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CARAVANAS de Chico Buarque, uma crítica atrasada

quarta, 27 de março de 2019

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Quero começar declarando: ninguém gosta mais do Chico Buarque do que eu. Pode até existir alguém que goste igual, mais do que eu nunca. Gosto até dele cantando, veja só, o que me rende severas críticas dos amigos. Afirmam indevidamente que ele tem voz de taquara rachada. Não tem, não acho. Adoro seu timbre, sua divisão e afinação. Sabe cantar e sabe o que está cantando. Ainda tem mais: não bastasse ser excelente compositor e um bom cantor, é um profissional perfeito. Tive a honra de produzir, junto com Hermínio Bello de Carvalho, um disco dele: “Chico Buarque de Mangueira”. Ele era sempre o primeiro a chegar, o ultimo a sair, não reclamava de nada, fazia o dever de casa. Não é nada vaidoso, coisa rara no meio artístico. Uma maravilha, um sonho de artista em todos os sentidos.

Depois deste salvo-conduto, vamos a minha opinião sobre o disco CARAVANAS.

O disco começa com uma levada antiga, pouco manjada nos dias de hoje: um lundu intitulado TUA CANTIGA. Em verdade, trata-se de uma dança africana que foi fundamental para a formação da música brasileira, tendo influenciado o choro e o samba. TUA CANTIGA é construída em compasso ternário, sincopada, com uma linda modulação na harmonia. A harmonia – espetacular – sublinha a rítmica peculiar da canção. A melodia é tão boa que a gente decora antes de aprender a letra. Não é pra menos: trata-se de mais uma bela composição do pianista Cristóvão Bastos que, com Chico Buarque, já havia feito a inesquecível canção “Todo Sentimento”, gravada por mais uns trinta intérpretes. Entre eles: Maria Bethânia, Nana Caymmi, Cauby Peixoto e Elizeth Cardoso, que gostou tanto da canção que batizou seu derradeiro disco com esse nome. Porém, ao meu ver, o mais simbólico desta parceria foi a “reconciliação” da dupla depois de uma antiga briga que oficialmente nunca aconteceu. Para quem não lembra, Cristóvão foi arranjador e músico do Chico por muito tempo. Agora, a dupla volta com mais essa pérola, com direito aos versos finais do Soneto CXVI de Shakespeare: “Ou estas rimas/Não escrevi/Nem ninguém nunca amou”. Que venham outras. 

Antes de passar para o BLUES PRA BIA, tenho que registrar a polêmica que causou o lançamento antecipado da TUA CANTIGA. Na ocasião, os chatos de plantão afirmaram que a música tinha um viés machista porque o narrador promete a amada que largará a família para ficar com ela. Uma reação típica de quem confunde o personagem da canção com o autor. Chico respondeu que machista é quem fica com a mulher e a amante. Bingo! Fico pensando: esse povo politicamente correto sabe que o amor é o ridículo da vida?

Começamos com 1 x 0 para as boas canções do disco.

Agora o BLUES PRA BIA. Aliás, outro blues do Chico. Não sei qual é o melhor. Nesta linha rítmica já tinha feito “A história de Lily Braun” (com Edu Lobo); “Bancarrota Blues”; “Ultimo Blues”, entre outros. Desta vez destaca-se uma questão do contemporâneo, das opções de gênero, tema da moda. O narrador confessa seu amor derramado pela bela Bia. Por sua vez, ela não dá a menor bola pro seu deslumbramento. Ele sofre – melancólico – com seu descaso. Afinal “é da natureza dela viver solta por aí”. O problema é que Bia não gosta de “meninos”. A solução inusitada e deliciosa ele revela no final: “até posso virar menina pra ela me namorar”.

2 x 0 

A terceira faixa é coisa séria: A MOÇA DO SONHO. O sonho é um tema recorrente na obra de Chico Buarque. Mas, como ele mesmo afirma: sonho, sonhos são. É neste universo onírico que o autor pode devanear à vontade, com imagens loucas e lindas, com escadas que fogem dos pés e relógios que rodam pra trás. Quem será a moça que se desfaz em pó? Mas volta cantando a meia voz, já com outro rosto e o vestido partido? O personagem nos acalenta com esperança de que os sonhos extraviados estão guardados num bazar. Linda e emocionante faixa executada com poucos instrumentos, bem intimista, com a clara intenção de revelar as sutilezas da letra. A gravação original é de 2001 feita pelo cantor, e também parceiro da música, Edu Lobo para a trilha sonora da peça Cambaio. Uma obra típica de um Chico Buarque dos velhos e bons tempos. 

3 x 0 

Até aqui o disco vem muito bem. Mas nada é perfeito, nem a obra do Chico Buarque é perfeita. Como diria o crítico Tinhorão, nos bons tempos do Jornal do Brasil, a faixa JOGO DE BOLA é um tremendo “boi com abóbora”. Em forma de chorinho a música destoa completamente das faixas anteriores. Uma misturada de futebol com filosofia de botequim, uma Maria Chuteira de pé quebrado. Essa impossibilidade do velho Chico frente à potência do menino se liquefaz em palavras. Falta aqui a conhecida mão de artesão das palavras que o genial artista sempre imprimiu em suas letras. Prefiro a mesma temática desenvolvida pelo compositor na música “O Velho Francisco” (gravada em 1987), onde o personagem apresenta as suas aventuras, desventuras e senilidade. 

Nesta altura o placar entre as músicas boas e ruins já é de 3 x 1.

MASSARANDUPIÓ (é uma praia na Bahia), valsa do neto Chico Brown (filho de Carlinhos Brown), também não é lá uma Brastemp, apesar de ser a melhor música original do disco. A melodia ganhou uma letra singela e correta do avô sobre a infância do neto. Confesso que aceitei melhor a letra quando vi a montagem de fotos antigas que Chico Brown fez com a música: “Devia o tempo de criança ir se arrastando até escoar, pó a pó num relógio de areia no areal de Massarandupió”. Vale a pena dar uma espiada na tal montagem: 


Já virou goleada: 4 x 1 

DUETO foi gravada originalmente em 1980. É sobre o inexorável destino de um casal em direção à felicidade. A letra vaticina que os astros, os signos, os búzios, o evangelho, os dogmas, tudo enfim, levará os personagens a viver um grande amor. Nada pode impedir que isso aconteça. A música segue nesta missão: mesmo que todas essas previsões não se confirmem, mesmo contrariando todos os orixás, não tem problema, dane-se os astros, os signos, os búzios, “serás o meu amor, serás a minha paz”. Uma canção com o puro pedigree buarqueano. No final da letra, o autor dá uma refrescada e acrescenta programas e ferramentas atuais da internet como o facebook, twitter, telegram e até o já falecido Orkut. A gravação é correta e Clara Buarque não faz feio, cantando com graça e charme. Não fosse neta de Chico Buarque dificilmente teria a oportunidade de regravar esta linda canção ao lado do avô. Este dueto tenta desbancar a versão da Paula Toller, mas ainda está a anos-luz das gravações da Nara Leão e Zizi Possi


5 x 1. E o placar começa a virar. 

CASUALMENTE é um bolero que ele canta uma parte em espanhol e outra parte em português. É uma parceria com o meu amigo, o talentoso baixista Jorge Helder (um gênio do instrumento), músico antigo da sua banda, com quem já compôs anteriormente “Bolero Blues” (2006) e “Rubato” (2011). Com todo o respeito e admiração que tenho pela dupla, fico em dúvida qual das três músicas é a pior. Difícil dizer. O pesquisador Paulo Cesar de Andrade, ensinava: música popular tem que poder assoviar. Se não der pra assoviar não é popular. Simples assim. Não chego a compartilhar totalmente esse conceito. Porém, estas canções estão longe de serem especiais. Se não levassem a assinatura do Chico Buarque o ouvinte não conseguiria chegar ao final da faixa. Fico me perguntando: com certeza Chico tem centenas de músicas engavetadas que recebeu de outros compositores, todas ansiosas à espera de uma letra. Então, por que escolhe uma música dessas pra letrar? O genial compositor Paulo Cesar Pinheiro, certa vez me disse que só conseguia colocar letra em músicas que ele tivesse intimidade com o parceiro. Deve ser o caso dessa parceria. 

 5 x 2 

A música DESAFOROS é outra que destoa deste álbum. O tema é sobre uma mulher que fala mal do narrador. Ele fica incrédulo quando constata que a tal mulher, com lábios tão delicados, pode dar importância a um mulato, tocador de boleros, vagabundo... o tema se torna ingrato, meio sem sentido, porque está solto, sem contexto (não foi feito para uma história específica, uma peça, um ballet). Por conta disto, a história flerta com um “preconceito” típico dos anos 30 ou 40, quando o malandro, o tocador de boleros e o mulato eram muito discriminados. Hoje em dia não há sequer boleros, nem vagabundos (no sentido romântico de antigamente) e a palavra mulato é quase politicamente incorreta. Por isso, continuo com minha indagação: Chico tem dezenas de músicas gravadas por outros intérpretes, preciosidades que ele nunca regravou. No lugar desta música, por exemplo, poderia ter regravado a belíssima “Novo Amor” (originalmente interpretada por Clara Nunes, depois brilhantemente por Nana Caymmi); “Beatriz” (se o Edu Lobo cantou ele também poderia cantar), “Embarcação” (com Francis Hime) ou “Folhetim”, entre muitas e muitas outras. Adoraria ouvi-lo cantando essas maravilhas. Ninguém melhor que o autor para interpretar suas canções.


5 x 3

CARAVANAS, a música que dá nome ao disco, tem o puro DNA contemporâneo do artista. A música trata dos meninos suburbanos, e o do ódio, (“tem que bater, tem que matar”!) que a paranoica classe média carioca tem dessa turma. Eles vêm de ônibus, em caravanas, diretamente do subúrbio para se divertir nas praias da zona sul aos domingos. A canção foi feita com base na reação da polícia depois que houve inúmeros arrastões, causando muita correria, agressões e pânico dos banhistas pela areia com medo dos roubos e da violência. Por conta da pressão dos moradores (“Filha do medo, a raiva é mãe da covardia”, afirma a canção) e da mídia, as barreiras policiais paravam “as caravanas do subúrbio” antes de chegarem às praias e mandavam os rapazes de volta para suas casas. A letra trabalha com uma ironia impagável. Entre outras pérolas, afirma que os integrantes destas caravanas (“garotos muçulmanos tipo suburbanos”) malocam seus facões e adagas dentro das suas sungas, que ficam estufadas (ou serão picas enormes?) e que seus sacos são granadas. Muito bom. No final o autor entrega o vilão: a culpa deve ser do sol. Um documento do tempo em que vivemos na visão do compositor que, inclusive, se utiliza do funk no arranjo.

6 x 3.

Chico Buarque é um compositor sem rival depois de Noel Rosa. Este disco ainda traz um pouco do Chico que sempre esteve à frente da sua época, apesar do Chico de CONSTRUÇÃO, do EU TE AMO, do GENI E O ZEPELIM ter sido atropelado pelo tempo. Seu coração – infelizmente – não anda mais descalço pela vida. Mesmo assim, continua sendo imbatível. 



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