Colunista Convidado

O enclave erudito popular de Radamés, André Mehmari e o Duo Siqueira Lima

segunda, 30 de outubro de 2023

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Ouça o álbum aqui

Uma das razões da solidez e originalidade da MPB é que ela está plantada sobre monumentais alicerces eruditos nacionais. A começar pelos pianeiros pioneiros Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-1934), que contribuíram decisivamente para a formação dos primeiros gêneros musicais do país. Entre eles o choro, que seduziu o seminal Heitor Villa Lobos (1887-1959), autor de 15 peças clássicas baseadas no estilo, escritas entre 1920 e 1929, a partir de sua convivência com  músicos de origem popular como Pixinguinha, Donga, Sátiro Bilhar, Quincas Laranjeira e o primeiro grande mestre do violão brasileiro, João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco (1883-1947). O intercâmbio erudito popular seguiria ativo através de músicos como o gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), que dividiu com Pixinguinha (1897-1973) quase meio a meio a orquestração da música popular nativa no disco e rádio, no século passado. Porém, o também chorão, pianeiro, compositor e líder Radamés nunca abriu mão de sua face erudita.

 Foto: Tambores Comunicação

Em 1972, ele contemplou o Duo Assad de violonistas clássicos, com o “Concerto nº 3” para dois violões, oboé e cordas. Em 1981, a pedido deles, que passaram a se apresentar no exterior com grandes orquestras, a peça foi ampliada. É nesse formato (dois violões com flauta, tímpanos e orquestra de cordas) que ela é registrada no magnífico álbum “Dois violões em concerto” (Tratore), do duo Siqueira Lima com a Orquestra GRU Sinfônica, sob regência de Emiliano Patarra. O disco foi gravado no apropriado Estúdio Monteverdi, de Mairiporã, São Paulo, de um ilustre erudito popular contemporâneo, o também pianista André Mehmari. Niteroiense, nascido em 1977, e radicado em São Paulo desde 1995, ele é titular de vasta discografia, composições, arranjos e parcerias nas duas áreas (Quinteto Villa Lobos, Filarmônica de Minas Gerais, OSESP, Maria João Pires, Monica Salmaso, Ná Ozzeti, Aldir Blanc, Luiz Tatit, Hamilton de Holanda). Dele é a outra peça do álbum, a grandiosa “Portais brasileiros 4 – A saga dos violões”. “É a realização de um sonho antigo: compor para o duo que admiro e acompanho de longa data e receber a ótima orquestra de Guarulhos, sob o comando de Patarra, no meu estúdio, fazendo a primeira grande gravação orquestral no espaço que desenhei para esta finalidade”, exulta Mehmari.

Vencedora do Brazilian International Press Awards (EUA, 2014) e Profissionais da Música (Brasil 2015), a dupla central tem uma história curiosa. Formada pela violonista uruguaia Cecília Siqueira, que venceu seu primeiro concurso de violão clássico aos 15 anos, e o mineiro de São Bento Abade, Fernando de Lima, iniciado na viola caipira e dedicado ao erudito a partir dos 12, eles conheceram-se num Concurso Internacional de Violão Pró-Música Sesc, em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, em 2011, onde dividiram o primeiro lugar. Nascia a dupla, e o casal, que além de seis discos gravados (entre eles, uma elogiada versão inédita das “Bachianas Brasileiras no. 4”, de Villa Lobos) tem vasta rodagem internacional. Contracena com eles a GRU Sinfônica, a orquestra profissional do município de Guarulhos, São Paulo, cidade onde há um conservatório há mais de 60 anos, e uma Orquestra Jovem Municipal, dirigida pelo categorizado maestro Emiliano Patarra, com passagens pela Orquestra Sinfônica de Concepción (Chile) e pelo Teatro Colón, de Buenos Aires, Argentina. 

Foto: Tambores Comunicação

Dividida em sete partes, “Portais Brasileiros 4 – A saga dos violões”, de Mehmari é estruturada no rigor arquitetônico da música erudita, mas ecoa elementos populares. Após uma “Introdução” sob rica alternância de climas, interlúdios e reiterações, assomam os violinos ríspidos de “Corta jaca”, título homônimo de uma das mais célebres composições de Chiquinha Gonzaga, de 1905. Eles são agulhados por flauteios e o ribombar de orquestra, seguido por um remanso de violões, que introduz o lirismo do “Choro canção”. Este, transcorre emoldurado pelo mural de cordas (nove violinos, quatro violas, quatro violoncelos, pontuados por dois contrabaixos) em circunvoluções graves. Já o vivace “Baião caipira” esgrime energia binária, costurada pelos violões em bordados e escalas de cintilação contrapontística, com intensa variação de atmosferas. Pé ante pé, a “Polca carioca” fornece lirismo e encantamento em seus pouco mais de dois minutos de duração. Já a “Valsa de esquina” pincela algo de nostalgia e solenidade em sua discrição ternária. E “Tempo primo e coda” arremata e sumariza a peça multifária.

O “Concerto nº 3”, de Radamés, com destaques para os solistas Júlia Pedron (flauta) e Beto Frota (tímpanos), subdivide-se em três modos. No “Allegro”, predomina o diálogo intenso entre a orquestra massiva permeada pela flauta e o duo de violões em frequentes primeiros planos, pontuados pelos rufares de tímpanos. No “Expressivo”, de tônus mais reflexivo e lento, há espaço para maior lirismo e escalas de violões, até acentuações mais graves. “Ritmado”, o tema mais longo (7:39’), fecha o álbum entre miríades de pzicattos, um refluir de sopros e vigorosa pavimentação de violinos, que denotam a maestria da escrita do anfíbio Gnattali. Um sutil equilíbrio entre a densidade clássica e a leveza da caligrafia da música popular - duas linguagens que ele sempre dominou como poucos. Um paralelismo também disseminado na fina tapeçaria do artesão Mehmari. (Tárik de Souza)


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