A Palo Seco

Tinhorão e os caminhos inesperados da música popular

quarta, 11 de agosto de 2021

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Ninguém sabe o que vai acontecer amanhã na música popular. Afinal, ela requer que diferentes pessoas se juntem a todo o momento, das mais diversas formas – ela se alimenta de movimentos. Se há partituras ou gravações, essas servem como guia apenas: a sua matéria própria de existência é o encontro de pessoas. E, bem, as pessoas possuem trajetórias muito diversas, seus pontos de vista se modificam com o tempo e, assim, a música toma rumos inesperados, que nada mais são que um sinal da vitalidade das tradições musicais: o que está vivo está se transformando.

Não há dúvidas que esses caminhos sejam muito pouco intuitivos, e grande parte do que temos como óbvio deve muito a essas mudanças de perspectiva, algumas vezes rápidas, outras vezes ao longo de décadas.

Pensemos no choro, por exemplo, muitas vezes tido como o mais brasileiro dos gêneros: seu personagem maior, Pixinguinha, foi tratado, por vezes, como americanizado. Pouco tempo depois, a bossa nova sofria as mesmas críticas: bebendo da fonte do jazz, fundou-se em outra instrumentação e lógica musical, procurando novos caminhos para reler essa música negra americana a partir de algumas tradições musicais brasileiras – ambos são, hoje, signos inequívocos de nossa música.

Esses processos são, muitas vezes, caminhos tortuosos e, via de regra, cheios de conflitos. Na última semana, faleceu o pesquisador José Ramos Tinhorão, que, mais que uma testemunha dessas transformações, foi um de seus personagens centrais, das mais diversas formas. Se, por um lado, foi um dos mais minuciosos pesquisadores de tradições musicais, como o lundu e a modinha, por outro, ficou famoso por polêmicas em suas posturas que, de certa forma, visavam redirecionar ou frear essas transformações, um conservador no sentido estrito do termo.

O que Tinhorão mostrou em seu escritos foi a força que um trabalho intelectual consistente pode ter, seja para mostrar como se consolidam os traços fundamentais de movimentos musicais, seja mesmo para ser um contraponto a movimentos grandiosos de nossa música. Foi, enfim, um agente central por mais de meio século em um esforço de direcionar os caminhos da música popular brasileira, muitas vezes tomando posições abertamente controversas.

Assim, para honrar o seu legado, é preciso ir além desses episódios de tons quase panfletários: talvez o maior desafio ao encarar a obra de Tinhorão seja, enfim, o de saber passar ao largo de picuinhas para poder apreciar a beleza de uma obra fundada em décadas de pesquisa apaixonada e escrita rigorosa.

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