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Osvaldinho da Cuíca – O Embaixador do Samba Paulista

domingo, 15 de dezembro de 2019

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Em meu primeiro artigo para o IMMuB, escolhi a diplomacia. Iniciar por Osvaldinho da Cuíca, considerado o "Embaixador Nato do Samba Paulista", título concedido pela União das Escolas de Samba Paulistanas (UESP), e "Cidadão Samba de São Paulo", eleito em 1974, é encontrar o ponto de partida do que considero ser a melhor rota para falar sobre a complexidade do samba paulista.

Foi numa noite de 1961 ou 1962.  Entrei no restaurante da TV Record, onde se misturavam funcionários, diretores e artistas da emissora – era comum encontrar Jamelão tirando um cochilo por lá -, e dei de cara com o lendário Adoniran Barbosa, mastigando a ponta de um palito de dentes numa banqueta do balcão.  Era exatamente o personagem que o Brasil inteiro conheceu, de chapéu oco e gravata borboleta.  Vestia um paletó bonito, que evocava a elegância dos tempos da mocidade, e uma calça de bom corte, mas toda amarrotada, que denunciava sua boemia.  Não sei se a minha memória engana, mas acho que, como de costume, batucava o dedão no relógio cebolão que guardava no bolso do colete.”.

(Trecho que inicia o livro “Batuqueiros da Pauliceia”, cuja autoria é de Osvaldinho da Cuíca e André Domingues, de 2009.)

Mas, mais que isso, passar pela trajetória do multiartista, que completará 80 anos em 2020, é transitar pela história da construção do samba paulista.

Osvaldo Barro nasceu em 1940, em dia de carnaval, no bairro do Bom Retiro, ao ritmo da bateria do Cordão do Bom Retiro, entre as duas guerras mundiais.

Em sua adolescência, aos quinze anos, já demonstrava habilidades musicais nos cordões da época, tendo participado do surgimento das manifestações musicais que viriam a se tornar as futuras escolas de samba de São Paulo. 

Aos dezenove anos ingressa no Teatro Popular Solano Trindade, cujo nome já dava a tônica da temática tratada: cultura afro-brasileira. Daí, como integrante do grupo Monsueto Menezes, participa da composição da trilha sonora do filme “Orfeu Negro”, Palma de Ouro em Cannes e Oscar de melhor filme estrangeiro.

A vivência em meios sociais de alta representatividade popular, despertou uma consciência sobre a relevância da formação cultural, especialmente no campo da música.  Nesse sentido, levou, no ano de 1972, o ensino do ritmo das escolas de samba às escolas, agregando a expressão popular aos desfiles cívicos, uma ação inovadora e polêmica para a época.

Osvaldinho é ritmista, passista – ótimo dançarino – cantor e compositor, sambista representante de uma geração e com um legado ao samba paulista como poucos, pois seu olhar para o patrimônio do samba o tornou um ativista da cultura, que transita entre a tradição, pois é fundador de um patrimônio significativo, e a modernidade, pois sempre estudioso, vislumbrou ao longo de sua carreira, várias possibilidades de incursão no samba nas grandes mídias, o ritmo do samba e sua famosa cuíca a outros ritmos, como a Música Popular Brasileira, e a música internacional, ora tocou com Yoko Ono, Living Colour e Rolling Stones, entre outros grandes da música mundial.

Osvaldinho da Cuíca tocou com os mais significativos cantores e compositores de seu tempo, como Adoniran Barbosa, Zé Keti, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Nelson Ayres, Eduardo Gudin, Hermeto Pascoal, Clementina de Jesus, Elton Medeiros, Ismael Silva, Germano Mathias, Geraldo Filme e muitos mais.

Osvaldinho integrou o grupo icônico Demônios da Garoa(1967-1999), quando recebeu o 8º Prêmio Sharp de música.

No samba das escolas, funda a Ala dos Compositores da Escola de Samba Vai-Vai, em 1975, além de ser o compositor do samba que coroa a escola com o primeiro título, em 1978, o “Na arca de Noé quem não entrou não saiu mais”, e em 1982 novamente campeã com o samba “Orum Ayê, o eterno amanhecer”.  Alas da Cuíca e frigideira: foi ele quem introduz nas escolas de samba.

No entanto, Osvaldinho, embora participante do coração da Vai-Vai, participa da fundação de outras escolas, como a Gaviões da Fiel, em 1974, e a Acadêmicos do Tucuruvi, em 1976.

O filme de Thomas Farkas sobre a história da cuíca tem Osvaldinho como a espinha dorsal do curta-metragem. 

Foi Osvaldinho quem dirigiu o musical "O Canto dos Escravos" com participação de Clementina de Jesus e Geraldo Filme, seu parceiro ao longo da vida, por quarenta anos.

Seu lado vanguardista, o levou a participar de montagens como a “Matogrosso”, sob direção de Gerald Thomas, mesclando com a tradição, quando é o pesquisador central sobre a memória do samba paulista.  Participa efetivamente da elaboração do roteiro e filmagens sobre a vida do sambista e amigo de toda a vida Geraldo Filme.

Produziu em 1999 o primeiro CD "A História do Samba Paulista - I".

Essa é a cronologia de sua obra e legado, em permanente construção, mas é certo que sua história daria para preencher diversas páginas da história da música paulista, devido à profícua produção musical e atuação pelo samba.

Recentemente recebi Osvaldinho aqui em casa, no mesmo dia em que tinha como convidados Bira Show da Mangueira, membro da Velha Guarda da Bateria da Mangueira e filho de Padeirinho, fundador da Verde e Rosa, junto com Cartola, e amigo de Osvaldinho.  Também esteve conosco o cantor e compositor Roberto Riberti, cuja trajetória associada aos anos de resistência estudantil na ditadura coroou algumas composições relevantes, parceiro de Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e Eduardo Gudin.

Nesse dia, por volta do meio-dia, chegaram os célebres senhores à minha casa.  Eram onze da noite e ainda estávamos à mesa, ouvindo histórias de Osvaldinho sobre as suas malandragens no universo do samba, do rádio, das escolas de samba, das mulheres e amores, das amizades que lhe renderam preciosidades para a sua rica e inesgotável biografia.


Rita Alves

Especialista em Patrimônio Histórico e Cultura, Historiadora, Literata, autora de nove livros, membro do Centro de Estudos Fernando Pessoa, membro-fundadora do Instituto Orlando Villas Bôas, compositora, poeta, gravurista e pesquisadora da música brasileira.

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