Amigo ao Peito

Hermínio Belo pra Caramba!

segunda, 10 de maio de 2021

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Tive muito pouco contato pessoal com Hermínio Bello de Carvalho. Mas fui abençoado por ter amigos comuns que nutrem por ele um amor difícil de mensurar. Hermínio é responsável por tanta coisa boa no nosso país, é um gigante, e infelizmente muita gente da nova geração não tem ideia da dimensão dele. Recolhido por conta dessa pandemia, saiu um pouco dos holofotes, então vou eu com minha lanterninha homenageá-lo com algumas miudezas pouco conhecidas de sua biografia. Mas, antes, um esboço, um resumo de algumas de suas proezas.

Compositor, produtor, poeta, escritor. Pesquisador, descobridor, violonista, pensador. Diretor, criador, desenvolvedor, colunista. Jornalista, radialista, operista, desbravador. E em nenhuma dessas categorias foi menos que brilhante. Em 2000 recusou uma honraria do Ministério da Cultura por discordar dos rumos culturais do Governo. Recebeu muitas outras, como ser perseguido pela ditadura, honra máxima para um artista do período. Hermínio é herdeiro direto de Mario de Andrade na obsessão pelo Brasil e pelo que é brasileiro. Como o Mestre, Hermínio mudou a história da música brasileira para sempre. 

Mas, como insinuei, temos um Hermínio mais próximo de nosso foco aqui na coluna, o violão.

Foi aluno do Professor António Rebello, avô dos irmãos Abreu, estudou com seriedade o violão dito clássico, fazendo com Turibio Santos e Jodacil Damaceno um trio de personagens que movimentou nosso instrumento. Mas preciso fazer uma digressão:

Meu querido Jodacil Damaceno, sobre quem já escrevi aqui, era de uma timidez incurável. Além disso, humilde e de uma autoexigência absurda. Ele e Hermínio trabalharam juntos numa empresa chamada Navegação Camuirano. Quis o destino que a palha seca fosse trabalhar ao lado do fósforo aceso... Se dependesse do ânimo em se expor, talvez Jodacil tivesse se mantido um músico amador, dando aulas em casa. Mas o inquieto Hermínio – que, inclusive, namorou uma irmã de Damaceno nessa época – via o talento do amigo e não o deixava em paz. 

-Não passava uma semana sem que o Hermínio viesse com uma novidade para me tirar o conforto. Ele vivia inventando moda para a gente sair por aí, tocando em teatro, na TV, eu não tinha sossego.

Ou seja, sem ele não teríamos tido um de nossos maiores professores. A amizade deles mudou o violão brasileiro, a energia do poeta tirou um gênio da casca. Hermínio fez nosso violão aparecer na televisão, onde apenas o chamado violão popular tinha vez. Num episódio que virou livro, os três amigos assistiram a uma palestra de Villa Lobos que fez com que, a partir daí, nosso herói passasse a pesquisador da vida e obra do Maestro. 

Um dia Manuel Bandeira “falou mal” do violão. Hermínio respondeu com um texto genial, ambos reproduzidos após este texto. Tempos depois, na comemoração dos 80 anos do poeta, o infatigável Hermínio produziu um recital de violão e poesia, com sua vítima preferida, Jodacil, a atriz Maria Fernanda e, nos bastidores, o próprio Manuel Bandeira, rendido ao violão.

Mas Hermínio é carioca, da gema, da clara, da casca, do fiofó da galinha, é O Rio de Janeiro em pessoa. Quando publicou seu livro sobre a palestra de Villa, na noite de autógrafos, teria recebido um convite de uma autoridade francesa para proferir uma palestra sobre Villa em Paris. Ao notar a dificuldade de comunicação, a tal autoridade perguntou:

-Vous parlez français, n’est-ce pas?

-Yes!!!!!

Salve Hermínio!

Seguem os textos, retirado do site violão.org (veja aqui). O texto de Bandeira foi “garimpado” por Geraldo Veiga.

LITERATURA DE VIOLÃO, por Manuel Bandeira

Na sua obra dos Paraísos Artificiais, no capítulo intitulado: Do Vinho e do Hachiche comparados com os meios de multiplicação de individualidade, Baudelaire evoca em paginas deliciosas a figura de um espanhol que durante muito tempo viajou com Paganini, acompanhando-o ao violão: foi antes da época da grande gloria oficial de Paganini.

Levavam uma vida de boêmios ambulantes, vagando de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, e onde quer que chegassem, cercava-os logo o espanto maravilhoso do povo ao ouvir as Arias, as variações e os improvisos dos dois amigos.A fascinação de Paganini é facilmente compreensível, mas a do espanhol? Todo o mundo sabe como o timbre do violão fica desmerecido junto das vozes de um violino. Era mesmo preciso que esse espanhol, cujo nome ficou esquecido, fosse um ente sobrenatural para sustentar no seu violão o cotejo do violino de Paganini. Sem dúvida uma técnica prodigiosa lhe permitiria tirar sempre do instrumento aquelas vozes redondas e cheias, de emissão tão difícil nas passagens de alguma velocidade.

E são precisamente essas vozes as mais características do violão, aquelas que lhe dão o acento de melancolia e ternura íntimas, o seu encanto de instrumento incomparável para as horas de solidão e sossego.

Para nós brasileiros o violão tinha que ser o instrumento nacional, racional. Se a modinha é a expressão lírica do nosso povo, o violão é o timbre instrumental a que melhor ela se casa. No interior, e sobretudo nos sertões do nordeste, há três coisas cuja ressonância comove misteriosamente, como se fossem elas as vozes da própria paisagem: o grito da araponga, o aboio dos vaqueiros e o descante dos violões.

Desgraçadamente entre nós o violão foi até aqui cultivado de uma maneira desleixada. É verdade que a sua técnica é ingratíssima e o tempo perdido em adquirir nele um mecanismo sofrível será bem mais compensador aplicado a outro instrumento de repertorio mais rico -- e mais nobre. O desleixo em todo o caso era excessivo. Desconhecia-se por completo o dedilhado da mão direita. Basta dizer que se reservava o polegar para os bordões, o índice para o sol, o médio para o si e o anular para a prima. E esse dedilhado de harpejo era pau para toda obra. Havia dedilhados mais extraordinários. Lembro-me de ter ouvido no sertão do Ceará a um cego que só se servia do index. Quando tocava, dava a impressão de estar escrevendo nas cordas do violão. Só com esse dedo Zé Cego pintava o bode... O que não faria ele se conhecesse a verdadeira técnica do instrumento?

Houve também, até bem pouco, uma certa prevenção contra o violão por carregar a fama de instrumento refece, alcoviteiro e cúmplice da gandaia em noitadas de sedução. Era, tipicamente, o instrumento mauvais sujet. Ele foi, porém, reabilitado pela visita que recebemos de dois estrangeiros, os quais vieram revelar aos nossos amadores todos os recursos e a verdadeira escola dos grandes virtuoses de Espanha. Refiro-me a Agostinho Barrios e Josefina Robledo.

O primeiro era paraguaio e tinha um jogo mais brilhante, mais pessoal. Era um rebelde, um revolucionário. Embora conhecesse perfeitamente a escola de Aguado (aprendera com um discípulo de Garcia-Tolsa), passava por cima dela muitas vezes. O emprego das cordas de aço, alias, modificando um pouco o timbre do instrumento, exigia uma técnica especial. A de Barrios baseava-se no máximo aproveitamento possível da terceira corda, cujas vozes são mais cheias e pastosas. Todavia Barrios tocava com igual habilidade e encanto no encordoamento de tripa, com tive ocasião de verificar.

Barrios compunha também. Eram próprias a maior parte das peças que executava. Infelizmente nenhuma das suas produções está impressa.

Josefina Robledo foi discípula de Tárrega, o grande continuador da Escola de Aguado, cuja tradição nos veio transmitir em toda a sua pureza. Deu numerosos concertos aqui e em São Paulo, captando o publico pela suavidade do som e pela simplicidade e justeza de sua técnica. Tocava as passagens mais eriçadas com a mais tranqüila modéstia. Ninguém podia suspeitar que dificuldades ela estava assim vencendo com um sorriso. Era sobretudo notável no arpejo. Josefina Robledo começou a formar alguns discípulos entre nós.

Além disso, observando a sua maneira de tocar, os nossos velhos amadores entraram a corrigir e reformar os dedilhados defeituosos que empregavam, de sorte que hoje já se vai começando a tocar com limpeza e estilo.

Mas o repertório? Eis um ponto que descoroçoa freqüentemente os amadores. Comecemos por dizer que o repertório do violão é, além de próprio, todo o repertório do Alaúde. O Alaúde é um instrumento cuja caixa é parecida com a do Bandolim, um pouco maior, braço alongado, e tem o mesmo numero de cordas afinadas da mesma maneira que as do violão. O timbre é também o mesmo, ligeiramente mais tênue. Antes da invenção das primeiras espinetas, era o alaúde o instrumento preferido para acompanhamento de canto. Com o aperfeiçoamento dos primeiros instrumentos de teclado começou a decair a sua voga, até que foi quase completamente banido pela chamada guitarra espanhola, o nosso violão. Entretanto nas mãos das senhoras o alaúde é bem mais gracioso que o violão, embora em si mesmo este seja mais rico de sugestões plásticas, sobretudo se a caixa é de jacarandá. (Picasso tomou-o como tema único de numerosos quadros seus, onde o violão volta sempre como uma obsessão).

Existem entre as canções dos séculos XVI, XVII e XVIII deliciosas berguerettes, maliciosas e tenras, que as nossas amadora poderiam reviver para aqueles que sabem saborear o antiquado encanto daquele repertório. Nos bons tempos do alaúde escrevera-se também grande cópia de solos em formas de suítes.

Certa vez tomei a liberdade de escrever uma carta ao grande mestre Vicent D'Indy, consultando-o acerca do repertório do violão. Escrevi sem grande esperança de alcançar resposta. Qual não foi minha surpresa recebendo 3 meses depois uma bondosa e extensa carta, cheia de informações preciosas sobre o assunto. Vou transladá-las aos leitores de Ariel:

“Genebra, 10 de janeiro de 1916.

Senhor.

Queira desculpar a minha demora em responder-lhe, mas desde a reabertura da Escola, no mês de outubro, não tenho nem mais um minuto de liberdade e só por ocasião das férias é que posso dispor de alguns instantes para responder ás cartas, numerosas demais, laissés en souffrance...

Infelizmente não lhe posso deixar ilusões: nenhum mestre dos tempos passados escreveu para o violão, e mesmo nos tempos mais modernos, não vejo senão as 4 peças para piano e violão de Weber que sejam dignas de algum interesse.

Mas me parece que onde o Sr. devia procurar, seria no imenso repertório do antigo alaúde, cujo único sucedâneo atual é o violão.

Há um sem número de peças para o alaúde, quer peças originais em forma de suíte, quer transcrições de canções em voga no século XVI(batalha de Marignan,etc.). Somente muito poucas foram restabelecidas em notação moderna e todo este tesouro está escrito em tablatura, e esparso em diversas bibliotecas.

Creio que quem poderia informar com mais segurança a respeito das peças transcritas, seria Mr. Henri Expert, bibliotecário do Conservatório de Musica; ele poderia em todo o caso, se o sr. Quisesse mandar copiar-lhe algumas das peças que se encontram naquela biblioteca.

Como a afinação do alaúde(à parte as cordas soltas) era, quanto as seis cordas a mesma que a do violão, o sr. Não teria nenhuma dificuldade em assimilar essas peças e isso ao menos seria musica de verdade em lugar das insânias dos tocadores de violão.

Queira aceitar a expressão dos meus sentimentos de maior consideração.

Vincent d'Indy”

A carta que imediatamente escrevi ao sr. Henry Expert, bibliotecário do Conservatório de Música de Paris, nunca teve resposta.

Além das peças de Weber citadas, pode-se nomear a serenata de Mefistófeles da Danação de Fausto.

Berlioz levou o seu violão para a Itália e foi mesmo nele que esboçou as melodias que serviriam de núcleo á futura ópera. Manesset, outro prêmio em Roma, também levou consigo o violão, em que dizem ter sido exímio improvisador. Nada, porem, conhecemos dele para o instrumento.

Dos compositores para o violão o melhor ainda me parece ser Aguado. Esse espanhol fez um sucesso espantoso em Paris onde se apresentou por volta de 1825. Não tenho competência musical para decidir se as suas composições se devem também classificar entre as “insânias dos guitarristas”. Creio entretanto que os três rondós, especialmente aquele em lá menor, podem chamar-se musica. O tema de rondó em lá menor lembra o tema do da Patética e os seus desenvolvimentos tem o dinamismo e a bela e forte lógica dos de Beethoven.

Modernamente Tarrega, o mestre de Josefina Robledo, transcreveu para o violão algumas peças clássicas e românticas. Há notadamente uma bourré de Bach que está muito bem adaptada.

Ceio que são da própria Josefina Robledo umas transcrições que ouvi em concertos seus, de algumas peças de Albeniz e Granados.

Barrios exaltava muito as peças de um certo Regondi (creio que do século XVIII), do qual apenas ouvi uma Dança Macabra, com efeitos de dissonância realmente interessantes e....diabolicamente difíceis.

Como se vê, um amador que e disponha a despender tenacidade e dinheiro pode alcançar um repertório sofrível. Todavia, se os nossos músicos e os nossos editores quisessem mostrar um pouco de boa vontade, nós não precisaríamos buscar fora de nossa terra aquilo de que somos tão ricos. Bastava transpor ao violão os nossos maxixes, tangos e cateretês. Em muitos casos, a transposição já se fez, mas não foi escrita. Barrios transpôs a deliciosa Viola Cantadeira, mas não a escreveu. Ele, que tem um considerável repertório próprio, onde passa aquela selvagem melancolia de Guarani despaisado na civilização latina, nunca fez imprimir uma só peça!

Os nossos tocadores de violão compuseram peças de caráter brasileiro interessantíssimas. Correm, porem, de oitava. Tais são os maxixes de Arthidoro da Costa, João Pernambuco, Quincas Laranjeiras e outros de igual valor.

Villa-Lobos, o nosso extraordinário Villa-Lobos, que agora está em Paris, disputando com Strawinsky, Prokofief e Falla o grande páreo do modernismo,tocou violão quando rapazola. E compôs muita coisa que está guardada a sete chaves...e não sei se não as atirou todas ao mar... Ele não gosta que se fale nisso. Preconceito muito pouco moderno e muito pouco nacional, não é verdade?


Resposta do grande Hermínio (ele me autorizou a publicar no site desde que eu fizesse a seguinte observação antes:

"O autor do texto faz absoluta questão de esclarecer que todo o conteúdo contido naquele artigo foi gentilmente a ele repassado por Jodacil Damaceno, detentor de conhecimentos sobre a literatura do violão, e que contagiou seu então colega de escritório com seu saber, levando-o a estudar violão e a escrever o referido artigo, para o qual colaborou anonimamente".)

Manuel Bandeira assistindo Jodacil Damaceno tocando, numa homenagem a ele, feita pelo Hermínio (Divulgação)


Carta ao poeta Manuel Bandeira

Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1956

Meu poeta

Queria ter palavras melhores e mais bonitas para chegar-me a você. Soubesse eu a fórmula mágica e o melhor de meu talento lhe seria dado.

Está aqui comigo o número doze da excelente “Revista da Música Popular” do moço Lúcio Rangel, conhecedor profundo do nosso populário e dono de iniciativas excelentes.

No referido número o meu poeta escreveu sobre Literatura de violão, assunto que, pela sua complexidade, pouco tem sido abordado pelos críticos especializados, mesmo os de maior envergadura. Desse modo, tal artigo cresce em importância e interesse pelo fato de ter sido escrito por uma das figuras máximas da cultura brasileira. É um estudo que se caracteriza pela sobriedade, e, sobretudo, pelo tom honesto que predominou em todo o texto. Mas pontos existem que não refletem fielmente a real posição do instrumento dentro do cenário moderno da chamada música erudita.

Aguardei a saída do número seguinte da Revista, na esperança de que o assunto fosse de novo abordado. Tal, infelizmente, não aconteceu. Vencendo então um medo definitivo e uma indecisão absoluta (“enfrentar” Bandeira é uma coisa muito séria!), estou aqui para meter a colher na panela alheia. E com a agravante de saber que sou a pessoa menos indicada para fazê-lo. Se outros méritos não tiver esse meu gesto, louve-se-lhe a coragem, o supremo atrevimento!

Meu poeta diz que “todo mundo sabe como o timbre do violão fica desmerecido junto das vozes de um violino”, e eu gostaria de discordar. São bem distintas as qualidades de som dos dois instrumentos. No violino a nota pode ser mais prolongada, propriedade exclusiva dos instrumentos de cordas friccionadas. O violão, entretanto, é mais autônomo, pois não exige outras vozes para acompanhamento. E essas vozes “redondas e cheias” (cito o poeta) não se desmerecem nem comprometem sua beleza, sonoridade e volume perto de qualquer outro instrumento, seja de cordas, sopro ou percussão. No Concerto em Ré ópus 99 de Castelnuovo Tedesco para violão e orquestra (solista: Andres Segóvia), podemos notar a grandeza de que ele se reveste junto de outras vozes. Recomendaria ao meu poeta ouvir o Concertino do brasileiro Guido Santorsola, gravado por Luise Walker, das mais conceituadas violonistas da atualidade, com a Orquestra Sinfônica de Viena. E também o “Concierto de Aranjuez” de Joaquim Rodrigo, e tendo como solista Narciso Yépes. Mas voltemos ao assunto. Quanto às dificuldades de execução ambos exigem estudo intenso e ininterrupto para se atingir um grau razoável de aproveitamento. Na técnica de braço creio que ambos se equiparam. É de se suspeitar que a execução do violão supere a do violino quanto às dificuldades devidas ao aproveitamento maior da mão direita, que exige toda uma técnica especial para os dedos polegar, médio, indicador e anelar. Alguns cantores flamencos usam o dedo mínimo para os rasgueados. Os recursos do violão são múltiplos: sons harmônicos, ligados, caixa, tremollo, fagot (ou sons abafados, erroneamente chamados pizzicato), mão esquerda; o arpejo e o glissés (arraste) atingem sua plenitude no violão, sua tessitura é maior que a do violino. Vale transcrever as palavras de Manuel de FalIa a Pujol (criador da Escola Razonada): y como no afirmar que entre los instrumentos de cuerdas con mástil, es la guitarra el más completo y rico por sus posibilidades harmonicopolifónicas?”. Sim, mas que instrumento ingrato! Um dedo mal colocado no traste e eis toda uma passagem prejudicada. Em muitos instrumentos a nota já está pronta, preparadinha – basta feri-la para ouvi-la límpida e sonora. O piano é um exemplo. Mas um mínimo deslize no braço do violão – e pronto!

E essa fascinação que o violonista que acompanhava Paganini exercia sobre o público é bastante compreensível, embora assim não considere o meu querido poeta. Não consegui descobrir a identidade do violonista citado, mas posso afirmar que Paganini, na maioria das vezes, em concertos públicos, era o próprio executante ao violão, e acompanhado pelo violino de seu discípulo Camilo Ernesto Sivori. Paganini compôs extensa obra para o instrumento, tendo confessado: “Faço uso da guitarra, de quando em vez, para estimular minha fantasia na composição e para concretizar melhor a harmonia que não posso obter no violino.” O Paganini compositor violonista é fascinante. Eu não quero cansar meu poeta com dados, edições das obras, etc. Durante quatro anos o diabólico Paganini abandonou o violino completamente, dedicando-se a estudar guitarra e compondo para ela. Seu violão ele o deixou para Berlioz. Pode-se encontrá-lo hoje no Museu de Ópera de Paris.

No quarto parágrafo de seu memorável artigo, reconhecendo “que a sua técnica é ingratíssima”, diz que “o tempo perdido em adquirir nele um mecanismo sofrível será bem mais compensador aplicado a outro instrumento mais rico – e mais nobre”. Meu querido poeta, nenhum artista que se realize num instrumento e que atinja aquele máximo – e cito indistintamente Kreisler, Casals e Segóvia – dirá que perdeu seu tempo depois de um árduo caminho sobre estudos, concertos e o trabalho de superação das dificuldades que todo instrumento apresenta. E por que “mais rico e mais nobre”? Se é verdade que o violão herdou do alaúde um repertório importante, também não é menos verdade que se tornou um instrumento dos mais ricos na sua classe de instrumento de cordas, contendo literatura original vastíssima e de alta qualidade, como demonstrarei mais adiante. Quero reportar-me agora a um parágrafo do admirável artigo em que meu poeta escreveu sobre Josefina Robledo e Agustin Barrios. Esses dois guitarristas foram o toque mágico, o ponto de partida para a consagração nacional do instrumental. Seria injusto, entretanto, esquecer Quincas Laranjeiras como pioneiro do ensino do violão por música, no Brasil. Lendo a “Revista do Violão” editada a partir de 1929, tomei conhecimento maior do movimento. As “risonhas esperanças”, as “delicadas e sutis promessas” e os “finos ornamentos da nossa sociedade” aparecem – pequenas Robledos em estado de burilação – em suas páginas, sobraçando o instrumento. Era a epidemia do violão, provocada pela vinda dos dois guitarristas. Havia até um clube – o Icarahy Violão Club – com trezentos e trinta sócios, à razão de dez mil réis por cabeça. Tárrega era louvado na “Revista” no melhor estilo da época. Felizmente não se omitia o nome de Sor, embora não se falasse dele com o entusiasmo que era de se esperar. Aguado era para os mais privilegiados, poucos por sinal. Tárrega, Tárrega e o resto era silêncio. Enquanto isso Barrios fazia o público vibrar de entusiasmo com seu malabarismo e suas obras de grande efeito. Pesquisando os programas dos recitais do concertista paraguaio, não consegui ver a inclusão de nenhum compositor original para o instrumento. A ausência de Sor era completa. Robledo distinguia-se pelo ecletismo de seu repertório e, pelas críticas da época, é de se suspeitar que tivesse sido mais sóbrio do que o paraguaio. Fascinavam-na também as obras de grande efeito e não se cansava de incluí-las, com freqüência, nos seus recitais. A Gran Jota Argonesa era o seu beguin. Assim eram os dois virtuosos que tanto influenciaram o ensino do violão no Brasil. Meu poeta se enganou quando disse que as obras de Barrios não estavam editadas. A Ricordi, a casa Romero y Fernandese Hugo Carbono são alguns dos editores das peças de Barrios. Voltando ao movimento de violão, seria injustiça ignorar o trabalho do professor Oswaldo Soares, realizado com perseverança e carinho. Foi ele o primeiro a editar um trabalho pedagógico sobre o instrumento. Foi em 1932. O método é “Escola de Tárrega”, até hoje adotado para os iniciantes do instrumento. Contém diversos estudos e exercícios, e serviu para abrir novos caminhos nos métodos de ensino de violão no Brasil. Isaías Savio é outro batalhador. Uruguaio, chegou ao Brasil em 1931, via Porto Alegre. Desde então vem realizando um trabalho sistemático de divulgação do repertório original do instrumento. É concertista consagrado e compositor dos melhores que possui o violão. Vive hoje em São Paulo, onde criou raízes, tendo fundado a cadeira de Violão no Conservatório de Música de lá, sendo seu professor atual. É um líder legítimo do atual movimento. Aqui no Rio trabalha-se bastante. Existe a Associação Brasileira de Violão, presidida por Samuel Babo, e congregando gente moça de valor. Antônio Rebelo é outro expoente do movimento. Quincas Laranjeiras foi seu primeiro mestre. Depois Savio. É, atualmente, dos mais categorizados professores que possuem o instrumento no Rio de Janeiro. É compositor emérito e executante primoroso. Sua orquestra de violões, composta exclusivamente de alunos, tem se apresentado com bastante sucesso em diversos recitais, com êxito retumbante. Dilermando Reis, no rádio, faz um trabalho que não pode ser ignorado. Laurindo de Almeida, nos Estados Unidos atualmente, é um embaixador de nossa música. Tem gravado com regularidade alguns microssulcos de incontestável valor. Outros nomes: Luiz Bonfá, Solon Ayala, Luiz Allan, Deoclécio Melin, Lydia Bastiani, Otton Salleiro, Milton Rodrigues, Benedito Chaves, José de Freitas, Osmar de Abreu, Jodacil Damasceno, Mozart de Araújo e Collet. Eddy Cajueiro é glória da Bahia. Mais não cito porque a relação é imensa e a minha memória é fraca.

Falando sobre repertório, meu poeta diz que é um ponto “que descoroçoa freqüentemente os amadores”. Eu diria que nem tanto. Creio que depois de estabelecida a técnica é só escolher. Indistintamente poderá optar por obras originais ou transcritas. Não seria exagero dizer que “tudo” está transcrito para violão: Bach, Beethoven, Mozart, Chapi, Rossini, Debussy, Brahms, Chopin, Mendelssohn, Couperin, César Franck, Bellini, Handel, Frescobaldi, Mudarra, Tchaikovsky, Mallats, Haydn, Rameau, Scarlatti, Schummann – vai longe, vai longe e a minha memória mais uma vez se revela fraca. No repertório original então o caso é muito sério. As obras de Diabelli para violão e piano estão editadas pela Schott, e o trio para flauta, violão e violino pela Editora Osterreichscher Bundesverlag Wien. E pode-se esquecer Kuffner, contemporâneo de Beethoven? E Leonard de Call, Robert de Visée, Antonio Rovira, Fleury, Rocamora, Giuliani, Arcas, Pujol – e a relação já quer crescer.

Meu poeta há de me desculpar se esta carta está rendendo tanto. Nunca pensei que o assunto fosse tão vasto assim. Não queria acabar o assunto repertório sem falar de Sor. Porque falar em literatura de violão e não falar em Sor é quase a mesma coisa que se falar em poesia e omitir Manuel Bandeira. Sua importância é tremenda, pois a profunda e estranha gravidade, beleza e erudição de suas obras, tornam-no dos mais perfeitos compositores para o instrumento. Sua coleção de estudos e exercícios é esplêndida e não pode ser desprezada por todo aquele que ama o instrumento. Assim que o iniciante começa o aprendizado de violão, ele vai conhecendo Carcassi, Aguado, Carulli, Tárrega, Llobet – e Sor é o verniz, o toque final. Foi também executante primoroso e um dia encontrou Aguado. Sor compôs a obra “Dois amigos” para que ele e Aguado a tocassem. Sabe-se de uma passagem interessante. Um dia, Sor, admirado com a execução, com a prodigiosa execução do amigo (Aguado era diabólico no instrumento, dizia-se que tinha muito de Paganini), disse-lhe: “Jamás podré ejecutar como usted lo hace...”. Ao que Aguado responde: “Ni yo, componer ni expressar como usted siente.” Meu querido poeta falou sobre Aguado, e nada mais posso dizer. Foi admirável, eis tudo.

É forçoso, agora, penetrar no vastíssimo mundo dos compositores modernos para violão. Aí entra toda a magnífica importância do mais notável executante do instrumento, não citado no artigo do meu poeta, esse extraordinário espanhol Andres Segóvia. (Palavras de Kreisler: “Só existem dois grandes músicos no mundo: Casals e Segóvia”.) Segóvia é uma espécie de Picasso do violão. O pintor conseguiu, em meio século, segundo a linguagem dos pintores, mudar a face da pintura do mundo. Segóvia se tornou o mais perfeito violonista deste século, superando com sua técnica assombrosa as dificuldades do instrumento, depurando-se e não fazendo concessões ao grande público. Atraiu com sua arte os maiores compositores modernos e abriu caminhos inéditos e definitivos para o instrumento. Diria que existe um lirismo chapliniano em sua arte, conjugado a uma força de expressão idêntica à de Picasso. Se já volumosa, a literatura do violão enriqueceu-se mais ainda. Foi Federico Moreno Torroba o primeiro compositor não violonista a compor para o instrumento. Depois Tansman, Turina, Cyrill Scott, Castelnuovo Tedesco, Pedrell e Ponce. A discografia de Segóvia é uma esplêndida amostra de seu trabalho. Suas transcrições caracterizam-se pela fidelidade e pela justeza com que cabem no instrumento. Entre outras obras, anotamos as de: Torroba, Turina, Castelnuovo Tedesco, Villa-Lobos, Ponce, Sor, Albeniz, Granados, Robert de Visée, Milán, Handel, Giuliani, Falla, Alonso de Mudarra, Sylvius Leopold Weiss, Bach, Mendelssohn, Schubert, Chopin, Vicenzo Galilei (pai do astrônomo), Tárrega, Llobet e outros mais. A maioria dessas obras, por sinal, estão editadas.

Manu falou, a certa altura, de um “instrumento mais nobre”. Por que mais nobre, meu querido poeta? Onde está a nobilidade das coisas? Heifetz e Kreisler nobilizaram o instrumento que os ciganos – triste raça que eu amo – vulgarizaram em suas andanças (ou buscas?) pelo mundo. Olhe o piano: as mãos de ouro de Rubinstein ou os dedos negros de Fats Waller, não importa. Cada instrumento serve, de ambas as maneiras, às sensibilidades de cada público (Eu amo Waller e também Rubinstein.) O exemplo da gaita de boca: hoje Edu interpreta Paganini, e Larry Adler transporta Purcell, Vivaldi, Bach e Mozart para o pequenino instrumento. E o consegue com grande beleza. Não é relativa essa nobilidade?

E pode-se esquecer que Garcia Lorca foi um guitarrista de qualidades?

Meu poeta quase aconselha às amadoras que revivam as bergerettes dos séculos dezessete e dezoito. Mas eu acho que temos por aqui tanta coisa bonita que não há necessidade de apelarmos para a produção estrangeira. As modinhas, as canções, cateretês, emboladas, sambas (Sinhô, Ismael Silva, Noel, ah!) estão mesmo aí. E aquelas vozes “redondas e cheias” são mais sugestivas se acompanhando Sílvio, Caymmi, a soberba Araci, Elizeth, Marília e a grande Inesita Barroso. E cresce mais em beleza se nas mãos de Olga Praguer Coelho, emérita cantora-violonista, que mereceu de Segóvia e Falla arranjos esplêndidos para o seu violão.

E o amador que se dedique ao instrumento terá que “despender tenacidade e dinheiro” (palavras de Bandeira), mas afirmo que poderá obter um repertório eclético e equilibrado, desde que saiba procurar. Repertório de violão é feito livro, disco e cachaça; há de todas as qualidades. O mercado está superabastecido de obras para o instrumento. Se o amador quiser ficar por aqui sem atingir as culminâncias de um Sor, Bach, Tedesco, tem muita coisa bonita para satisfazê-lo. Canhoto, Dilermando Reis, Garoto, João Pernambuco, Antônio Rebelo (que bonita a “Serenata”!), Isaías Savio, Lorenzo Fernandes, Radamés Gnatalli, Waldemar Henrique – e a lista vai em frente.

E Villa-Lobos não trancou a sete chaves sua produção para o instrumento, como disse meu poeta. A obra de Villa está gravada, quase toda ela, por Andres Segóvia, que é dos mais entusiastas divulgadores do nosso maior compositor. Em Houston, Segóvia apresentou-se há poucos meses executando a “Fantasia Concertante” para violão e orquestra, a mais recente composição de Villa-Lobos para o instrumento.

A Editora Max Eschig editou a Fantasia, os cinco Prelúdios e a série de doze estudos, dedicados a Segóvia. O Chorus nº 1 está editado pela A. Napoleão.

Não quero mais cansar meu poeta. Termina, comovido, este moço que lhe quer tremenda e indiscutivelmente bem. 

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