Na Ponta do Disco

Milton Nascimento 80 anos – destaques de uma travessia musical

por Fernanda Patrocinio

quarta, 26 de outubro de 2022

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Quais são os ecos da música de Milton Nascimento? Canções, discos, parcerias, além dos diálogos com outras artes, como a dança e o cinema, podem ser um grande indicativo. Um cancioneiro que é uma assinatura, com harmonia e criação marcadas pelas vivências de quem já afiava os ouvidos e a voz nas montanhas do Sul de Minas Gerais, mais precisamente na cidade de Três Pontas. A maturidade, na vida adulta, moldou ainda mais a criatividade e o improviso, também devido às trocas com gigantes da Música Popular Brasileira, do folclore latinoamericano, do jazz e do folk estadunidense.

Bituca carrega em sua música as provocações e os incentivos feitos por sua mãe, Lilia Campos, ao ensinar piano ao filho mais velho. Instrumento este que, aliás, ela aprendeu com as aulas que teve com o maestro Heitor Villa-Lobos. A canção “Lilia”, presente no disco Clube da Esquina 2 (1978), é uma homenagem e uma ode a este amor, cujo estreitamento e inovação latentes ultrapassaram aquilo que o vocabulário poderia captar.

Josino Campos, o patriarca, aproximou o filho do rádio, seu local de ofício e onde Nascimento também trabalharia. Ondas que ligam mundos através das músicas. Mais do que isso, a partir da segunda metade dos anos 1960, Milton Nascimento seria um dos nomes cujas canções embalariam gerações inteiras, do ânimo com os festivais de música às angústias de quem viveu a Ditadura Militar e testemunhou as urgências do Brasil. 

O disco Milagre dos Peixes (1973) é o mais experimental trabalho de Nascimento e é uma das peças com evidências da repressão: das 11 músicas presentes, oito foram censuradas. Porém, a realidade está ali – trata-se de um disco que traz uma narrativa acerca dos ambientes cotidianos na ditadura, representados com instrumentos, vocalizações e artifícios miméticos para se compreender, sensorialmente, os Anos de Chumbo. 

Vale lembrar que Nascimento não foi para o exílio e aqui ele sofreu as intimidações do regime na época. Experiência com consequências expressas no cancioneiro até a redemocratização. Enquanto “Pablo” (Milagre dos Peixes) expressa a relação familiar do músico naquele momento, “Coração de Estudante” (Ao Vivo, 1983) foi um dos hinos para a reabertura democrática no Brasil, retratando as aflições e a esperança da juventude da época. 

A atuação política de Nascimento se dava, sobretudo, com suas parcerias. O compositor Fernando Brant é possivelmente o mais completo cronista musical para a harmonia criada por Nascimento. As canções com forte cunho social, como “Beco do Mota”, são frutos desse encontro – a parceria ainda rendeu “Travessia”, “Canção da América”, “Morro Velho” “Maria minha fé” e tantas outras. 

“Travessia” é a canção que os projetou para o cenário nacional, afinal, trata-se da vice-campeã do Festival Internacional da Canção (1967).

Milton Nascimento no IV Festival da Musica Popular Brasileira, no Teatro Record, em novembro de 1968 — Foto: Estadão Conteúdo/Arquivo

Mas a mais famosa parceria de Milton Nascimento aconteceu com seu grupo de amigos de Belo Horizonte, processo que resultou nos discos: Clube da Esquina (1972) e Clube da Esquina 2 (1978). Milton Nascimento, Toninho Horta, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes e Márcio Borges tiveram liberdade musical para criar aquilo que seria o primeiro disco juntos, após uma temporada criativa em Niterói. 

“Clube da Esquina” marca a sonoridade deste grupo de amigos mineiros, bem como consagra ainda mais Nascimento na MPB e lança os demais integrantes ao mercado fonográfico nacional.  É neste disco que se percebe a forte influência de Beatles, sobretudo do disco “Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band” (1967), marcado pela inovação em sua produção musical. “Nada será como antes”, “Paisagem na janela”, “San Vicente” e “Cravo e canela” são alguns dos exemplos de inventividade sonora da reunião deste grupo de amigos.

"Clube da Esquina 2” abriu ainda mais o leque de parcerias trazendo os membros do primeiro disco, além de nomes como Chico Buarque, Elis Regina, Gonzaguinha e outros grandes neste processo criativo. Elias Regina foi uma das grandes parceiras musicais de Nascimento, sendo a primeira a gravar uma composição de autoria de Bituca: era “Canção do sal” (1966), que retratava a vida de trabalhadores nas salinas no Rio de Janeiro, com inspiração nas canções populares dos negros escravizados nos Estados Unidos, mais precisamente trabalhadores das plantações de algodão. 

Milton trabalhou ainda com nomes consagrados do jazz, como Herbie Hancock e Wayne Shorter (este último, com direito a disco conjunto Native Dancer, de 1974) – o disco Courage (1968) foi o primeiro trabalho de Nascimento produzido por profissionais ligados ao jazz americano, não por acaso foi feito pela CTI, renomada gravadora do gênero.

Ao lado de Brant, Bituca compôs todas a trilha do primeiro espetáculo do Grupo Corpo, de dança contemporânea, fundado pela família Pederneiras. A peça “Maria, Maria” (1976) é ainda hoje um marco na dança contemporânea brasileira, além de levar para os palcos e para o mundo uma das principais canções de Nascimento, feita para este espetáculo.

O cinema foi inspiração para Bituca – “Uma mulher para dois” (1962), de François Truffaut é creditada como a narrativa que o encorajou a compor. No cinema, Bituca participou da montagem da trilha sonora de “Tostão – fera de ouro” (1970), além de ter assumido um papel (como ator) em “Fitzcarraldo” (1982), de Werner Herzog. Na TV, são dezenas de novelas que puderam contar com o cancioneiro miltoniano na trilha sonora.

O cantor Milton Nascimento, em 1977, na cidade de Três Pontas (Paulo Moreira)

Em 2022, mais precisamente no dia 26 de outubro, Nascimento completa 80 anos, assim como seus contemporâneos da geração 1942 da MPB. Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Caetano Veloso são alguns dos expoentes vivos desta geração octogenária. 

Este ano marca também a despedida de Bituca dos palcos, a partir da turnê “A última sessão de música”, que cumpre compromissos finais em novembro. São os 60 anos de carreira de quem ajudou a colocar a riqueza cultural de Três Pontas, de Minas Gerais e do Brasil pelo globo. Um encontro de fases e faces da trajetória miltoniana, narradas em uma viagem de trem, adornada pelo cenário dos artistas Os Gêmeos e com figurino assinado pelo estilista Ronaldo Fraga. 

A roupa é um capítulo à parte, com referências ao artista plástico Arthur Bispo do Rosário e ao escritor João Guimaraes Rosa. A moda, aliás, é forte aliada de Nascimento, com mudanças ao longo das décadas, tendo a boina como sua principal marca. 

João Guimarães Rosa faz-se muito presente na travessia musical de Milton Nascimento, assim como Carlos Drummond de Andrade. Um território em prosa e verso narrado a partir de si. As nuances de Minas. A terceira margem de um rio são as nossas controvérsias e humanidades. Ondas que ressoam quem somos e de onde viemos. Assim como os trilhos dos trens que ligavam as montanhas mineiras ao litoral, como o Rio e Janeiro – terra natal de Nascimento. Sobre ser do mundo e ser Minas Gerais.



Fernanda Patrocinio jornalista e pesquisadora. Doutoranda em Sociologia no Departamento de Pós-Graduação em Sociologia na Universidade de São Paulo, tendo como objeto de estudo o cancioneiro de Milton Nascimento. O trabalho vem sendo desenvolvido com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. Mestra em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria. Jornalista graduada na Faculdade Cásper Líbero. E-mail: faraujopatrocinio@gmail.com.br.



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