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A peleja da música de Belchior com a poesia de Zé Limeira (ou de Otacílio Batista)

quarta, 17 de março de 2021

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Recentemente, ressurgiu uma polêmica que logo se dissipou quando especialistas em cultura nordestina e em poesia falaram mais alto nas redes sociais. “Nas minhas minúsculas postagens, sempre que se encaixa, tenho feito uso de uma frase de Louis Althusser: ‘Toda citação é uma forma de interpretação’”, escreveu o sociólogo Noaldo Ribeiro em um artigo publicado em um site paraibano em 2020, antes de a acusação de plágio voltar a permear textos sobre Belchior. Com o sucesso da canção “AmarElo”, na qual o rapper Emicida evoca em um sample e nas vozes das convidadas, a cantora trans Majur e a drag Pabllo Vittar, os versos de “Sujeito de sorte”, composição do cearense presente no álbum “Alucinação” (1976), novamente houve quem questionasse a autoria do trecho “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. 


A acusação de que Belchior teria plagiado os versos do poeta paraibano Zé Limeira pareceu aos entendidos tão absurda quanto toda a história que envolve o cantador, durante muito tempo tido como um mito criado pelo jornalista e escritor Orlando Tejo. Estão no livro “Zé Limeira – O poeta do absurdo”, publicado por Tejo em 1973, três anos antes do registro fonográfico, os versos que também foram pleiteados por outro cantador paraibano, o famoso Otacílio Batista

“Eu já cantei no Recife,
dentro de um pronto-socorro.
Ganhei duzentos mil réis,
comprei duzentos cachorro.
Morri no ano passado,
Mas esse ano eu não morro!”

No livro “Zé Limeira, poeta do absurdo”, Orlando Tejo narra passagens da vida do cordelista e repentista da Paraíba e transcreve trechos da sua obra. Mas quando, durante uma entrevista publicada na “Enciclopédia Nordeste”, o bacharel em Direito, poeta, ensaísta, jornalista, folclorista e professor paraibano conta que chegou a questionar se esteve equivocado sobre a existência de seu biografado e diz que os registros feitos em um “gravador da Rádio Caturité, um bichão quadrado, deste tamanho assim” se perderam, ele reforça a tese defendida por muitos de que o personagem principal da história foi uma criação sua, com o auxílio de violeiros e cantadores, entre eles Otacílio Batista, expoente da cultura nordestina que defendeu até a morte a importância de Zé Limeira para a formação de diversos escritores e poetas daquele estado brasileiro. Tendo existido ou não, Limeira influenciou também gerações de músicos de todo o Nordeste, entre eles Belchior (Ceará), Zé Ramalho e Chico César (Paraíba) e Chico Science e Otto (Pernambuco) etc. Segundo Otacílio, Zé Limeira “fazia versos sem pé nem cabeça, embora perfeitamente dentro da métrica e rima: ‘Ele esculhambava era com a oração’”. 

Orlando Tejo alega que “a fita ninguém sabia manejar, e grande parte da cantoria se perdeu”. Parecendo querer convencer o entrevistador de que a história de Zé Limeira não se tratava de uma ficção, de uma criação literária, o auto-intitulado biógrafo afirma que sua memória era muito boa e que decorou “um bocado de coisa” do que ouviu durante os quatro anos em que acompanhou Zé Limeira nas cantorias de viola, entre 1950 e 1954, quando o personagem conhecido por não abrir mão em suas poesias de distorções históricas, surrealismos e neologismos esdrúxulos teria falecido. 

Objeto raro naqueles tempos, o gravador poderia nem ter sido citado por Tejo nesta sua fala. Até porque, quando em passagens como uma do capítulo 5 de seu livro, em que ele afirma que Otacílio Batista lhe contou a história de sua parceria com Zé Limeira, fica claro que a coleta de material para a produção da biografia foi feita, em grande parte, através da oralidade, seguindo os moldes nordestinos de produção de poesia. Se hoje, para se construir uma narrativa biográfica ou fazer qualquer tipo de entrevista, esse aparelho tornou-se uma extensão da memória do pesquisador/escritor/jornalista, naquela época, pela dificuldade de acesso, não se considerava essencial o uso dessa tecnologia. 

Zé Limeira existiu, garante Astier Basílio, que está escrevendo uma biografia de Orlando Tejo. Em uma entrevista ao G1, o jornalista, escritor, poeta e repentista paraibano alegou que Tejo “era uma figura do jornalismo romântico e uma figura muito gozadora, que paquerava muito proximamente com a ficção. Zé Limeira é um personagem real, apresentado no livro em situações reais e fictícias. Fica muito difícil saber o que é real e o que é ficção”. Se Otacílio Batista – que tem dezenas de livros publicados e sempre foi muito respeitado no meio, tendo sido trazido por Zé Ramalho pelas mãos para o Rio de Janeiro para gravar um disco – tiver falado a verdade, os versos nem de Limeira são: Otacílio reivindicou a autoria em 1981, na segunda edição da “Antologia Ilustrada dos Cantadores”, escrita por ele e pelo professor Francisco Linhares. 

Tanto se brincou com a história de Zé Limeira que, por fim, quem levou a fama foi Belchior: leitor voraz, porta-voz de muitas vertentes de pensamento, citador de Limeira e de Beatles, Belchior reinventou os versos de Limeira e, como pudemos ver depois da ponte que Emicida fez entre o compositor cearense e uma nova plateia, tornou-o atemporal. 


Chris Fuscaldo 

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