Jogada de Música

Seleção de 74, entre a confiança e a desconfiança

segunda, 02 de março de 2020

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Em fins de janeiro tive a imensa felicidade de atravessar o Estado de Santa Catarina, de Leste (Florianópolis) a Oeste (São Lourenço do Oeste), para entrevistar o ex-goleiro e ex-treinador de goleiros Wendell para o Museu da Pelada. Para quem não sabe ou não se recorda, ele, que jogava na época no Botafogo, havia conquistado a posição de titular de Emerson Leão (Palmeiras) e seria o goleiro da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1974. Porém, uma lesão no último amistoso antes da estreia obrigou o técnico Zagallo a cortá-lo. Com muito ainda na memória da conversa que tive com Wendell sobre aquele Mundial disputado na então Alemanha Ocidental e a preparação para ele, resolvi trazer o tema para a Jogada de Música deste mês.

Como campeã, ou melhor tricampeã mundial, em 1970, a seleção brasileira não precisou disputar as eliminatórias, mas teve uma preparação muito conturbada. A torcida, que mesmo após a despedida de Pelé em 71 andava confiante com a conquista da Taça Independência (também conhecida como Minicopa), no ano seguinte, logo passou à desconfiança com as atuações irregulares da equipe dirigida por Zagallo. Os torcedores mais críticos e quase todos os comentaristas da época acusavam o treinador de botar o Brasil na retranca (jogar na defesa).

Esse ambiente de confiança e desconfiança acabou passando para a música. Se por um lado, “Camisa 10”, de Hélio Matheus e Luís Vagner, gravada com muito sucesso por Luiz Américo, fazia uma crítica muito bem-humorada à seleção de Zagallo, por outro, “Cem milhões de corações”, de Gilberto Montenegro, José Costa, César Cury e Jean Pierre, gravada pelo grupo Os Incríveis, trazia todo clima ufanista que consagrara quatro anos antes “Pra frente Brasil”, de Miguel Gustavo

Por só conhecer o refrão e mesmo assim de forma errada (achava que era “É o camisa 10 da seleção”, em vez de “É camisa 10 na seleção”) passei a minha infância inteira acreditando que o grande sucesso do santista Luiz Américo era uma homenagem a Pelé. Na verdade ela é uma crítica muito bem-humorada à seleção que Zagalo e a comissão técnica que havia conquistado o tri em 70 preparavam para a Copa da Alemanha Ocidental. O refrão pede um substituto para o Rei e o restante da letra tem uma série de ironias com nomes de jogadores que fizeram parte da excursão à Europa e à África, em junho e início de julho de 1973. Foi naquele período que comissão técnica e jogadores brigaram com a imprensa e decidiram não dar mais entrevistas após uma derrota para a Suécia, lançando o que ficou conhecido como Manifesto de Glasgow (Escócia), assinado por todos os atletas.

Gravado no LP “Camisa 10”, de 1973, a música que dá título ao álbum faz referência a vários jogadores da época e reproduzo abaixo os versos em que isso ocorre, incluindo um equívoco meu:

Levaram uma flecha, (aqui achava que era uma referência ao ex-ponta-direita do Grêmio e do América-RJ, mas Flecha só foi convocado pela primeira vez por Osvaldo Brandão, em 1976, quando atuava pelo time carioca)/ esqueceram o arco

Botaram muito fogo e sopraram o furacão (crítica ao número de jogadores do Botafogo convocados, 4 no total, e a Jairzinho, o Furacão da Copa de 70)/ que nem saiu do chão

Puseram uma palhinha na sua fogueira” (Palhinha, atacante do Cruzeiro que posteriormente foi do Corinthians e do Atlético-MG)

E se não fosse a força desse pau pereira” (Luis Pereira, zagueiro do Palmeiras)

Comiam um frango assado / lá na jaula do leão” (Emerson Leão, goleiro do Palmeiras que foi titular da seleção nas Copas de 74 e 78 e reserva em 70 e 86) 

O Garoto do Parque está muito nervoso” (Garoto do Parque era o apelido de Rivelino, então no Corinthians)

É camisa dez na seleção / (Dez é a camisa dele, /quem é que vai no lugar dele?) (Quem seria o substituto de Pelé, já que Tostão tivera de encerrar a carreira prematuramente, em 73, por causa do descolamento de retina que quase o tirou da Copa de 70)

Já “Cem milhões de corações” tentou repetir o imenso sucesso de “Pra frente Brasil”, de Miguel Gustavo, que se tornou o hino da seleção do tri, uma das maiores, senão a maior, da História do futebol mundial. Também citava a população brasileira da época (em 70 eram “Noventa milhões em ação...”), mas o time pouco – ou nada - ajudou. A música tem duas partes completamente diferentes, parece mesmo que são duas, e foi gravada, entre outros, pelos Incríveis, que haviam feito sucesso nos anos 60 com “Era um garoto como eu que amava os Beatles e os Rolling Stones”, música que também teve muito êxito com os Engenheiros do Hawaii muitos anos depois. Os Incríveis também conseguiram grande sucesso no início dos anos 70 com “Eu te amo meu Brasil”, que acabou virando um hino da ditadura militar na época do “Ame-o ou deixe-o”.


Esta música também foi gravada em 1974 pela Banda da Alegria (veja AQUI) e pela dupla Arthur e Galahad (veja AQUI,). Porém, no fim, a seleção teve uma participação muito aquém do que poderia, principalmente pelos grandes jogadores que possuía. Terminou a Copa em quarto lugar, após quase ser eliminada na primeira fase, com uma campanha nada gloriosa de três vitórias, dois empates e duas derrotas, seis gols marcados e quatro sofridos.

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