Colunista Convidado

Lupicínio, o Gênio Gaúcho de Várias Latitudes da MPB

quinta, 01 de fevereiro de 2024

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Uma lenda, uma entidade, o compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974) está entre os maiores fenômenos da história da MPB. Um negro gaúcho de origem pobre, que só estudou até o antigo ginásio, foi bedel de faculdade, e, praticamente sem deixar seus pagos sulistas, edifica uma obra de sucesso nacional. Aplaudida tanto pelo povo adepto do vocal tonitruante de Francisco Alves, o rei da voz (“Quem há de dizer”, “Cadeira vazia”, “Nervos de aço”), quanto pelos intelectuais, como o concretista Augusto de Campos, que sumarizou seu processo criativo: “Enquanto outros compositores de música popular brasileira buscam e rebuscam a letra, Lupicínio ataca de mãos nuas, com todos os clichês de nossa língua. E chega ao insólito pelo repelido, à informação nova pela redundância, deslocada de seu contexto”. Para contar essa história com profusão absurda de detalhes e meandros enriquecedores, ninguém mais categorizado que o músico e jornalista gaúcho Arthur de Faria. Doutor em literatura pela UFRJ, com tese exatamente sobre Lupicínio, lançou 20 álbuns, produziu outros 28, e dirigiu 12 espetáculos, lidera a Tum Toin Foin Banda de Cãmara e integra o Duo Música Menor, com o argentino Omar Gianmarco

E fico por aqui, senão a resenha será sobre o multifário Arthur e não seu esplêndido “Lupicínio, uma biografia musical” (Arquipélago Editorial, 378 pgs). Como também é autor de “Porto Alegre: uma biografia musical vol. 1”, dá vontade de acampar em seu capítulo inicial sobre a Ilhota, enclave negro da parte baixa da cidade, onde Lupi nasceu; quarto numa família de 21 irmãos, dos quais oito não “vingaram”, e apenas dez chegaram à idade adulta. Como no Rio de Janeiro havia a Pequena África, no centro da cidade, onde tia Ciata e outras baianas de estirpe cozinharam em fogo brando o samba, em Porto, segundo Clarinha Glock, no jornal Zero Hora, citado no livro, os bairros Bonfim, Mont Serrat e Auxiliadora junto com a cidade Baixa e a ilhota constituíam a “Colônia africana”, refúgio para a população negra local.

Quanto a Ilhota (celebrada por Lupi em duas composições, “Centro de lavadeiras (bairro de pobre)” e “Ilhota”), cercada de água por todos os lados, era uma zona insalubre o suficiente para que os ricos não pensassem em morar ali. Era repelida pelos eugenistas como “chaga urbana”. Mas situava-se perto o suficiente do centro, para atrair diversos tipos de trabalhadores: carpinteiros, sapateiros, cozinheiros, bancários, funcionários públicos, costureiras, alfaiates. O pai de Lupi era porteiro da antiga Escola de Comércio, criado como “agregado” do desembargador André Rocha (de quem poderia ser filho bastardo), um dos fundadores da Faculdade de Direito Livre de Porto Alegre. Embora músico informal, reprovou quando o filho se aproximou do violão, “instrumento de vagabundo”. Mas não teve jeito: aos 14 anos, Lupicínio estreava como compositor da marchinha “Carnaval”, para o cordão carnavalesco Moleza. Em represália, o pai alterou sua data de nascimento, de 15 para 18 anos, e o embarcou como “voluntário” do 7º Regimento de Infantaria do Exército. 

Não deu certo. Mesmo fardado, ao lado do colega de quartel, o catarinense Reinoldo Corrêa de Oliveira, o futuro cantor Nuno Roland, assistiu em 29 de abril de 1932, ao histórico show dos Azes do Samba, no Cine Theatro Imperial, em Porto Alegre. Eram eles: Noel Rosa, Mario Reis, Francisco Alves, o pianista Nonô (tio de Cyro Monteiro, futuro lançador de um mega sucesso do aspirante a autor) e o bandolinista gaúcho Pery Cunha. A partir daí, criou-se uma mitologia em torno do encontro dos ases (sem “z”) Noel e Lupicínio: “Esse garoto é bom, esse garoto vai longe”, teria dito o primeiro sobre o segundo. No decorrer do livro, Arthur publica diversas versões (inclusive as mais fantasiosas) dos episódios controvertidos, e deixa ao leitor bater o martelo sobre a mais plausível. Ou não.

Como por exemplo, a provavelmente fictícia parceria de Lupicínio com o diretor artístico da Odeon, Felisberto Martins, que lhe rendeu o primeiro grande sucesso e a estreia do supra citado Cyro Monteiro, em 1938, “Se acaso você chegasse”. A história era baseada em fatos reais (uma namorada de um amigo cantor que ele capturou) e o samba um dos únicos de tônus jazzístico de Lupi, mas ele mudava de assunto quando falavam da autoria, já que tinha negado ao Bando da Lua parceria para que gravassem suas músicas. De tão suingada, a composição estouraria de novo, no ano bossa nova de 1959, e lançaria outra voz estreante, a da estonteante Elza Soares. Ela, que já entrara com o pé na porta, alterou partes da letra que a lembravam das humilhações da pobreza (“de dia me lava a roupa/ de noite me beija a boca”), trocando por um scat singing, criticado pelo desvirtuamento do original. A primeira gravação do sucesso permitiu que Lupi financiasse uma viagem ao Rio. Depois de ter conhecido Wilson Baptista e Ataulfo Alves, foi apresentado aos bambas do Café Nice, ponto de compra e venda de sambas, Francisco Alves, Haroldo Lobo, Nássara. O rei da Voz encantou-se com várias de suas composições, e segundo seu relato, prometeu grava-las. Mas nada aconteceu, o dinheiro acabou e Lupi teve que voltar ao emprego de bedel em Porto Alegre. Que, mais adiante, interessado nos rendimentos do direito autoral, lei do conterrâneo (ainda quando deputado) Getúlio Vargas, acumularia com a representação da sociedade arrecadadora SBACEM, em Porto Alegre.

A coisa começou a mudar quando o cantor das multidões Orlando Silva emplacou um de seus últimos sucessos, "Braza” (escrito com “z”), em 1945, mais uma pretensa parceria com Felisberto Martins, no selo Odeon, de letra baseada na guerra conjugal do futuro cunhado (“você parece uma brasa/ cada vez que eu chego em casa/ dá-se logo uma explosão/ ciúmes de mim não acredito/ pois, meu bem não é com grito/ que se prende um coração”). O estrondo despertou ciúmes no Chico Viola, Francisco Alves, que passou e enfileirar os clássicos instantâneos do gaúcho que havia entesourado. O primeiro foi “Nervos de Aço”, em 1947, “com um primoroso arranjo de Lírio Panicalli”, como define Arthur, dando ênfase à “supermoderna bateria com vassourinhas e um virtuoso clarinete”. A música teria uma versão elegante mais não menos dolorida na faixa título do LP, de sofrência explícita de Paulinho da Viola, de 1973. Depois vieram na voz de Chico, “Quem há de Dizer”, com outro arranjo de Lírio, em 1948 e “Cadeira Vazia”, em 1950.

Até então eram quase só vozes masculinas que submergiam nas densas histórias amorosas dos sambas canções de Lupi, mas... Eleita 11 anos seguidos Rainha do Rádio, Linda Batista, apesar de samba canção não ser seu forte, encantou-se com a atmosfera enfumaçada, tanguera, de “Vingança”, que Jorge Goulart costumava cantar na boate Vogue. Levou o pianista turco recém chegado, Sacha Rubin para grava-la, junto com o violinista Fafá Lemos e possivelmente o violonista Garoto (meio Trio Surdina). E foi um sucesso estrondoso, a ponto de, segundo a lenda urbana, a revanche poética (“mas enquanto houver força em meu peito eu não quero mais nada/ só vingança, vingança aos santos clamar”) provocar suicídios no mundo real. No ano seguinte, sua irmã Dircinha Batista, que a sucedeu no trono de Rainha do Rádio emendou com outro petardo de Lupi, “Nunca” (“nem que o mundo caia sobre mim/ nem se Deus mandar/ nem mesmo assim/ as pazes contigo eu farei”).

O biógrafo entretece com minúcias a tumultuada vida amorosa que inspirou tantos embates líricos ao compositor. Uma por uma, suas musas desfilam entre tapas e beijos com o irresistível sedutor, também por vezes violento e indelevelmente contaminado pelo machismo de seu tempo. Inah, a jovem donzela que conheceu aos 13 anos, em Santa Maria da Boca do Monte, com um vestido curto quando ia pegar água num poço, por quem desenvolveu obsessão de um longo noivado, mas não quis casar. Ofendida, Inah casou-se rápido com outro, e daí teriam brotado os versos: “você sabe o que é ter um amor, meu senhor/ ter loucura por uma mulher/ e depois encontrar esse amor, meu senhor/ nos braços de um tipo qualquer”. Já Mercedes, apelidada “A carioca”, após uma traição ao compositor devidamente revidada, teria sido encontrada “bebendo e chorando/ na mesa de um bar/ e que quando os amigos do peito por mim perguntaram/ um soluço cortou sua voz/ não lhe deixou falar”. A implacável “Vingança” também marcou pela sentença: “o remorso talvez seja a causa do seu desespero”. Já Maria Rosa, apelidada Maria Bolinha, romance de fugaz duração, deixou de herança uma pequena joia de ourivesaria tosca: “Se tu não acreditas/ vai, pergunta aos meus tamancos/ quantas vezes no meu tranco/ passei lá no teu portão/ e o placo, placo, placo, placo do meu salto/ chegou a fazer buraco/ no asfalto lá do chão”.  Cerenita Quevedo, a mulher que viveria (e se casaria) com Lupicínio e lhe daria um herdeiro, Lupinho, bateu um recorde. Ele a conheceu quando ela tinha três anos e teria dito que se casaria com ela. Sua irmã casou-se com o irmão de Lupi e a história deles inspirou o sucesso “Brasa”. Para Cerenita, ele dedicou a corrosiva “Namorados”: “Mas agora que somos casados/ foi que tudo para nós mudou/ antes tu me chamavas de amado/ hoje até desgraçado eu já sou”.

A incrível artesania lírica de Lupicínio o permitia, como diria o conterrâneo político Leonel Brizola “costear o alambrado” do brega, sem chafurdar na lama do ridículo da vida. Tal como outro Rodrigues, o teatrólogo pernambucano Nelson, a quem já foi comparado. Ao mesmo tempo é impressionante a impermeabilidade da obra do gaúcho (dizia a lenda, desmentida no livro, levada pelos marinheiros, frequentadores das zonas gaúchas, para o sudeste). Tanto que seu aclamado maior intérprete foi José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão, um emérito puxador (ele odiava o termo) de samba enredo, que também brilhava como crooner de big band, no caso a mitológica Orquestra Tabajara, do maestro Severino Araujo. “O vozeirão passava por Porto Alegre e quis conhecer pessoalmente o compositor de tantas canções que ele interpretava nos dancings e gafieiras. Ficaram amicíssimo”, diz o livro, e o carioca começou a gravar uma obra prima após a outra, ‘Ela disse-me assim’ (1959), ‘Torre de Babel’, ‘Sozinha’, ‘Foi assim’, todas em 1963”.  

Lupi conseguiu atingir todas as latitudes estéticas. Do breganejo Teixeirinha, o do inefável “Coração de luto”, que regravou “Judiaria”, levada ao fogaréu do rock pelo concretista dos Titãs, Arnaldo Antunes; ao cristal vocal de Gal, em “Volta”, em seu momento “musa do barato”, no despudorado show e LP ‘Índia”. Os iconoclastas Tom Zé e Jards Macalé (que incluiu o autor entre os “4 batutas e um coringa” de seu disco de 1987) confluem em “Dona divergência”. Assim como Maria Bethânia e Mart’nalia em “Ela disse-me assim”, a sombria Nora Ney e a estelar Dalva de Oliveira em “Aves daninhas”. Entre os muitos artistas que dedicaram discos à obra do compositor, elencados por Arthur, destaco Thedy Correa, do grupo local Nenhum de Nós, até pelo título incrível, “Loopcínio” (2005), a também conterrânea Adriana Calcanhotto (“Loucura”, 2015), o vanguardista Arrigo Barnabé (“Caixa de ódio”, 2011, desdobrado no papel de ator no filme “Nervos de aço”, de 2015, direção de Maurice Capovilla). 

E mais, o violinista Jerzy Milewski num inesperado “Lupinstrumental” (1996). No show “Temporada de verão”, de 1974, ao lado de Gal e Gilberto Gil, Caetano ressignifica o xote “Felicidade”, de 1932, projetado pelo Quarteto Quitandinha (1947), que se torna um dos maiores sucessos de Lupicinio para as gerações subsequentes, bafejadas por versões de Vitor Ramil e Geraldo Flach para o hino de seu clube de futebol, o Grêmio, esta última tocada num piano de cauda, no centro do Gramado Olímpico, num dos muitos programas em homenagem ao compositor. Como o provocante “Lupicínio e Rossini”, da TV Cultura, de São Paulo, em sua série Sinfonia Fina, em 2004.  No livro, Arthur arrola todos os seus discos, a filmografia completa e garimpa o repertório autoral (com ou sem parceiros) de 290 canções, legado por este militante boêmio, que se gabava de ser bom cozinheiro, era desenvolto nas relações amorosas e, simplesmente, um gênio musical e poético à prova do tempo e das latitudes.

(Tárik de Souza)


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