Na Ponta do Disco

Os 20 Melhores Álbuns de Música Brasileira de 2023

quarta, 17 de janeiro de 2024

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“A música brasileira é plural, mas não caótica”

Esperamos acabar o ano em definitivo para poder concluir com propriedade essa dificílima lista. Com artistas que colocaram nas plataformas digitais álbuns e EPs até o finzinho do ano passado, tentamos recapitular um ano de lançamentos incríveis que podemos definir, grosso modo, com duas palavras: “potência” e “tambor”. 

Quando falamos em tambor, automaticamente remetemos aqui ao (enorme e genial) arranjador e compositor Letieres Leite (1959-2021) que infelizmente nos deixou na pandemia: “a partitura tem que entrar depois – primeiro você tem que entender a música com seu corpo inteiro”. 

Soltar o corpo – das amarras do querer, do poder e das emoções que ficaram “entaladas em nossos seres enlatados no tempo e espaço” –  talvez seja a melhor forma de entender e definir a canção brasileira do período pós-pandêmico e as palavras de Letieres e sua forma de compreensão da nossa música –  como fruto pulsante e corpóreo da diáspora negra –  ressoam em nós como  tambores, beats e timbres do melhor que existe na produção atual e ressoam vibrantemente nos álbuns aqui selecionados (sem uma ordem ou ranqueamento dos trabalhos):

“O Amor o Perdão e a Tecnologia vão nos levar para outro planeta” por FBC (DO PADRIM/ 2023)

O beatmaker, está de volta. “Baile” (2021) foi um dos discos mais aclamados dos últimos anos na parceria de FBC com VHOOR. Nesse álbum do fim de julho do ano passado, Fabricio nos embala com os beats e arranjos que nos fazem dançar e pensar em igual medida. Os metais e baixos (Tim Maia encontra o rap e o trap) dão a letra num álbum que está cheio de perolas nas parcerias com Ugo Ludovico, Pedro Senna e Abbot. Destaques para "Madrugada Maldita", "Químico Amor" (puro creme do amor liquído de Bauman), “O Que Te Faz ir Para Outro Planeta” (utopia do cerne dos desejos do ego encontra a distopia marciana de Elon Musk com toques da Racionalidade de Tim Maia), “Dilemas da Redes”, “Cherry”, “Qual a Chance” (UFFÉ e Cabana do Pai Thomas estão de volta) e “Desculpa”. As versões instrumentais, marca registrada do beatmaker, são um show a parte.

Negra Óperapor Martinho da Vila (Sony/ 2023) 

“um dia Timbó faleceu e do germe do seu sangue nasceu a Tulipa Negra dos sonhos seus”

Martinho da Vila é um Griô da canção e dispensa apresentações. É Griô pois mais do que um artista enorme, é um contador da história de um povo. Na estreia do álbum “Negra Ópera”, no histórico teatro Casa Grande, Martinho emocionou a todos com um álbum que fala do tempo, do amor e da morte. Assim como Zé Keti fez com “Malvadeza Durão” no show Opinião em 1964 – canção que é a sexta faixa do álbum de Martinho interpretada por ele e Mart’nália: o diálogo final de pai pra filha é de chorar. O álbum segue com mais uma de Keti, “Acender as Velas”, interpretada lindamente por Martinho e Chico Cesar. Falar da morte do feiticeiro Timbó, Malvadeza Durão, da Maria porta-bandeira, Iracemas, e do “sujeito periférico” que “morre sem querer morrer” é papo muito sério que só Martinho pelo samba consegue fazer com beleza ímpar. Falar da morte com a leveza e beleza de quem fala de amor é só para quem já atravessou Kalunga e voltou. “Tudo que vai ao chão vai voltar melhor”

Tudo é destaque quando o assunto é Martinho da Vila. 

“Marquês, 256” por Zé Ibarra (Coala Records/ 2023)

“caminhos abertos de vento lavando o quintal, sob o sol”

Ibarra transcende musicalidade em seu álbum de estréia: sua canção e voz lembram algo entre Caetano e Chico César com detalhes e sutilezas que que remetem ao Clube da Esquina. Um álbum que mostra a forca lírica e vocal de Ibarra.m As narrativas remete a “velha infância” do artista em seu locus de infância: vira-mundo da saudade. Destaque para “Vou-Me Embora”, “Dó a Dó”, “Itamonte”, “Vai Atras da Vida que Ela te Espera” e a linda versão de “Olho D’agua” de Caetano e Waly (Lua de São Jorge e Sailormoon), “o olho por onde eu vejo Deus, é o mesmo olho por onde ele me vê”. A versão de “San Vicente” (Brant e Inkisse Milton Nascimento) é sonho estranho de beleza. A canção de Ibarra tem coração americano. 

“7 Estrelas / Quem Arrancou o Céu” por Luiza Lian (RISCO/ 2023)

As mídias sociais, assim como os espelhos, são nossa grande projeção narcísica na contemporaneidade. O que parece obvio é recriado num sentido “miragético” a partir de quem tem a ousadia de olhar para o sol e não ficar cego – “its gonna itch burn and sting; to the ones starring at the sun”. Talvez essa seja a mensagem que abre o álbum de Lian com “A Minha Música É” que mistura a cancioneira de MPB com trap. Com produção extremamente rica e cheia de efeitos eletrônicos de Charles Tixier, o álbum traz temas que seguem pela linha do amor, desejos e pulsões em uma nova realidade de “forças” e “forças” digitais.  Em “Viajante”, a batida de funk encontra o eletrônico e as distorções da voz em canção de beleza rara: pulsante e enigmática. Destaques para “Tecnicolor” com participação de Céu, “Homenagem”, “Forca” e “7 Estrelas”.  A canção de Luiza Lian é voo de Icaro, penas de pavão que viajam sempre perto do astro-rei. 

“Amor Fati” por Mahmundi (Universal/ 2023)

Mahmundi fala de amor como se estivesse passeando em algum lugar sagrado entre o terreno e o mundano. Sua voz é uma esquina de Santa Tereza, uma forma de fazer as pazes com o tempo, uma cascata carregada de paz de espírito. É um mar que flui e reflui em uma eterna ressaca da paixão. Assim o próprio Nietzsche em “Ecce Homo” define a relação de “amor fati” (amor ao destino) quando pensa nos movimentos de fluxo e refluxo pela subjetividade do indivíduo em relação a suas pulsões. É assim a canção de Mahmund: um eterno devir do ser em relação ao amor como destino. Dionisíaco e apolíneo, exusiaco e oxalufanico – uma “gaia ciência” na sabedoria de um Preto Velho. As canções todas tem a assinatura da beleza vocal e singular de Mahmundi que traz a aceitação da vida em seu sentido pleno – ainda que por vezes, oloroso. A rítmica vocal da artista também é assombrosa. Destaques para “Amanhã” (parceria com Felipe Toca), “Fugitivos”, “Brisa 22”, “Sem Necessidade” (parceria com Tagua Tagua) e “Meu Amor Reprise” (com uma linha de guitarra que lembra muito “Um Sonho” de Nação Zumbi). Entre o sonho do amor e a dureza do real, “Amor Fati” é benção.  

“Iboru” por Marcelo D2

A hora é essa”! Assim inicia o álbum Marcelo D2 na voz de Wander Pire em seu bordão característico. Quem já viu a Mocidade Independente de Padre Miguel passar na Sapucaí já arrepia desde o início. E quando você acha que já se arrepiou o suficiente vem só pedrada atrás de pedrada no nono álbum do artista carioca.  “Iboru” é um álbum que segue a linha de “Assim tocam os MEUS TAMBORES" (2020). A parceria com o historiador Luiz Antonio Simas tem dado frutos de adoração a N’goma ou aos tambores sagrados das religiões afro-diaspóricas. Se como Simas mesmo já falou “o samba é a maior aventura civilizatória da humanidade” então D2 está realizando com maestria uma empreitada de mergulho, não apenas no complexo musical que é o Samba, mas nas escolas de samba, como terreiros e quilombos. As parcerias vão de Kiko Dinucci até Xande de Pilares, passando por Alcione, Zeca Pagodinho, Matheus Aleluia, Mumuzinho e Metá Metá. E até o mestre André da Mocidade, inventor da paradinha, é mais que merecidamente citado. Quem ama escolas de samba em toda sua potência artística e transformadora tem um prato cheio. Todas as canções são destaque nesse álbum que é flecha de Oxóssi certeira. 

“Me Chama de Gato que eu Sou Sua” por Ana Frango Elétrico (RISCO/ 2023) 

As paixões, as formas e miudezas sutis dos relacionamentos, o cabelo e o camel azuis são temas de formas fluidas de amor que a instrumentista, cantora e produtora Ana Frango Elétrico imprime em seu terceiro álbum de estúdio. A artista ganhou repercussão internacional em tempos de pandemia, e não à toa. Seu amadurecimento estético se reflete musicalmente na produção impecável do álbum. As linhas de baixo precisas de Alberto Continentino  mesclam a um pop-rock por vezes dançante por vezes contemplativo.  Tem Tim Maia, tem Clube da Esquina e um pouco do vocal sedutor de Gal Costa na voz de Ana. Os instrumentos e timbres utilizados desde as cordas em “Nuvem Vermelha” até os metais em “Debaixo de Tudo” casam perfeitamente nos arranjos evidenciando a potencia de Ana também como produtora e arranjadora. Destaques também para “Eletric Fish”, “Insista em Mim” e “Dela”. 

“Aguidavi do Jejê” por Aguidavi do Jejê (Rocinante/ 2023)

Ê Aláfiou! Ê Aláfià!”. Bogum, é “báu” em Eué. Lá estão os segredos da família de Ludovina Passos. Numa tarde quente em Lauro de Freitas um mestre, Raimundo Bogum, me conta a história do terreiro de Voduns mais famosos da Bahia que trespassa a Revolta dos Malês. A história será contada pelo lindo samba-enredo da Viradouro esse ano. Uma história semelhante também é contada por esse álbum que é um “movimento da palha do dendezeiro” capitaneado por Luizinho do Jejê. Tal narrativa é contada por cada faixa que é ponto de vodun. Rum, Rumpi e Lé em profusão de atabaques e agogôs. Em “Violão de Cabaça” (com participação de Gilberto Gil) o tema é um dos instrumentos mais brasileiros que existem, o berimbau. Mas fala de algo mais profundo, os lamelofones. A cabaça em seu sentido sagrado se perdeu na caixa acústica industrializada da viola e do violão – mas os toques ficaram. A cabaça é a caixa acústica do Brasil da viola caipira ao toque de capoeira. Alias, é esse “violão de cabaça” que perpassa todo álbum de forma primorosa, no dedilhado rápido e preciso que deu base para as guitarras da “axé music”. Em “Salve os Caboclos” o tema dos Caboclos de Julho é retomado lindamente para falar dos  nossos verdadeiros libertadores: marujos, candogueiros, capoeiras, juremeiros, boaiaderos, baianas e soldados rasos. O Brasil dos voduns e caboclos é mais bonito. Destaques também para “Ibaô-Ogum”, “Na Palha do Dendê” e “Chico Malabenguê”. Dangbé Bogum!

“Coração Bifurcado” por Jards Macalé (Biscoito Fino/ 2023)

Macalé é eterno e etéreo, assim como seu veio romântico irremediável. Como bem definiu a pesquisadora Sheyla Diniz, são “80 anos de uma voz, um corpo e um espírito livres”. Em “Coração Bifurcado” temos um Macalé  bufão e teatral, assim como seu lado “besta-fera”, mas sempre tem algo de melancólico e difícil em sua obra, mas que sempre ao fim transcende como algo que supera o fim-morte – à exemplo da terceira faixa do álbum, “A Arte de Não Morrer” que remete a faixa “Limite” em “Besta-Fera” de 2019 – “No Limite do Infinito”. Macalé traz uma visceralidade de quem superou aquele período de dor e o desespero de “Anjo Exterminado” e as agruras cavernosas de “Gotham City”, mas que insiste até o fim na força do amor. “Coração Bifurcado” é um álbum em que Macalé está “nú e só ao meio-dia”. Suas musas musicais também estão presentes: Ná Ozetti em “Simples Assim”, “Amo Tanto” composta com Nara Leão, “Mistérios do Nosso Amor” com Maria Bethânia e para nós e quem mais teve o privilégio de vê-lo no Teatro Rival Refit em 2023, pode assistir nosso velho Macau se emocionando ao falar de Gal Costa e logo em seguida cantar “Honey Baby” numa versão para rasgar o coração de todos na platéia – Macalé é nosso último e verdadeiro romântico. Destaque também para a faixa título “Coração Bifurcado” parceria com Kiko Dinucci que, junto com a produção musical de Romulo Fróes, solidifica a aproximação de Macalé com a nova cena instrumental de São Paulo .

“Caminhos” por Kennya Macedo (Tratore/ 2023)

Kennya Macedo merece atenção redobrada. Em seu EP de estréia, Kennya nos brinda com seu timbre vocal belíssimo e único e caminha por caminhos e encruzas da música brasileira desde a faixa inicial “Canto 1”, um pedido de licença à ancestralidade que remete ao disco antológico “Canto dos Escravos” com Clementina de Jesus, Geraldo Filme e Tia Doca da Portela. Dessa forma, utilizando da composição de ordem aparentemente simples Kennya já estabelece camadas histórica profundas da experiencia diaspórica negra no Brasil e convoca a ancestralidade como forma de justamente pedir licença aqueles que vieram antes para podermos estar aqui. Mas a proposição é mais complexa. Envolve o sentido perene da construção que pensa o presente pela relação sempre dialética entre o passado e o futuro: Sankofa. A versão de “Ferroviário” de Wando ganha lindíssimo arranjo e em “Altas Madrugada” de Juliano Holanda um canto do fundo da mata arrepia pelos tambores que ditam a pulsão da canção e no canto de Kenya: piar da coruja a meia-noite. Destaques também para “Barriga Cheia” (de Fernando França) e a versão de “São Jorge Guerreiro”. Entre um atabaque, um baixo groovado, uma guitarra distorcida e o vocal de Kennya Macedo está tudo que precisamos para “bater cabeça” e girar no sentido sagrado da Música.

“Belezas São Coisas Acesas Por Dentro” por Filipe Catto (Jóia Moderna-Tratore/ 2023)

A voz da cantora Filipe Catto é mais que um canto, é reza. Nesse álbum a celebração a canções de Gal Costa é sublime. Quem ama Gal tem parada obrigatória num álbum com lindos arranjos sob direção musical da própria Catto e Fábio Pinczowski Uma pena que algumas faixas são restritas no Spotify por questões de contratos para certos países pelas gravadoras como “Tigresa” e “Vaca Profana”. Tudo é destaque pois Gal é Gal. 

“Escuro Brilhante, Último Dia No Orfanato Tia Guga” por Rico Dalasam (Independente/ 2023)

É difícil definir Rico Dalasam. Gênio? Sem dúvidas. Uma força musical pulsante que fala da vida e suas agruras e belezas. Rico fala da luz que existe no escuro. Assim é o seu terceiro albúm de estúdio. Esse “Escuro, Brilhante...” é o termino de uma tríade musical e pessoal que começou com “Dolores Dala Guardião do Alívio". Esse fim de tríade nos brinda com um álbum duro, verdadeiro, real (como toda obra de Rico), mas que dá chance para o amor e a felicidade. Dalasam se reencontra com seu erê (“todo menino é um Rei, também quero ser Rei”)  e fala da possível superação da solidão e dor da orfandade. Tem algo em Rico que é tão profundo que dói – uma felicidade doída de alguém que voa para o amanhã, pisando com convicção no hoje e sabendo enfrentar as agruras do ontem. Em “Vicioso”, Rico traz a voz da diva Eliane Pittman para um trap memorável. Varias canções também tem parcerias com Dinho, Mahal Pita e Chibatinha. Destaques também para “Doce”, “Sol Particular”, “Quebrados” (com Liniker), “Sozinho”, “Imã” e “Lembre Seu Brilho”. 

“Aleatoriamente” por Rodrigo Ogi (2023/ Independente)

Ogi é um cronista da vida urbana, do futebol, das paixões, do talarico, do corriqueiro e do “corre”, do trivial  – e o faz de forma eximia e, paradoxalmente, profunda. Com produção de Kiko Dinucci, em 12 faixas Ogi nos brinda com o rasgado de sua voz ritmada e parcerias extremamente saborosas com nomes como Siba, Juçara Marçal, Tulipa Ruiz e Russo Passapusso. Em “Aleatoriamente” existe um sentido também de revide, da hora que irá chegar como o “cipó de Aroeira no lombo de quem mandou dar” – um recado poderoso e visceral que captura um sentimento do cinza geométrico (que a capa traduz precisamente) e opressivo da  selva de pedra paulista e de sua gritante desigualdade social.  Destaque para “Aleatoriamente”, “Valha-me”,  “Chegou Sua Vez”, “Peixe”, “PQ?” e “Ufa.”

“Interessante e Obsceno” por Martins (Deck Disc/ 2023)

Martins tem voz e cabelos cacheados angelicais, violão e letras que transitam entre outras entidades. Assim é “Interessante e Obsceno”, em que Martins surge mais maduro como cancioneiro. Em 2021, Ney Matogrosso lançou seu álbum de celebração dos seus 80 anos e fez questão de incluir “Estranha Toada” de Martins e Paulo César Silva. Esse amadurecimento e reconhecimento confluíram para o lançamento de um álbum com temas de amor, liberdade  e as múltiplas formas do querer: “deixe que o desejo seja o anexo da pele; e a liberdade o corpo físico da alma” – assim Martins canta em “Deixe”, quarta faixa do disco.  Martins é um grande dionisíaco e de “Me Dê”, do seu primeiro, até “Arrepia” desse álbum, a canção de Martins está embebida de pele, suor, serpentina, beijos de cinema, confetes, mas também algo de profundo e misterioso como sua voz. Essa profundidade talvez surja de forma mais desvelada na linda versão de “Eu e Você Sempre” de Jorge Aragão e Flavio Cardoso: coração rasgado.  Destaques para “Tua Voz”, “Deixe”, “Eu e Você Sempre” e “Nu”. 

“Taurus” por  Duquesa (Boogie Naipe/ 2023)

A MPB sempre carregou um certo elitismo pela questão da redefinição da indústria fonográfica em 1970-71, em especial pela entrada da Philips-Phonogram no Brasil. Esse mesmo elitismo (ou refinamento estético) acabou criando formas de sedimentação de relação de gosto musical que acabaram sendo incorporados pela branquitude. “Taurus” é um soco no estomago de tudo isso. Duquesa (Jeysa Ribeira), nascida em Feira de Santana, não tem papas na língua pra falar de luxo, sexo e os fetiches recalcados que atentam a toda a sociedade. Duquesa é Exu-Feminina (leiam o livro de Claudia Alexandre) e seus cornos são os mesmo de Beyonce em “Black is King” – os cornos da etnia Battamarima do Togo oeste – simbolos da realeza negra (ou os cornos de Oyá-Bufala). “99 problemas” é uma resposta a “99 problems” de Jay-Z e da celebre frase “and that b** ain’t one”. Vamos falar de empoderamento da mulher negra e mais importante falar do “elefante negro” da sala que são as relações culturais afro-atlânticas e de como lidar com essa ferida aberta da noção de “popular” e “folclórico” no Brasil. Não é simples e pode parecer incômodo, mas temos que lidar com esse debate. Destaques para “Classudona”, “Taurus”, “BigD!!!!” e “Glória” (Participação de Mano Brown e Rizz Get Busy). No mais, “cola” com a Duquesa. 

“Urucungo” por Fabiana Cozza (Biscoito Fino/ 2023)

Em uma live pelas redes sociais no fim do ano passado, Fabiana Cozza se emocionava ao cantar “Dia de Gloria” (Nei Lopes e Wilson Moreira) interpretada junto a Leci Brandão: “vamos fazer a nossa evolução geral; negro não vai ser rei só no carnaval”. Não se emocionava por menos, a canção é belíssima. Depois de “Dos Santos” (2020) a verve artística da cantora segue pelo repertório da musicalidade afro-diaspórica a partir da pesquisa e arte de um dos maiores intelectuais e artistas que o Brasil já produziu: Nei Lopes. Todas as composições são dele e parceiros. Cada uma representa uma de suas múltiplas facetas artísticas, filosóficas e espirituais: escritor da história brasileira e africana, dos terreiros e pontos, partideiro, jongueiro e conhecedor profundo dos segredos de Ifá. Destaques para “Urucungo” (parceria com Marcelo Menezes), “Ofertório” com Francis Hime, “Alquimias” (parceria com Everson Pessoa) e com participação de Ilessi, “Senhora do Mundo" (parceira com Wilson Moreira), “Jurutai” com Guinga e “Quesitos” que encerra o álbum (parceria com Wilson Moreira) em que Nei também canta. Nei Lopes na voz de Fabiana Cozza deu muito “samba, mistério e segredo” – samba é oração. 

“No Tempo da Intolerância” por Elza Soares (Deck Disc/ 2023)

“Eu nasci pobre, preta, da cor da noite; acostumada a ver meu ancestrais sofrerem no açoite”.  Assim segue  a letra de Elza Soares em ”Coragem” quinta faixa de seu álbum póstumo citando sua mãe, Rosaria Maria da Conceição, que lutou muita para criar ela e seus irmão. “Elza Deusa Soares” está mais viva que nunca. Seu veio de compositora – negado por produtores que queriam que ela gravasse sempre composições de outros, em geral sambistas homens – surge com potência ímpar nesse lindo álbum. A intolerância de ontem, o racismo estrutural, o feminismo, a homofobia e a intolerância de hoje são os temas que norteiam o álbum. Dez das treze composições são de autoria de Elza que ela guardava em anotações de um caderno e uma velha agenda: “Essa Nega tem poder!”. Por isso, segundo seu empresário Pedro Loureiro seria o “primeiro álbum autoral de Elza”. Loureiro também afirma que tem material para novos álbuns vindouros além de um DVD gravado dois dias antes da passagem de Elza. Tem pessoas que já se foram e estão mais vivas do muitas que já morreram e não sabem –  talvez precisem de uma boa lambida de vaca profana: “agua santa que virou saliva”. Destaques para a faixa-título “Nos tempos da Intolerância”, “Rainha Africana” (de Rita Lee e Roberto de Carvalho) e “No Compasso da Vida”. 

“Ayé Òrun” por Maíra Freitas e o Jazz da Minas (Danada Produções/ 2023) 

Atravessar Kalunga é morte e renascimento  na cosmologia Bakongo. O álbum “Ayé Òrun” traz muito desse processo do sol de “Musoni”. Não à toa a multi-instrumentista que assina a direção do álbum, Maíra de Freitas, e seu grupo atravessaram a Kalunga ou o “rio dos búzios” atlântico para em Luanda estrear a banda em 2019. A mensagem afro-atlântica está clara: corpo em potência transformadora – “mãe-orixá” que passeia, dança e toca livre sob os encantos de Eleguá. A liberdade harmônica do piano jazzístico de Maíra dá o tom e é acompanhada por um tambor leve, mas firme e potente (tambor atento) que permeia as faixas do álbum: “tem macumba no meu jazz”. E quando Zé Manoel surge em “Ateando Fogo” junto com a “flor retinta da mamãe” é revolução do fogo exúsiaco – fogo fátuo nos racistas -  fogo que destrói mas também cria coisas belas. Destaques para “Ausência do Encontro” (participação de Elisa Lucinda), “O Nascimento do Amor” (que faixa!), “Cabeça de Vento” (com aquela pitada deliciosa de Amaro Freitas), e “Água de Sal” (participação de Mart’nália e Anastacia).

“Canto Coral Afro-Brasileiro” por Os Tincõas (SANZALA CULTURAL/ 2023)

Os Tincõas nos anos 1960 revolucionaram a canção brasileira misturando toques de candomblé com bolero, gospel e R&B. Esse álbum inédito do grupo lançado ano passado é quase ou concour nessa lista por não estar na sincronia histórica, mas por ter chegado a nós só ano passado tem que ser incluído obrigatoriamente. É bonito ver um sonho antigo do lendário Adelzon Alvez finalmente chegando até nós. Com Dadinho no violão, Badu nos ganzás e agogôs, Matheus Aleliua nos atabaques somados ao Coral dos Correios e Telégrafos do Rio de Janeiro temos uma formula para a síntese do poder da musicalidade do grupo baiano. O álbum ainda leva a marca percussiva da lenda Pedro Sorongo. Todas as faixas são destaque nesse presente musical temporão nos foi foi agraciado. 

“Liberdade” por Jonathan Ferr (SLAP/ 2023)

Depois da “Cura” vem a “Liberdade”. O terceiro álbum do pianista vem carregado da sua musicalidade única calcada no jazz e com parcerias de peso como Kaê Guajajara, Tássia Reis, Rashid, Tuyo e Luedji Luna. Os Xhosa falavam de Ubuntu como filosofia da união que guiou Nelson Mandela a um projeto de unificação e perdão na Africa do Sul. Assim caminha a filosofia por trás do trabalho de Ferr. Seu amadurecimento como músico se guia também por músicas que trazem as harmonias complexas do jazz, mas não se fazem herméticas ao ouvinte, pelo contrário. A voz belíssima de Tuyo em “Mar Profundo” se mescla ao ritmo envolvente e as harmonias do piano: “pra me conhecer você tem que se afogar”. Destaques também para “Correnteza”, “Liberdade” com o vocal marcante de Guajajara, “We Never Change” (que nos transporta para Lauryn Hill) e “O Amor não Morrerá”. 


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