Flores em Vida

Entre sonhos em verde e rosa com Mestre Siqueira

quinta, 21 de setembro de 2023

Compartilhar:

O cavaquinista e compositor celebra 86 anos com grande parte de sua obra autoral ainda inédita 

Numa manhã de 1952, o menino Siqueira, com seus 14 anos, saiu de casa decidido: como já trabalhava para ajudar a família, conseguiu também, com muito esforço, juntar pequena quantia para comprar um “violão pequeno”, maneira carinhosa como a qual o garoto se referia ao cavaquinho, instrumento musical que o fascinava. Ao voltar com um embrulho debaixo dos braços, a mãe notou: “O que é isso, aí? Eu não falei para você que cavaquinho não?”. O rapazinho apenas fez abaixar a cabeça silenciosamente. “Mas eu vou respeitar sua vontade. Toque baixo, ou eu tomo e quebro”. E assim foi.

José Siqueira de Alcântara nasceu no dia 21 de setembro de 1937, no bairro da Água Fria, em Recife, Pernambuco, e a música lhe veio como herança: o avô, Pedro Gomes de Alcântara, foi líder fundador do Maracatu Porto Rico de Água Fria, movimento que o menino vivenciou durante a infância, enquanto a mãe, Josefa Alcântara Goulart, tocava piano e foi também uma importante Ialorixá (mãe de santo). Por sua vez, o pai, Manoel Siqueira do Nascimento, era um boêmio bandolinista, que promovia reunião de chorões nos finais de semana.

No início da década de 1950, após o falecimento de Manoel, a família embarcou num navio rumo ao Rio de Janeiro. Foi ali o começo musical de Siqueira. “Meu professor foi o mundo. Ficava ouvindo o Regional do Canhoto na Rádio Mayrink Veiga. Muitas vezes quando eu descobria o tom, a música acabava. Mas no outro dia estava lá de novo e, de tanta insistência, fui aprendendo”.


Aos poucos, Siqueira começou a circular e tocar em rodas de choro e samba, além de se apresentar nas gafieiras da cidade. Sua carreira como músico acompanhador se desenvolveu e predomina nesses mais de 70 anos de trajetória profissional, tendo acompanhado nomes como Jamelão, Moreira da Silva, Nelson Gonçalves, Ademilde Fonseca e Alcione. "Mas não vivi de música. Fui funcionário público da Prefeitura do Rio de Janeiro por quase 40 anos”.

Certa vez, quando atuava como técnico de TV e Rádio, em uma oficina na Cidade Deus, recebeu a dura notícia do falecimento do cavaquinista e compositor Waldir Azevedo. "Ele era meu ídolo. Fiquei paralisado, completamente parado. Quando eu voltei ao normal me veio a música imediatamente”. Assim nasceu a canção "Cavaquinho em Prantos". 


No currículo, Siqueira reúne algumas preciosidades e experiências únicas. Uma delas é sua participação enquanto cavaquinista na Velha Guarda da Mangueira, posto que ocupou por mais de 30 anos.

Ouça aqui "Mangueira do Amanhã" 

Foto Siqueira na Velha Guarda

Também merece destaque sua presença na última formação do grupo de Pixinguinha: “Nesses 5 anos tocando com o Pixinguinha eu nunca vi ele brigar com ninguém. Ele era muito tranquilo, pois para ele estava tudo certo. Ele era uma pessoa fora de série, muito generoso”.

Composições

A criação autoral de Siqueira está presente desde sua iniciação musical, porém, suas canções foram sendo deixadas em segundo plano, talvez até devido a suas complexidades harmônicas. "Eu tenho muita música. Eu tinha feito uma conta uma vez e tinha entre 400 e 500 canções”. No repertório, há de tudo: uma variedade de gêneros e ritmos, como polcas, valsas, sambas, frevos, baiões, choros e jongos. “Para mim, tudo começou no jongo e acho que sou um pioneiro em tocá-lo de modo instrumental”.

E um detalhe bonito: grande parte de suas composições nascem a partir de seus sonhos. "Quando acordo a música já está prontinha, não sei explicar, não sei nem a quem agradecer”. Foi assim, aliás, quando, em sonho, tocava seu cavaquinho ao lado de outros músicos em uma roda. Eis que surge o ícone do Choro, Jacob do Bandolim, que se aproximou de Siqueira e o convidou para o canto. Ao ouvido, soprou a melodia, que virou a música "Inspirado em Jacob": “Quando acordei já estava com a música toda debaixo do braço”.

Ouça aqui "Inspirado em Jacob"

Por volta do ano de 2008, os jovens amigos Pedro Cantalice e Wellington Monteiro conheceram Siqueira e iniciaram uma bonita amizade. Um pouco depois, o grupo se articulou e, através de campanhas de financiamento coletivo, iniciou o registro da obra autoral de Siqueira. O primeiro disco, "Siqueira - Entre nós", foi lançado em 2013 e, quatro anos mais tarde, foi a vez do álbum "Siqueira - 80 anos", celebrando o octogésimo aniversário do compositor. Ambos trabalhos estão disponíveis nas plataformas digitais de música.

Em 2020, Siqueira lançou o EP “Encantado”, projeto que apresenta de maneira inédita o baluarte como cantor e intérprete de seus próprios sambas e reuniu músicos convidados e participações especiais de nomes como Paulão 7 Cordas, Marquinho China, Carlinhos 7 Cordas e Wanderson Martins. No mesmo ano, um pouco antes do início da pandemia, Mestre Siqueira participou do projeto Instrumental Sesc Brasil, em São Paulo, importante registro para a difusão de sua obra. Mas ainda é pouco considerando a quantidade de músicas inéditas que o cavaquinista acumula em seu acervo.


"Eu respiro música, toda minha vida é a música: é a fonte da qual me alimento", resume Siqueira, adepto do Budismo há mais de 40 anos. “Sabe o que é? Eu vivia com a sensação de estar procurando algo, quando conheci essa filosofia, esse sentimento acabou”.

Para celebrar seus 86 anos, Siqueira recebe homenagem dentro da programação do Festival Memória do Cavaquinho Brasileiro, em atividade que acontece no dia 22 de setembro, no Centro Artur da Távola (RJ). E no dia 18 de outubro, reúne amigos e amigas no Espaço Cultural Paulão 7 Cordas, na Glória (RJ), para uma roda de choro e samba. 

O veterano segue com paciência e sabedoria: "Eu vejo a minha vida como uma missão, contribui com a música popular brasileira. Eu tento transmitir para os outros o que eu sei, o que aprendi". E, claro, com sonhos: "Ver o Choro ocupar o lugar que ele ainda não ocupou, pois ele é muito importante para a música brasileira. E, se eu tiver a boa sorte, conhecer a África, a minha origem".

Sobre o Colunista

Camilo Bousquat Árabe é jornalista, produtor e músico. Amigo pessoal de Mestre Siqueira, já produziu shows do artista e co-produziu ao lado de Wellington Monteiro e Pedro Cantalice, o EP "Encantado". Já acompanhou e desenvolveu projetos junto a artistas como Wilson Moreira, Nelson Sargento e Zé Katimba, e é um dos idealizadores do Coletivo Sindicato do Samba, movimento que atua pela valorização em vida de mestres e mestras da música popular.


Comentários

Divulgue seu lançamento