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Nelson Cavaquinho, o Rei Vagabundo

sexta, 29 de outubro de 2021

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“Quanto mais elevado é o espírito mais ele sofre.”

Arthur Schopenhauer


São 110 anos de Nelson Cavaquinho.  E talvez alguns séculos de sua filosofia de vida.

Faleceu de enfisema pulmonar, aos 74 anos. O pai, Brás Antônio da Silva, era integrante da banda militar, tocando tuba.  Nasceu na rua Mariz e Barros, na Tijuca. Tocava cavaquinho e violão.

E começo o breve artigo contando a morte, que tanto assombrou Nelson, a ponto de ele atrasar os ponteiros de um relógio, num dia que, disseram a ele, seria o dia de sua morte.

Também porque foi ele o que mais cantou aquela que o assombrava. Não de modo sombrio, mas como parte do ciclo inevitável. Indesejável, mas presente, aliás, muito presente em suas canções e em sua vida, sempre por um fio.

Não fosse a conhecida origem e formação humilde, diria que Nelson teria sido um dos mais relevantes discípulos de Arthur Schopenhauer, filósofo alemão do século XVII-XIX, e quem introduziu o pensamento intitulado “pessimismo filosófico”.

Nelson tem em suas composições, em torno de 150, um significativo repertório vocabular de palavras associadas ao pessimismo, trazendo temas de teor altamente filosófico, como o bem e o mal, a passagem do tempo, os desenganos.

Suas composições transitam no âmbito das grandes questões humanas e muito pouco nas efemeridades, como as paixões, ou temas românticos ou festivos. Ao mesmo tempo, há no cerne de suas composições um estranho antagonismo quase vislumbrando alguma luz.  Possivelmente a única janela entreaberta seja sua dedicação à Estação Primeira de Mangueira, para a qual compôs célebres canções, o que lhe rendeu o enredo em 2011, ano de seu centenário, o “Filho Fiel”, ainda assim se autointitulando “o rei vagabundo”.

Poderíamos citar ainda Friedrich Nietzsch, outro filósofo alemão do século XIX, cuja obra questiona a moral, a religião, a verdade, e definiu a vida como uma grande tragédia. Teria Nelson vivenciado sua filosofia?  Certamente. Entretanto, uma doçura quase ingênua faz com que as músicas, embora trágicas em sua maioria, tenham um potencial poético baudelairiano.

A minha tese pode ser justificada com a citação de trechos de suas obras poético-filosófico-musicais, como “tire seu sorriso do caminho/que eu quero passar com a minha dor’ (A flor e o espinho); ou ainda “É o juizo final / A história do bem e do mal / Quero ter olhos pra ver / A maldade desaparecer” (Juízo final);  ou ainda quando transita entre o personagem, a solidão e um amor enganado “A luz negra de um destino cruel / Ilumina um teatro sem cor / Onde estou desempenhando o papel / De palhaço do amor” (Luz negra);  ou ainda quando questiona a motivação do viver “Aqueles que nascem / Porque é preciso / Trazem uma lágrima / Em vez de um sorriso. / Se viver é bom / Como é que a vida diz: / "Tens que sofrer pra ser feliz".” (A vida); ou ainda quando vislumbra alguma esperança de que haverá, ainda que seja em Mangueira, alguém que chore com sua morte “Em Mangueira / Quando morre um poeta / Todos choram / Vivo tranquilo em Mangueira porque /Sei que alguém há de chorar quando eu morrer” (Pranto de poeta), ou quando conta que o tempo passa, mas deixa marcas “Se eu for pensar muito na vida / Morro cedo, amor. / Meu peito é forte, / Nele tenho acumulado tanta dor. / As rugas fizeram residência no meu rosto / Não choro pra ninguém / Me ver sofrer de desgosto.” (Rugas).

Nelson teve parceiros significativos, como Guilherme de Brito, que assina com ele “Folhas secas”, entre tantas outras, ainda que as folhas sejam secas, o que nos faz acreditar, pelo histórico, que essa primeira estrofe teria sido a composta por Nelson – mera especulação.

Poderia citar dezenas de títulos, que segundo José Saramago, representa metade do conceito de uma obra.  Mas atenho-me a referenciar aqueles que colaboram com essa poeta a significar a minha teoria de que Nelson era um filósofo em sua essência: Luto, Sei sofrer com resignação, Quero alegria, Palhaço, Abismo, Choro do adeus, Depois da vida, Coração de pedra, Lágrimas sem júri.

Nelson vendeu sambas para pagar contas de bar, então por vezes ouço um ou outro samba e penso que pode ter sido escrito pelo Nelson.  Sim, um mistério delicioso, como o bem e o mal, como a vida e a morte, a dor e a alegria, como o próprio Nelson Cavaquinho.


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