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“Eu sou assim”: álbum duplo desvela, mais uma vez, a genialidade de Wilson Baptista

quinta, 24 de agosto de 2023

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Um dos grandes artífices da canção brasileira – particularmente, do samba e outras bossas – o fluminense de Campos dos Goitacazes, Wilson Baptista (de Oliveira) (1913-1968) acabou mais conhecido por sua polêmica com o icônico Noel Rosa (1910-1937), na década de 30, só propagada por completo, após a morte do antagonista. Mas graças aos sucessivos esforços do historiador Rodrigo Alzuguir, seu nome vem sendo iluminado e suas músicas regravadas, após as iniciativas antecedentes quase solitárias, de músicos admiradores como Paulinho da Viola e João Gilberto. Em 2011, Alzuguir lançou um Cancioneiro Comentado com 105 partituras, um musical do qual participava como ator e interprete, e um álbum duplo, intitulados “O samba carioca de Wilson Baptista” (Biscoito Fino), com adesões de Teresa CristinaCéuElza SoaresRosa PassosNina BeckerZélia DuncanWilson das Neves e Mart’nalia, entre outros. No centenário do nascimento do compositor, em 2013, Alzuguir editou a estupenda biografia, “Wilson Baptista, o samba foi sua glória” (Casa da Palavra, 584 pgs.). E agora volta com outro robusto álbum duplo, “Wilson Baptista – Eu sou assim” (Selo SescSP), recheado de convidados e mais a cereja do bolo: preciosos registros inéditos do homenageado. 


           Eles foram recuperadas de uma fita que Wilson preparou para a cantora alagoana Thelma Soares. Foi logo após o magnífico tributo “Thelma canta Nelson Cavaquinho”, de 1966, produzido pelo cronista e crítico musical Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), com intervenções do bardo de voz roufenha em três faixas. Wilson, que compôs sua requintada e eloquente obra, de mais de 550 títulos, simplesmente batucando numa caixa de fósforos, teve o apoio do exímio violonista Manuel da Conceição, o Mão de Vaca. Uma das faixas em sua voz (bem menos arranhada que a de Nelson), faz parte da polêmica com Noel, “Conversa fiada”. Ela rebate o clássico “Feitiço da Vila” do rival. “É conversa fiada dizerem que o samba na Vila tem feitiço/ eu fui ver para crer e não vi nada disso/ A Vila é tranquila, porém, eu vos digo: cuidado!/ antes de irem dormir/ deem duas voltas no cadeado”, anarquiza a letra. A faixa tem arranjo do cavaquinhista/bandolinista Luís Barcellos, um dos pilares instrumentais do duplo. 

           De Barcelos, também é o arranjo minimalista, cerzido por sete cordas e caixa de fósforos de “Mulato calado”, um dos sambas de Wilson (que o interpreta com maestria) pescados por Paulinho da Viola na fita de Thelma, e perenizado por ele nos anos 70. Os versos ácidos, amparam-se numa lei não escrita do morro: “Você está vendo aquele mulato calado/ com um violão do lado? /já matou um/ foi numa linda sexta feira/ defendendo a sua companheira/ a polícia procura o matador/ mas em Mangueira não existe delator”. Lançado pela Dama da Central, Aracy de Almeida, em 1946, “Louco (ela é seu mundo)” foi parar em Tóquio, no Japão, em 2004, no repertório do show de outro admirador, João Gilberto. Neste samba, Alzuguir promove um elástico dueto estético entre o autor e Ney Matogrosso, associado ao tema por sua leitura emblemática da “Balada do louco”, de Rita Lee e Arnaldo (por coincidência, mas sem parentesco) Baptista, que o cantor cita ao final. A orquestração de sopros gingantes (clarinete, flugelhorn, trombone, trompete) é de Edu Neves, flautista da faixa. 


           Do mesmo arranjador é outra liberdade do biógrafo, que imaginou uma instrumentação vigorosa para a faixa título, “Meu mundo é hoje (Eu sou assim)” (“Quem quiser gostar de mim/ eu sou assim/ meu mundo é hoje/ não existe amanhã pra mim”), registrada anteriormente por Paulinho da Viola no modo coloquial. Órgão Hammond, piano elétrico Fender Rhodes (Adriano Souza) rebatidos por frigideira, tantã, repique de mão e pandeiro (Marcos Esguleba) pavimentam os disparos do autor inclemente: “Tenho pena daquele/ que se agacha até o chão/ enganando a si mesmo/ por dinheiro ou posição/ nunca tomei parte/ neste enorme batalhão/ pois sei que além de flores/ nada mais vai no caixão”. Impiedoso cronista urbano, Wilson fotografa, com lentes de jornal de sangue,“Mãe solteira”, samba canção dramatizado pelo cello de Hugo Pilger: “Parecia uma tocha humana/ rolando pela ribanceira/ a pobre infeliz/ teve vergonha de ser mãe solteira”. Foi sucesso na voz galante do Príncipe do Samba Roberto Silva, em 1954, e tem uma das mais lindas introduções melódicas do ramo, nos graves preparatórios que plangem: “Hoje não tem ensaio/ na escola de samba/ o morro está triste/ e o pandeiro calado”. E depois: “Maria da Penha/ a porta bandeira/ ateou fogo às vestes por causa do namorado”. Devastador.

          Semi analfabeto, mas aspirando a norma culta, como seus pares – de Cartola e Nelson Cavaquinho a MonarcoManacéaAniceto do ImpérioCandeia e Nelson Sargento – Wilson se aproximava dos mais letrados como Orestes Barbosa e perguntava: “Mestre, qual é a tese?”. Daí a consistência de sua obra, salpicada de lições subliminares (ou não) como a do filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) que reveste o ensaboado personagem “Chico Brito” (“é valente no morro/ dizem que fuma uma erva do norte”). Foi lançado pela cantora Dyrcinha (também) Baptista, em 1949, ressignificado por Paulinho da Viola nos 70, e aqui ressurge, no recado matreiro do autor, comboiado a posteriori pelo sax alto de Denize Rodrigues: “mas a vida tem os seus reveses/ dizia Chico defendendo teses/ se o homem nasceu bom / e bom não se conservou/ a culpa é da sociedade que o transformou”. 

          O filósofo, economista e revolucionário alemão Karl Marx (1818-1883) pôs as barbonas de molho, na sarcástica marchinha carnavalesca “O pedreiro Waldemar” (‘faz tanta casa e não tem casa pra morar /(...) é mestre no ofício/ constrói o edifício/ e depois não pode entrar”), na releitura emotiva de João Bosco. Ele pediu ao afiado Paulo Aragão um arranjo nos moldes do êxito original do “General da Banda” Blecaute, em 1948. Outra personagem que chamou a atenção de Paulinho da Viola na fita de Telma Soares é a turbulenta “Nega Luzia”, a que “recebeu o Nero/ queria botar fogo no morro”, lançamento do rei do sincopado, Cyro Monteiro, em 1956. Encantada com a obra do compositor, a cantora/pesquisadora Cristina Buarque, em 2000, gravou o songbook de Wilson, “Ganha-se pouco, mas é divertido”, que despertou Alzuguir para o autor. A ela, no duplo, coube o cadenciado samba “Ele me passou pra trás” (“ele vai pagar bem caro essa lição/ vai virar guarda-noturno/ nas cabeceiras do meu barracão”), lançada por Aracy de Almeida em 1942, uma de suas composições em que ele defende o lado da mulher na história.


            Como ocorre também em “Calúnia”, na voz de mais uma imantada por Wilson, a heráldica Mônica Salmaso, que dedicou um show a ele, e singra mais uma citação culta do autor: “ele vive noutros braços/ e por isso se interessa em dar ouvidos ao que o povo diz/ ‘não há vinho que embriague mais que a verdade’/ estou de acordo com Machado de Assis”. Alzuguir fez saborosas intervenções no repertório como a de casar a valsa “Copacabana à noite”, em que Nei Lopes no papel de um galanteador oferece os acepipes do bairro na década de 50 (“vamos ao Sacha’s, ao Gamboa, ao 36/ ouvir o Silvio e a Elizeth mais uma vez”) à “cortejada” Joyce Moreno. Ela rebate com o batucado “Gosto mais do Salgueiro” (“eu sou lá no morro/ a porta estandarte/ já ganhei medalha/ sambar é uma arte”), onde Nei, a certa altura, insere versos de improviso. 

         Outro espelhamento interessante criado pelo biógrafo/produtor une o clássico libertário feminista “Oh, seu Oscar” (“está fazendo meia hora que sua mulher foi embora/ e um bilhete assim deixou/ não posso mais eu quero viver na orgia”), na voz do autor, e retificadora “A mulher do seu Oscar” (“quando eu dizia vou-me embora pra orgia/ era para o samba/ sem segunda intenção”), pela cantora lusa Ana Bacalhau. Pesquisador acurado Alzuguir descobriu diversos sambas de autores diferentes (Noel Rosa, Herivelto MartinsZé da ZildaHaroldo LoboHeitor dos Prazeres) envolvendo o mesmo personagem para o qual escreveu o musical “A cuíca do Laurindo”. De Wilson foram escalados “Oba oba” (“Laurindo tirou os tamancos e subiu o morro correndo/ gritando: desperta Mangueira, que a turma vai se acabar”), lançado pelos Anjos do Inferno (1945) e “Laurindo Filho” (“ comandando a bateria vem Laurindo Filho, que honra o nome do seu pai”), por Miguel Baúso, (1944). Entre várias outras pepitas há uma estupenda recriação de Filó Machado para o clássico “Não é economia (alô padeiro)”, num clima bossa-jazzzistico com direito a scats. 

          O duplo tem assuntos inesgotáveis, mas certamente um deles é o elenco de parceiros duvidosos e/ou composições onde o nome do autor sequer aparece. Frequentador do mercado livre do Café Nice, Wilson vendeu composições a rodo. Tenho documentado uma delas: “Cedo a D. Valentina Biosca todos os meus direitos sobre minha parceria no samba ‘Raiando’, podendo fazer com a mesma o uso que lhe convier. E para constar passo a presente em três vias, sellado de acordo com a lei”. 15/5/1935. Assinado: Wilson Baptista. Testemunhas: J. Aimberê e José Maria de Abreu”. Em parceria com Murilo (irmão de Silvio) Caldas, o samba comercializado (não incluído no duplo) ganhou as vozes do Bando da Lua, em julho de 1935. O mundo de Wilson era ontem, mas sua obra gigantesca chegou ao amanhã em que ele desacreditava. (Tárik de Souza)


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