Colunista Convidado

Novas veredas de “Milton”, por Mônica Salmaso (voz) e André Mehmari (piano)

por Tárik de Souza

segunda, 19 de junho de 2023

Compartilhar:

Em 1998, um pianista ainda iniciante, o niteroiense André Mehmari, ganhou com facilidade, em São Paulo, o I Prêmio VISA na categoria Instrumental. No ano seguinte, foi a vez da paulistana Mônica Salmaso levar de lavada o mesmo Prêmio Visa, como cantora. Eu estava em ambos os juris e votei nos dois, que hoje se associam – já ultra consagrados em suas especialidades – em torno do repertório de um ícone, Milton Nascimento. “(...) Ele traz uma ancestralidade, uma história de um Brasil profundo, que é a nossa própria história, que vem na voz dele, tanto no som da voz e da alma quando ele canta, como na escrita. É um pilar da cultura brasileira, ele coloca a gente nesse lugar, como se fosse uma catedral nossa”, erige Mônica. “Essa música é parte indissociável da minha vida”, sumariza Mehmari. “Sou um grande fã da produção do Milton desde a infância, conheço bem essa obra, que eu toco desde sempre. Quando chegamos ao nome dele para fazer o especial, dei carta branca para a Mônica escolher o repertório que ela quisesse cantar”, detalha Mehmari.

Tudo começou na infame pandemia. Parceiros na música há muito tempo, Mehmari & Mônica (que recentemente excursionou com Chico Buarque, na turnê “Que tal um samba?”), no período de isolamento, gravaram o trabalho “Quarentena”, veiculado no YouTube. No repertório estava a autobiográfica “Morro velho”, de Milton. “Ficamos profundamente tocados com a mensagem que aquela música nos trazia e o que ela trouxe em nós mesmos como artistas”, avalia Mehmari. “Esta canção, que sempre foi emocionante de cantar e tocar, durante o isolamento na pandemia, com tudo que estávamos sentindo, vendo, lendo, tomou enormes proporções emotivas tanto em mim quando no André”, define Mônica. Uma das três composições que lançaram Milton, no Festival Internacional da Canção, de 1967 (as outras duas foram “Travessia” e “Maria, minha fé”, não incluídas), “Morro velho”, letra e música dele, desata a saga de dois meninos criados no interior - “filho de branco e de preto/ correndo pela estrada atrás de passarinho”. Mas só o herdeiro do senhor vai embora, para “tempos de estudos na cidade grande”. E “quando volta já é outro/ já tem nome de doutor/ e na fazenda é quem vai mandar/ e seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha”. Voz úmida e etérea, Mônica perpassa a pungente narrativa entre rendilhados e comentários à parte do piano de Mehmari.

Milton” abre com uma citação do “Clair de lune”, do erudito Debussy, engastada na onírica “A lua girou’ (“traçou no céu um compasso/ eu bem queria fazer um travesseiro dos teus braços”), outra só do compositor. Ele musicou a “Canção amiga”, sobre um poema de Carlos Drummond de Andrade (“Eu preparo uma canção que faça acordar os homens/ e adormecer as crianças”) pairando em desempenho encantatório da intérprete. Não é o único escritor ilustre agraciado no disco. O igualmente mineiro Guimarães Rosa tem um trecho de seu conto “A terceira margem do Rio” narrado por Mônica, que, mediada pela flauta baixo soprada por seu marido Teco Cardoso, e Mehmari tripulando uma tilintante marimba, navega na parceria homônima de Milton e Caetano Veloso. Ela desce caiada de um modernismo intrínseco: “água da palavra/água calada, pura/ água de rosa dura/ proa da palavra/ duro silêncio, nosso pai”. Da mesma rara dupla, Cae-Milton é a saltitante libertária “Paula e Bebeto” (“Qualquer maneira de amor vale a pena/ qualquer maneira de amor valerá”), escolhida para encerrar o disco. Mehmari expõe o tema e trabalha sobre ele com acordes dominantes, enquanto Mônica imprime leveza ao frescor da letra.

O processo de gravação do disco ocorreu em um único dia, 14 de dezembro de 2020, no estúdio Monteverdi, de Mehmari, em São Paulo, onde ambos moram. “Esse foi um instante de criação muito rápido. A gente se encontrou, tinha a tonalidade, o tom das músicas combinado, e tudo foi sendo resolvido ali. Foi realmente celebrar a gente estar junto e poder fazer música, os corações abertos e a criatividade solta e doida pra existir, pra fazer coisas boas.(...) Temos muito anos de convivência, existe uma intimidade musical, o André sabe como eu canto, eu sei como ele toca, ele sabe como eu penso, por onde minha voz vai”, descreveu Mônica.. “Existe um humanismo profundo que emana da música (e da voz) de Milton, que é algo de imenso valor e que devemos sempre reverenciar e amplificar”, acredita Mehmari. A escolha de roteiro do álbum privilegiou o Milton místico, eco do cantochão das igrejas e o interiorano, como na densa “Noites do sertão” (Milton/ Tavinho Moura), cravejada de dissonâncias ao piano. Tavinho também é co-autor (com Fernando Brant) de outro destaque do disco, “Paixão e fé” (“já bate o sino, bate na catedral/ e o som penetra todos os portais/ a igreja está chamando os seus fiéis”), sob medida para a emissão sombreada de Mônica.

 (crédito:  Dani Gurgel/Divulgação)(crédito: Dani Gurgel/Divulgação)

Três canções selecionadas tem na estrutura dos arranjos rodopios valseados, como “Milagre dos peixes” (mais uma parceria com Brant), insuflada pelo sax de Teco Cardoso, entre improvisos e atonalidades. “Casamiento de negros”, da chilena Violeta Parra, do gênero local “parabien”, levada no idioma original (que Milton propagou em seu “Clube da esquina vol. 2”), transcorre como uma pequena fábula racial, ressignificada pela intensa Mônica. Ela não é uma cantora acompanhada, mas uma parceira vocal do instrumentista, como ocorre na delirante “Saudade dos aviões da Panair (Conversando no bar)”. A canção recorrente embaralha memórias de infância (“e lá vai menino, senhor de todo fruto/ sem nenhum pecado, sem pavor/ o medo em minha vida nasceu muito depois”) e de uma empresa de aviação destruída pelo regime militar (“morri a cada dia dos dias que eu vivi/ cerveja que tomo hoje/ é apenas em memória dos tempos da Panair”). Nessa direção, adensada por uma citação de “San Vicente”, a bela e enviesada “Credo” (outra parceria com Fernando Brant), censurada na época da ditadura, alinha-se com o clima de “Pra não dizer que não falei das flores”, de Geraldo Vandré. Numa clave esperançosa, que a ressoante Mônica e o pontilhista Mehmari redimensionam, em partilha estética de alta voltagem: “Caminhando e vivendo com a alma aberta/ aquecidos pelo sol que vem depois do temporal/ vamos, companheiros pelas ruas de nossa cidade/ cantar, semeando um sonho que vai ter de ser real”.

Comentários

Divulgue seu lançamento