Colunista Convidado

“Afeto”, o múltiplo tributo a Carlos Lyra, maior melodista da bossa.

quarta, 20 de dezembro de 2023

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- “A bênção, Carlinhos Lyra, parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento e ao pensamento”.

Em sua saraivada de saravás do afro “Samba da Benção” (composto com Baden Powell) em 1962, o poeta Vinicius de Moraes homenageava o ativismo de Carlos Eduardo Lyra Barbosa (1933-2023), integrante do Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes. Com ele, assinou o “Hino da UNE”, cuja letra posteriormente ressoaria irônica ao citar Lenin: “Mocidade brasileira/ nosso hino é a nossa bandeira/ de pé a Jovem Guarda/ a classe estudantil sempre na vanguarda”.

Como se sabe, a Jovem Guarda (assim batizada pelo publicitário esquerdista Carlito Maia) se tornaria rival da MPB, com sua procissão de guitarras elétricas heréticas. Com Lyra, Vinicius também compôs o afro samba “Maria Moita”, que fustigava a um só tempo o racismo (“nasci lá na Bahia/ de mucama com feitor/ meu pai dormia em cama/ minha mãe no pisador”) e a submissão feminina (“e é deitada, em pé/ mulher tem é que trabalhar”). A canção fazia parte da trilha do musical de protesto “Pobre menina rica”, protagonizado por Nara Leão, uma das alunas de “violão bossa nova”, de Lyra e o sócio Roberto Menescal, numa improvisada Academia de Música, instalada numa ex-garconnière, em Copacabana.

Da mesma trilha era o progressista “Samba do carioca” (gravado no original, na voz do maestro Moacir Santos), de letra politicamente metafórica: “O dia já vem vindo aí/ e o sol já vai raiar”. Ela é uma das 14 escaladas para o sensível álbum “Afeto – homenagem Carlos Lyra 90 anos”, lançado em maio, sete meses antes da morte do compositor, aos 90 anos, neste último 16 de dezembro. Numa abertura de leque estético, a interpretação coube à “garota sangue bom” do BRock/funk/dance Fernanda Abreu, balizada pelo piano de balanço do bossanovista primal (e eclético) João Donato, com quem dialoga. Também da mesma trilha, é o petardo lírico (com trocadilho) do compositor, que o colega de movimento Tom Jobim considerava “o maior melodista do Brasil”. “Sabe você” (“o que é o amor?/ não sabe, eu sei/ sabe o que é um trovador?/ não sabe, eu sei”) reúne as vozes do ex-sócio Menescal e da exímia cantora da nova geração, Paula Morelenbaum. Ela é filha do consagrado cellista Jaques Morelenbaum, que pontua o encordoado da faixa, sob arranjo e piano de Antonio Adolfo.

Lançada em 1964, pelos harmoniosos vocais do grupo Os Cariocas, a mega clássica “Minha namorada”, uma seresta bossa nova, ficou aos cuidados do refinado Edu Lobo, da segunda geração do movimento - já MPB. Num arranjo do pianista da faixa, Gilson Peranzzetta, Edu singra uma cama de nuvens formada por dois violinos (Priscila Rato,Tomás Soares), viola (Dhyan Toffolo) e violoncelo (Hugo Pilger). Sem perigo de deslize, como garantiu outra afirmação de Jobim sobre o aliado: “Lyrista e Lyricista, romântico de derramada ternura, nunca piegas, lacrimoso, açucarado".

Lyra estreou o aguçado senso crítico numa diatribe contra a influência estrangeira, na pré-bossa “Criticando”, gravada pelos supracitados Cariocas, ainda em 1957. E refinaria a mira em “Influência do jazz” (“pobre samba meu/ foi se misturando, se modernizando e se perdeu”), um clássico instantâneo, que ele próprio levou ao célebre Festival de Bossa Nova no Carnegie Hall, em Nova Iorque, em 1962. A composição dialética, do autor que aproximou a bossa da “voz do morro”, ao emparceirar Zé Keti (“Samba da legalidade”) e apresentá-lo, ao lado de Cartola e Nelson Cavaquinho à Nara Leão - que os gravou - critica a influência num nítido samba jazz. Ela é explorada em todas as suas angulosidades balançantes em faixa da homenagem, que reúne a inusitada dupla de pós-bossanovistas Joyce Moreno e Ivan Lins, com arranjo de Marcos Valle

Numa das composições mais recentes do disco é a própria Joyce a parceira de Lyra. A nostálgica “E era Copacabana” (“noites febris/ tempos gentis/ eu já fui tão feliz”) transcorre intensa pela magistral diva contemporânea deste tipo de canção requintada, a paulistana Mônica Salmaso. Assim como Chico Buarque se propôs a não cantar mais sua própria “Com açúcar com afeto” (escrita a pedido de Nara Leão), Lyra também auto condenou ao exílio, pelo final da letra, que passou a considerar machista, “Quando chegares”, sua primeira composição, escrita em 1954. Mas, cantada por outra ex-aluna da Academia de Violão, a também paulistana Wanda Sá, tais versos ressignificam, no empoderamento feminino do tiro de misericórdia ao amor ejetado: “E quando já for bem cedinho/ não quero ouvir tua voz/ sai sem adeus, de mansinho/ esquece o que houve entre nós”.

Igualmente abrasiva, “O negócio é amar”, nas vozes do casal Marcos Valle e Patricia Alvi é uma curiosa parceria póstuma de Lyra com a grande dama do samba canção pré-bossa, Dolores Duran, que se tornou um sucesso de cauda longa do repertório do compositor. Rasga a letra: “Tem homem que briga pela bem amada/ tem mulher maluca/ que atura porrada/ tem quem ama tanto, que até enlouquece/ tem quem dê a vida por quem não merece”. Arquitetada sobre notas iniciais de um prefixo da dupla humorística “O gordo e o magro”, a matreira “Lobo bobo”, fabulada pelo parceiro Ronaldo Bôscoli, é um prato feito para a sagacidade da filha do sambista da Vila Isabel, Mart’nália: “Era uma vez um lobo mau/ que resolveu jantar alguém/ estava sem vintém, mas arriscou e logo se estrepou”.

A safra inicial das parcerias com Bôscoli, letrista, jornalista, produtor e agitador cultural da bossa, também é de primeira linha, como a “Canção que morre no ar”, outra pérola do lirismo de Lyra, na voz epitelial de Ney Matogrosso. E a inestimável “Saudade fez um samba”, lançada por João Gilberto (notório admirador de Lyra, que gravou nada menos de seis de suas composições na trilogia básica de sua discografia). Em “Afeto” ela ganha o afago do discípulo iconoclasta da bossa, Gilberto Gil, que se acompanha ao violão, acartonado pelo piano de Donato, autor do arranjo, e um naipe de sopros de manso balanço, integrado por Ricardo Pontes (sax/flauta), José Arimatéa (trompete) e Josiel Konrad (trombone), sob o condimento do trio Luis Alves (baixo), Robertinho Silva (bateria) e Sidinho (percussão). . 

O outro iconoclasta tropicalista, Caetano Veloso, vocal entremeado por vibrafone (Arthur Dutra), fisgou “Ciúme” (“tenho razão em proceder assim/ de vez em quando reclamando/ de quem anda com você”), mais uma pérola obscura do repertório do homenageado, que foi reluzindo ao longo do tempo. Exemplo típico de obra sólida. Que permite a anfíbia bossa/roqueira classuda Leila Pinheiro ao piano, voz e arranjo, escudada apenas no cavaco de cinco cordas de João Felipe, espalhar-se “Além da bossa”, rara parceria de Lyra com Daltony Nobrega. “Eu trago a harmonia/ trazes a cadência/ esta é a ciência de viver/ pode ser um rock, um soul ou coisa nossa/ sei que além da bossa/ há tantas dimensões”.

Tachada de corrente elitista pelos mequetrefes detratores - que tal? – um de seus clássicos, “Maria Ninguém”, de Carlos Lyra, foi música tema da chanchada ortodoxa “Pistoleiro bossa nova”, dirigida por Victor Lima, em 1960. Estrelada por Grande Otelo, Ankito, Renata Fronzi, Wilson Grey, Renato Restier, Consuelo Leandro, ela escala Lyra cantando a canção ao violão, dentro de um trem cercado de “boazudas”, como se dizia. Uma delas, aliás, a mais notória do mundo na época, a atriz francesa Brigitte Bardot, catapultou-a para o universo pop internacional, quando fez questão de gravá-la em português, com seus charmosos erres repuxados. No disco, “Maria ninguém” foi confiada a outro nome pop, Lulu Santos, que dueta na faixa com Marcos Valle, titular do arranjo e teclados, reforçados pela programação eletrônica de Kassin.

Encerra o roteiro, também com arranjo de Valle, a sinuosa “Você e eu” (“podem me chamar/ e me pedir e me rogar/ e podem mesmo falar mal/ ficar de mal que não faz mal”), parceria com Vinicius, que exibe Lyra também como um esgrimista do sincopado, núcleo base da batida diferente da bossa. Quem nada de braçada no tema, com direito a solo de gaita do luminar samba jazzista Mauricio Einhorn, é o também esquinado Djavan, inventor de ritmos, que injeta scats no solo, e coroa com fecho de gala a afetiva homenagem ao artífice de tantas bossas.


Tárik de Souza

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