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O álbum “Jongo do Vale do Café” marca encontro com as raízes sólidas da MPB

segunda, 25 de setembro de 2023

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O tamborzão do jongo, recentemente, teve um filho temporão – para os adversários, bastardo – o funk carioca, numa conexão continental do nosso baticum dos terreiros com o estilo afro americano conhecido como Miami Bass. Mas, o recém lançado álbum digital “Jongo do Vale do Café” esquadrinha as raízes incontestáveis do samba carioca (e adjacências da MPB genérica), através de 32 pontos centenários, oriundos das comunidades do Vale do Paraíba, nunca antes registradas em fonogramas. O belíssimo projeto de resgate, entrou neste dia 23 de setembro, nas plataformas digitais com lançamento festivo previsto, iluminado por fogueiras e bandeirinhas, no Viaduto de Madureira, no Rio. É o local histórico onde muitas famílias de escravizados chegaram do Vale há quase 200 anos para fundar o bairro, e instalar o jongo no Morro da Serrinha. Cinco quilombos centenários se organizaram para o show de lançamento reunindo cem artistas em torno dos épicos tambores caxambú e candongueiro. Foram previstas homenagens aos lendários Mestre Darcy do Jongo da Serrinha e a grande mãe de santo e jongueira mais antiga em atividade, Tia Ira Rezadeira.  

Capa do álbum "Jongo do Vale do Café"

O pesquisador e músico Marcos André assina direção artística e musical do “Jongo do Vale do Café”, em parceria com Thiago da Serrinha, cujo segundo show da turnê está agendado para dia 7 de outubro, dentro de um quilombo do Vale do Café, no Parque das Ruínas do Jongo de Pinheiral, na cidade deste nome no Estado do Rio, onde será realizado o grande Encontro de Jongos, com diversos grupos do Rio e de São Paulo. A turnê segue Brasil a dentro. “Essa obra vai iluminar o público em geral sobre as raízes e a origem do jongo, sua história e tradições e também dar visibilidade aos circuitos de turismo étnico, que hoje desperta muito interesse no planeta”, comentou Marcos André.

O disco foi gravado em uma semana num terreiro de terra batida, numa floresta do Quilombo São José, em Valença, Estado do Rio de Janeiro. Não por acaso é a terra da icônica diva negra Clementina de Jesus (1901-1987), uma fundamental difusora das raízes de nossa tradição musical afro, inicialmente instalada em Oswaldo Cruz, berço da Portela e depois no Morro da Estação Primeira de Mangueira. Há 30 anos dedicado ao tema, Marcos André descreve como o disco foi registrado. “O estúdio e o sistema de gravação foram montados numa floresta no alto do quilombo, utilizando técnicas de gravação de orquestra para trazer para dentro da casa do ouvinte a esfera mágica e a energia de uma roda de jongo de dentro do quilombo”. Microfones aéreos foram instalados em buracos no chão para captar o som dos tambores e direcionais para captar as vozes dos mais de 40 cantores. 

O engenheiro de som franco-brasileiro Philipe Ingrand, o Doudou do Som, cuidou dos detalhes técnicos da gravação e a masterização foi realizada na Califórnia, pelo coreano Ken Lee Mastering. Ao contrário da maioria dos registros de jongo disponíveis com intromissão de instrumentos ocidentais de cordas e sopros em arranjos modernos, estes trazem somente vozes e tambores, sem “maquiagem” de estúdio. A autenticidade do canto é transmitida por duas comunidades remanescentes dos quilombos do Vale do Café: a do Quilombo de São José e a do Jongo do Pinheiral. Ambas foram fundadas por volta de 1850 e desvelam pela primeira vez suas manifestações culturais, sem intermediários. O Jongo de Pinheiral é liderado por três Mestras irmãs, Fatinha, (uma das mais antigas e reconhecidas jongueiras do país), Meméia e Gracinha. Há mais de 40 anos elas recolheram os pontos de jongo centenários dos pretos velhos já falecidos e criaram uma escola para repassar as tradições às novas gerações.

Os jongueiros do Quilombo de São José - cujas interpretes no álbum são Gilmara, Luzia e Luciene, da nova geração - descendem de dois casais de africanos trazidos de Angola num navio negreiro para o trabalho nas fazendas de café. Viveram praticamente isolados, sem luz elétrica e comunicação, até 2005, em casas de adobe e telhado de sapê (como se ouve numa das faixas, a singela “Casinha de pau a pique/ telhado de sapê”), sobrevivendo do que plantam e colhem. Os 300 moradores do quilombo são casados entre si e constituem uma só família.  Em enclaves socias como esse, nasceu o jongo, o primeiro bem imaterial do Rio a ser tombado como patrimônio histórico pelo IPHAN. Nas faixas do álbum, todas de domínio público, ele se torna acessível para que seja melhor estudado e continue inseminando o samba e outras vertentes da manifestação musical do país.

São faixas curtas, na maioria com duração de um a dois minutos, ou um pouco mais quando há três temas emendados como “Senta no banco de areia” (“sereia tá no mar”), “Minha mãe é uma sereia” (“mora no fundo do mar/ eu também sou filha dela/ moro no mesmo lugar”) e “Se eu soubesse que ôcê vinha (“eu mandava te esperar/ mandava uma canoa”). São pequenas células melódicas repetidas com apoio do coro e calço dos tambores e palmas. Os refrões com coros de resposta podem ser contundentes como o de “Não lava roupa” (“com meu nome/ que meu nome não é sabão”), ou “Santa Fé”: “por isso mesmo que não vou na Santa Fé/ a mulher matou o marido/ com uma xícara de café”.

Também há rudes e operosos cantos de trabalho, forjados na labuta do dia a dia, como “Tia Maria” (“pra coser meu paletó/ a agulha é de bambu/ e a linha é de cipó”), e “Lavadeira” (“ ô lavadeira/ o que fez com minha camisa?/ Foi rolando, foi rolando/ foi parar no (rio) Paraíba”). “Bombeiro da bomba” pede sem rodeios: “me dá água pra beber”. “Eu vou pra Angola” convoca: “Ah, meu povo, eu vou pra Angola/ anda meu povo, vem também”, como também “Adeus, cangoma” (“que eu já vou me embora”). Por sua vez, “Carreiro Mestre” destila lirismo: “Carreiro Mestre, qual o nome do seu boi?/ o meu boi chama saudade/ do amor que já se foi”. 

Esses cânticos primaciais ecoaram na música popular brasileira gravada, como no caso de “Minha gente eu vou me embora”, “o que me dão para levar/ eu levo saudades/ oi, no caminho eu vou chorar”. Versos muito semelhantes entram no improviso de Jamelão, no aparentado partido alto “O samba é bom assim”, de Norival Reis e Hélio Nascimento, gravado pelo mangueirense, em 1959: “ah, eu vou embora/ que me dão para levar/ levo penas e saudades/ no caminho eu vou chorar”. 

Também há algum eco, do jongo “É hora”, inclusive melódico, na abertura do “Jogo de roda “, de Edu Lobo (com Ruy Guerra), que Elis Regina defendeu num festival de MPB, de 1966: “É hora/ é hora/ é hora de roda”. Já “Morena quem te contou” (“que essa noite serenou/ ai, eu deitado no seu colo/ sereno não me molhou”) cabe no baião de sucesso “Esta noite serenou”, de Hervê Cordovil, gravado por Carmélia Álves e Dalva de Oliveira no começo dos anos 50: “”moreno quem te contou/ que esta noite serenou?/ eu deitada no seu colo/ sereno não me molhou”. Alicerces de plantação perene, que explicam a solidez da música do país, como sentencia outro jongo, “Lá no jequitibá”: “fui buscar o meu axé/ encontrei minha raiz/ encontrei a minha fé”. (Tárik de Souza)


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