado pela CBS, Odair lança seu primeiro LP pela gravadora, intitulado apenas com o nome do artista, nesse primeiro trabalho Odair emplaca a música “Minhas coisas”, composição do produtor Rossini Pinto.

“As minhas coisas de repente estão tristes
Compreenderam que não existe
Nada mais entre nós
Meu violão caiu de cima do armário
Suas cordas arrebentaram
Dando adeus a minha voz”

Odair José - Minhas Coisas

No ano seguinte Odair lança o LP “Meu grande amor”, nesse disco ele regravou Uma lágrima e outras músicas que merecem ser lembradas, como “Minha juventude”, “Só você” e “Vou morar com ela”. A última merece uma explanação de sua importância. A canção narra sobre um rapaz que está perdidamente apaixonado por uma moça, só pensa nela e quer morar com ela:

“Não sei o que faço
Só me sinto feliz
Quando estou em seus braços
Só me sinto feliz
Quando estou em seus braços
Não suporto mais viver longe dela
Não aguento mais, eu vou morar com ela”

Nessa composição, já percebemos que Odair José estava disposto a questionar os costumes da sociedade brasileira, em nenhum momento da letra o eu-lírico fala em casar com a mulher, ele apenas fala que a quer, quer ter seu momento de prazer e amar em paz. Consciente ou não, Odair José questionou um valor sagrado para muitos, o casamento, mas não ficaria só aqui, outras composições dele discutiram o tema. E para além da letra, Odair fez uma sonoridade diferente com os teclados de Dom Salvador, o mesmo que gravou o piano em “Jesus Cristo” para Roberto Carlos.

Possivelmente, o ano de 1972 é um marco na carreira de Odair José, é nesse ano que ele lança aquela que talvez seja a sua canção mais famosa, "Eu vou tirar você desse lugar", a conhecida “música da prostituta”. Odair conta em diversas entrevistas que houve resistência de Rossini Pinto em deixar essa música ser gravada, ele não gostava da letra e dizia que era de mau gosto. Raulzito, Raul Seixas, que também era produtor na CBS ajudou Odair a gravar a canção, que foi lançada apenas como compacto simples.

“Olha, a primeira vez que eu estive aqui
Foi só pra me distrair
Eu vim em busca do amor”

A música chamou a atenção dos militares. Odair José precisou prestar depoimento por causa do refrão, achavam que era uma crítica velada ao governo militar. É preciso lembrar que, na década de 1970, havia um forte senso de ufanismo defendido pelo governo, em grande medida por causa da Copa do Mundo de 70 e pelo “Milagre Econômico”. O slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o” reflete muito bem isso, e para os milicos o refrão de Odair era uma resposta. Odair explicou que a canção não possuía nenhuma conotação política mas apenas a história de um rapaz que se apaixona por uma prostituta, mas isso piorou sua situação, suas músicas passariam pela censura prévia a partir daquele momento.

Essa música do Odair é importante não simplesmente porque tem a figura da prostituta, essa figura sempre foi presente no cancioneiro brasileiro. O que faz a composição de Odair ser transgressora e importante é pelo trato dado a prostituta. Na canção, o eu-lírico se apaixona pela prostituta e quer ter um relacionamento sério com ela, não apenas algo casual, quer viver com ela e não interessa o que os outros vão pensar, nosso personagem não liga para o passado da amada e quer apenas viver seu amor em paz.


A música estourou e ficou em primeiro lugar nas rádios do Rio de Janeiro, a CBS ficou procurando Odair, mas ele contou que estava fazendo shows pelo país por conta própria, a gravadora não o divulgava por causa de seu contrato que tinha expirado. Quando Odair volta para o Rio ele é levado para uma reunião com Seu Evandro Ribeiro, o chefão da CBS. Odair já sabia do sucesso de sua composição e já tinha planos para um disco, contudo, foi proposto para ele outra ideia, ele recusou. Evandro Ribeiro ameaçou colocar Odair “na geladeira”, ele não sabia que o contrato do artista tinha expirado, Odair não hesita e consegue um contrato com a Phonogram.

Em 1972, Odair José lança seu disco “Assim sou eu…”, a capa foi do jeito que Odair queria e na contracapa possui um texto de autoria do próprio. Além disso, esse disco possui minha composição favorita de Odair, nunca é lembrada, não foi censurada ou tem um tema “social” mas fala de algo ordinário e importante, o amor e a tristeza em decorrência dele. 

Esse eu tenho, achei garimpando em uma loja de discos, não pensei duas vezes

Contracapa do disco

“Olha, na minha vida ainda não tinha acontecido nada, que eu pudesse lembrar, como um momento de saudade. Um momento em que eu sentisse vontade de viver mil vezes.

Em todo o meu passado não existiu nada que me fizesse, realmente feliz.

Foi longa minha caminhada, e comigo sempre esteve presente a solidão,

Perdido nos braços dos meus sonhos, fui guardando um amor, que aumentava em cada passo que eu dava, dentro da minha ilusão,

E foi então, que você chegou!

Você chegou, e eu não tive forças para não deixar, você entrar na minha vida,

O tempo passou, e com o passar do tempo, você, foi deixando detalhes, detalhes que fizeram de você, a razão do meu tudo!

Agora, eu já tenho momentos pra lembrar, pra sentir saudade, momentos que eu gostaria de viver um milhão de vezes, momentos que eu passei com você.

Você, que eu amo! Você, que me faz feliz!

Eu, você e três pontinhos mais…”

 Texto do próprio Odair José para a contracapa do disco.

O disco merece ser ouvido do início ao fim mas vou pontuar algumas que merecem atenção, “Esta noite você vai ter que ser minha”, “Mande nem que seja um telegrama”, “Com o passar do tempo”, “Cristo, quem é você?”, “Vida que não para” e a faixa-título “Assim sou eu…

"Com o passar do tempo" é a favorita desse que vos fala, é uma canção bem sentimental, muita melancolia, é daquelas para se ouvir sozinho e deixar a dor fazer o estrago.

“Sem querer, sem saber explicar, eu gostei de você
Mas preciso esconder esse amor, pra depois não sofrer
Pois eu sei que é quase impossível existir qualquer coisa entre nós
Acontece, pra mim ser feliz basta ouvir sua voz
Qualquer coisa que faço na vida, eu encontro você
Mas não sei como foi que deixei isso me acontecer
Logo eu que já sou tão sofrido, fui gostar de você tanto assim
Mas agora só resta pedir seu amor só pra mim”

Com O Passar Do Tempo

Em 1973, temos outro disco importante na discografia de Odair, pois é dele que são as canções “Deixe essa vergonha de lado”, “Eu, você e a praça”, a favorita do Zeca Baleiro da discografia de Odair, “E ninguém liga pra mim”, “Revista proibida” ,“Cadê você?” e, claro, “Uma vida só (Pare de tomar a pílula)”.

"Deixe essa vergonha de lado" é a canção que Odair fala da empregada doméstica, a canção narra sobre um cara que se apaixona por uma mulher que tem vergonha de sua profissão e tem medo de perder o amor do rapaz. Lembrando que só no governo Dilma Rousseff que a situação empregatícia dessa classe foi regularizada. Mas em 1973, Odair usou o ordinário, o banal, o amor, para falar do preconceito sobre a classe.

Odair José no centro do Rio de Janeiro, em 1972 Créditos: O Globo

A música da pílula é outra que entrou no imaginário popular, todo mundo conhece o refrão e foi censurada porque o governo militar tinha um projeto de propagação do anticoncepcional e a música de Odair falava “Pare de tomar a pílula, pare de tomar a pílula”.

Em 1974, Odair lança o LP Lembranças, nele temos a canção “Noite de desejos”, essa música originalmente se chamava “A primeira noite de um homem”, em que era narrada as sensações e sentimentos de um rapaz na primeira relação sexual, porém, a canção foi vetada pela Censura. Odair trocou o título e umas frases e submeteu mais uma vez ao órgão censor e foi liberada. 

Trecho do documento que mostra o veto a composição de Odair

Em 1975, temos o disco intitulado somente como "Odair", vamos registrar aqui a canção “Viagem”, dessa vez nosso repórter musical deixa uma mensagem dúbia, que viagem seria essa?

“Venha comigo na minha viagem
Não se preocupe eu tenho as passagens
Venha comigo viver de verdade
Pra onde eu vou existe a felicidade”

"A viagem" - Odair José no Estúdio Showlivre 2016

"Histórias e pensamentos" é o disco de Odair em 1976, mais uma vez vou deixar registrado uma música melancólica, sobre o medo de perder a pessoa amada, "Drama passional".

“Eu sofro calado
Eu choro escondido
Eu sofro calado
Eu choro escondido”

Em 1977, temos um outro marco na carreira do nosso querido artista, o disco hoje tão aclamado O filho de José e Maria, lançado pela RCA-Victor. Em entrevistas, Odair afirma que a ideia inicial seria de um disco duplo, mas metade das composições foram vetadas, então ele bagunçou a ordem das que sobraram e assim fez o disco que conhecemos hoje. Antes mesmo do disco sair muitas pessoas já falavam mal, não gostaram da ideia do disco, o título fazendo uma referência a Jesus Cristo. O disco tem grande influência Soul e do rock psicodélico. Infelizmente, na época não vendeu bem e a carreira do Odair teve um declínio. Hoje, esse disco é vendido por preços exorbitantes, basta procurar que em poucos segundos vai achar alguém vendendo uma cópia, seja da época ou do relançamento que teve anos atrás pela Polysom. Gostaria de saber se o próprio Odair tem uma cópia da época. Em suma, é um disco de sonoridade incrível e com músicas que se complementam pois contam uma única história, como em uma ópera.

O disco merece ser ouvido na íntegra, apenas escute e aproveite a viagem.

“Eu agora sou bem diferente
Não se assustem e nem se preocupem
Sou o mesmo de antigamente
Só que agora nada mais me encuca”

Talvez por conta dos problemas em torno do disco anterior Odair quis deixar as coisas mais simples, em 1978 temos o disco “Coisas Simples”, também pela RCA-Victor. A faixa "Agora sou livre" (O divórcio) já é auto-explicativa. A Lei do Divórcio é de 1977, antes existia apenas o desquite, o casal se separava mas as partes não podiam se casar novamente porque o casamento era indissolúvel.

Nesse mesmo disco Odair gravou uma música chamada “Formas de sentir”. que fala sobre homosexulidade, uma composição de Donizete e José Messias:

“Sei que és entendido e vai entender
Que eu entendo e aceito a tua forma de amor
Que eu entendo e aceito a tua forma de amor
Ame, assuma e consuma”

Entendido” era uma gíria na época para gay, de qualquer forma a letra continua falando de amar sem julgamentos.

Mas aproveitando a temática gostaria de compartilhar um achado. Odair José é meu objeto de pesquisa, tenho publicação acadêmica sobre ele, apresentações em eventos acadêmicos e obviamente minha coluna aqui no Instituto Memória Musical Brasileira. Garimpando em alguns arquivos da Censura durante a Ditadura Civil-Militar encontrei o veto em uma composição de Odair intitulada “Desespero”.

Trecho de documento da Censura Créditos: Arquivo Pessoal

Parecer liberando composição de Odair

Nesse trecho do documento vemos que o parecerista da Censura libera, contudo, no decorrer do arquivo vemos diferentes pareceres até que a conclusão é de veto. O documento data de 1974.

Parecer vetando a mesma composição


Aqui fica um exemplo de toda a burocracia por trás da Censura, os censores tinham diferentes níveis de escolaridade, cada um tinha suas referências e forma de analisar. É importante pontuar isso para não se reduzir as discussões sobre o tema.

Agora, vamos para os discos mais recentes de Odair, que merecem atenção devida.

Em 2012, pela Saravá Discos, Odair lança o disco Praça Tiradentes, que possui participações de grandes nomes da nossa música, Paulo Miklos, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes, Zeca Baleiro e Chico César.

“Agora é só fingir que a gente nunca se cruzou
Que por nenhum caminho dessa vida a gente se esbarrou
Talvez seja mais fácil esquecer
Do que viver um grande amor”

Odair José - Paulo Miklos - Sob controle 

Em 2014, temos o disco ao vivo O filho de José e Maria, gravado junto com o importantíssimo grupo Azymuth, que gravaram com o Odair na década de 1970.

Em 2015, temos o disco Dia 16, que é o dia do aniversário do nosso homenageado. Selecionei aqui uma música perfeita para você que brigou com sua paixão, sua queda, sua paixonite, enviar para a pessoa querida e fazer as pazes.

“Eu te perdi
Por minha culpa
Pois escolhi
O que machuca”

Me Desculpe

Os dois últimos discos do Odair (até agora) são ideais para quem ouviu O Filho de José e Maria e gostou da pegada conceitual. São rock, como Odair sempre fez, e com letras bastante ácidas sobre a situação do nosso país.

O primeiro é Gatos e Ratos, de 2015, a canção escolhida é “Moral Imoral”.

“Você pede que eu nunca te esqueça
Que eu não tire você da cabeça
Do pau!”

Odair José - Moral Imoral

Um ano antes da pandemia de covid Odair José já falava sobre confinamento, com o seu disco “Hibernar na casa das moças ouvindo rádio”. Mais um disco conceitual, agora sobre um personagem que vai para a tal casa das moças e entra em uma jornada de autoconhecimento e discute o mundo ao seu redor. A canção escolhida é Chumbo Grosso!

“O assunto agora é a cultura da bala
Na falta de argumento a solução é uma vala
Alguém mergulhou nas contas do pré-sal
Não deu praia, se deu mal”

Mas Odair não se deu por satisfeito, ao lado de Arnaldo Antunes ele compôs a trilha sonora original do filme nacional Meu álbum de amores (2021), a película é sobre um rapaz que descobre que o pai foi um famoso cantor romântico na década de 1970 e tenta lidar com as reviravoltas da vida, um filme super gostoso de assistir.

Nem mesmo durante a pandemia Odair parou, fez show em formato de live, participou de entrevistas online, sempre ativo. Em uma de suas últimas entrevistas, no Podcast do Thunder, Odair José contou que está planejando um novo disco, deu o nome de Seres Humanos e até tocou o trecho de uma música que estará no disco.

Enfim, como tentei demonstrar, Odair José tem uma vasta discografia, fez músicas importantes e falou de temas importantes, sempre com letras diretas, usando como tema o cotidiano e o amor, como forma de transmitir sua mensagem, ele se auto declara um repórter musical, sempre atento a realidade que o cerca e sua obra é prova disso.

Levar a carreira de Odair José para a vida acadêmica foi por ser fã de sua obra. Por muito tempo, sua carreira não foi levada a sério pelos intelectuais, que achavam algo superficial, sem digno de nota e cafona. Foi a partir do trabalho de Paulo Cesar de Araújo, com o livro ”Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”que a vasta obra do goiano ganhou holofote. Hoje, já se encontra alguns artigos acadêmicos sobre ele, inclusive uma dissertação de mestrado, ”Ame, assuma e consuma: canções, censura e crônicas sociais no Brasil de Odair José (1972-1979)” de Ivan Lima Cavalcanti mostrando a força que as letras de Odair possuem.

A nova geração acha, com razão, Odair José descolado, ele já não é mais visto de maneira estranha e sim como importante para a nossa música. Mostrando sua voz não só nos palcos, sempre se posicionando sobre as questões do país e sem arrodeios, como sua música.

Odair mostrando a contracapa do seu disco de 1973 Créditos: Marcos Alves/ Agência Globo

Eu sempre quis ser um cantor popular, aquele que tocasse no rádio, que as pessoas cantarolassem, que pudesse acalentar, inspirar, fazer chorar ou despertar um sorriso. Creio que consegui. E hoje com 75 anos, só tenho a agradecer a tudo o que vocês fizeram por mim. Sigo cheio de sonhos!” 

                                    Odair em seu perfil oficial no Instagram no dia do seu aniversário









 







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