Historicizando as canções

O Pessoal do Ceará e a MPB

sexta, 23 de junho de 2023

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Pessoal do Ceará hoje é conhecido e entendido como um grupo de músicos cearenses que na década de 1970 entrou no mercado musical nacional, para além das questões de marketing, a chegada desse grupo é tratado também como uma ruptura no que seria a Música Popular Brasileira. Os nomes mais lembrados desse grupo são Ednardo, Belchior, Fagner, Amelinha e Fausto Nilo, entre outros nomes. Para além da Ditadura Civil-Militar como um marco importante, na década de 1960,  podemos citar alguns grupos artísticos que hoje são bastante conhecidos, como a Tropicália, Jovem Guarda e Clube da Esquina. É preciso relembrar que nesse período as discussões sobre o papel da música estavam em voga, tanto que a Jovem Guarda era vista por alguns como uma música alienada e alienante enquanto as músicas dos Festivais eram tratados como engajadas e a referência para a música brasileira, pelo menos para os setores acadêmicos. E o próprio movimento Tropicalista não foi bem aceito, em parte pelo uso das guitarras elétricas, que era visto como um símbolo do imperialismo estadunidense, apenas depois do exílio de Caetano e Gil que o movimento entrou na memória da MPB.

O cantor e compositor Ednardo em 1980 - Jair Malavazi/Folhapress

José Ednardo Soares Costa Souza, Ednardo, nasceu em Fortaleza no ano de 1945, é compositor e cantor. Talvez sua música mais conhecida hoje seja “Pavão Mysteriozo” de seu álbum O romance do Pavão Mysteriozo, 1974, que na verdade é um famoso folheto de cordel de autoria de José Camelo de Melo Rezende, que narra a história de um rapaz que se encontra apaixonado por uma moça, usa uma máquina capaz de voar em forma de pavão para resgatar a amada encastelada por seu pai.

“Pavão misterioso, pássaro formoso
Tudo é mistério nesse teu voar
Mas se eu corresse assim
Tantos céus assim
Muita história eu tinha pra contar
Pavão misterioso nessa cauda aberta em leque
Me guarda moleque de eterno brincar
Me poupa do vexame de morrer tão moço
Muita coisa ainda quero olhar”

Ednardo teve aulas de piano dos dez aos 15 anos e depois dos 20 começou a estudar violão sozinho. É formado em Química pela Universidade Federal do Ceará, no ano de 1969, começa a participar de um grupo com demais músicos e artistas cearenses que se reuniam no hoje lendário Bar do Anísio, no Mucuripe, na capital cearense. No início da década de 1970 parte para São Paulo, naquela época era inviável alguém fora do eixo Rio-São Paulo conseguir contrato com uma gravadora e ter o tão sonhado primeiro disco gravado. No ano de 1973 ele consegue gravar seu primeiro disco, pela Continental, Ednardo e o Pessoal do Ceará.

Imagem do disco de 1973

Em grande medida esse nome “Pessoal do Ceará” é por uma questão comercial, naquele período a chamada música regional tinha um apelo e as gravadoras se aproveitavam disso. O que já nos leva a uma questão, essa lógica faz parecer que só a música de São Paulo e Rio de Janeiro são nacionais mas o resto é regional, como se houvesse uma linha de importância, o que sabemos ser uma falácia. O próprio Fausto Nilo, em entrevista na TV Ceará, afirma não gostar desse termo, primeiro porque era um grupo diverso, cada um com seu próprio estilo e não havia um projeto estético defendido por eles, como no caso da Tropicália, por exemplo. Fausto Nilo afirma nessa mesma entrevista:

“Eu não sou um compositor do Pessoal do Ceará. Eu sou um compositor brasileiro [...]”

Belchior ainda sem seu famoso bigode, na TV
DVULGAÇÃO/CORTESIA DO ACERVO DOCUMENTAL DE JORGE MELLO

Belchior talvez seja o nome mais famoso desse grupo, até porque ele é um dos mais famosos da MPB. Antonio Carlos Belchior nasceu em Sobral, no Ceará, em 1946. Apesar de ser associado ao grupo Pessoal, ele não participou do disco de Ednardo citado anteriormente, seu primeiro disco foi lançado em 1974, intitulado somente como Belchior, pela gravadora Chantecler. Nesse disco já temos A palo seco e uma outra bastante interessante, “Todo sujo de batom”

“Quero uma balada nova
Falando de brotos, de coisas assim
De money, de banho de lua, de ti e de mim
Um cara tão sentimental”

Belchior foi um artista que já na década de 1970 questionava o que deveria ser MPB, como bem mostrado no documentário Belchior - Apenas um coração selvagem, dirigido por Camilo Cavalcanti e Natalia Dias. Em Todo sujo de batom Belchior mostra que não se importa com quem quer ficar ouvindo músicas sérias e não quer saber de quem cobra o que deve ou não ser cantado “Eu quero uma balada nova/ Falando de brotos e coisas assim”, como já discutido nesta coluna durante os anos das décadas de 1960-70 alguns artistas e grupos mais intelectualizados tentavam pautar como a música brasileira deveria ser, tanto quanto a sua forma e conteúdo, falar de coisas fúteis e bobas era mal visto, era preciso fazer um som que respeitasse as supostas raízes brasileiras e com letras engajadas, devemos lembrar que em 1964 houve um golpe civil-militar, o que aumentou todos esses embates em torno do papel da arte na nossa sociedade.

Todo sujo de batom é um protesto de Belchior contra essa patrulha que se tinha no período. É uma canção linda e direta, sem firulas e lenta, uma balada como as que criticavam. Fica aqui a recomendação de um registro em que Fagner canta magistralmente essa canção.



Créditos: Fundo Correio da Manhã

Raimundo Fagner Cândido Lopes, conhecido somente como Fagner, nasceu em Icó no ano de 1949. No início de 1970 se mudou para Brasília para fazer arquitetura na Universidade de Brasília, participou do festival de música da universidade e ficou em primeiro lugar com a canção Mucuripe, parceria com Belchior. Em 1971 foi para o Rio, conheceu Elis Regina, que gravou Mucuripe, sendo esse seu primeiro sucesso como compositor. Nesse mesmo ano ele ainda chegou a gravar um compacto simples pela RGE mas não fez sucesso.

Seu primeiro LP veio em 1973, chamado Manera Fru-Fru, manera, pela Philips. Nesse disco temos Mucuripe e também um dos maiores sucessos de Fagner, a canção Canteiros, baseada no poema “Marcha” de Cecília Meireles.

“Eu só queria ter do mato
Um gosto de framboesa
Pra correr entre os canteiros
E esconder minha tristeza”

Fica aqui mais uma recomendação, agora Fagner ao lado de Zé Ramalho tocando e cantando Canteiros.

CANTEIROS - Zé Ramalho e Fagner

Amelinha/ Reprodução

Amélia Cláudia Garcia Collares nasceu em Fortaleza no ano de 1950. Hoje conhecida apenas como Amelinha foi para São Paulo em 1970 para cursar Comunicação, começou fazendo participações em shows do amigo Fagner e em 1974 começou profissionalmente. Em 1977 lança seu primeiro disco, chamado “Flor da Paisagem”, produzido por Fagner. Em 1979 ganhou o disco de ouro com seu LP Frevo Mulher, faixa título composta por Zé Ramalho.

“Veneno, meu companheiro
Desata no cantador
E desemboca no primeiro
Açude do meu amor”

Em 1980, ela estabeleceu seu sucesso na música brasileira com a interpretação de mais uma canção de Zé Ramalho, Foi Deus quem fez você. Amelinha é bastante querida e lembrada em sua terra natal, mas não somente, ela é sempre cotada como uma das principais intérpretes de sua geração. 

Amelinha - Foi Deus Quem Fez Você

Fausto Nilo, Fagner e Nara Leão Fonte: Acervo MIS

Fausto Nilo Costa Júnior, Fausto Nilo, nasceu em 1944 na cidade de Quixeramobim, é um dos maiores compositores brasileiros, seja pelo respaldo como pela quantidade de composições e parcerias que tem. Ainda criança deixou a cidade natal e foi para Fortaleza, onde futuramente seria estudante do curso de Arquitetura da Universidade Federal do Ceará, aliás, ele foi da primeira turma do curso. Em 1971 se mudou para Brasília, passou por São Paulo e Rio de Janeiro. Fausto Nilo tem parcerias com Ednardo, Fagner, Moraes Moreira, por exemplo, mas a lista é vasta.

“Te vejo em minha vida como um retrato marrom
São lembranças perdidas de um passado, e tudo bom
Brilha um punhal em teu olhar
Sinto o veneno do teu beijo”
(Retrato Marrom, Fausto Nilo e Rodger Rogério)

Fausto Nilo apesar de ser mais conhecido por suas letras também é arquiteto e tem grandes trabalhos na cidade de Fortaleza, como a Praça do Ferreira e o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura.   

Praça do Ferreira, no centro de Fortaleza.Foto: Kid Júnior

Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura Créditos: Desconhecido

Em 2015, Fausto recebeu a Medalha da Abolição, maior comenda do Estado do Ceará. Como todas as outras figuras citadas nesse texto, Fausto é bastante reconhecido e querido pelas pessoas do estado. São artistas que não precisam aparecer na TV ou ficar nos mais ouvidos da plataforma de streaming para terem reconhecimento. Conseguiram deixar sua marca e não precisam provar mais. O próprio Belchior tem um centro cultural que leva seu nome, ao lado do Dragão do Mar.

Centro Cultural Belchior, Praia de Iracema Créditos: Site do Centro Cultural Belchior

Em suma, o texto de hoje serve como uma breve apresentação para alguns desses artistas, futuramente cada um receberá seu texto. Que muitos que não conheciam a Amelinha possam ouvi-la e quem não conhecia o Fausto Nilo agora sabe quem escreveu as músicas que provavelmente já ouviu por aí. Fagner teve parceria com Nara Leão e Belchior teve sua própria história que marcou a MPB. A música brasileira não se restringe ao que é feito no Rio e São Paulo, nosso país é gigante.







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