Sobre a Canção

Sina: uma reescuta

quinta, 04 de janeiro de 2024

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Quantas vezes é preciso escutar uma canção até que não sejamos mais capazes de ouvi-la? Ou por outra, quantas canções já ouvimos tantas vezes que, ao soarem seus primeiros acordes, automaticamente desligamos a audição, e em vez de ouvirmos a música que toca, só percebemos aquilo que já conhecemos dela?

O exercício de tomar uma canção extremamente conhecida, já ouvida centenas de vezes, e tratar de escutá-la uma vez mais, como se fosse a primeira, pode ser revelador, especialmente se se tratar de uma grande canção. Por debaixo das camadas de automatismo auditivo podem se esconder inúmeros detalhes e significados que passaram despercebidos da escuta cristalizada.

Sina”, de Djavan, é a rainha dos bares. Sua batida inconfundível ao violão foi tocada por todos. Recebeu inúmeras gravações até tornar-se quase um clichê de si mesma. No entanto, aquilo que a tornou a canção querida que é está ali, à disposição dos nossos ouvidos. Então, escutemos. A primeira gravação de “Sina” é feita por Caetano Veloso no álbum “Cores, Nomes”. “Sina” foi composta por Djavan para Caetano e gravada antes por ele. Mas no mesmo ano, 1982, Djavan a gravou em seu álbum “Luz”.

É interessante notar, antes de tudo, que o núcleo rítmico de Sina é um ijexá, presente de um alagoano para um baiano gravar. Porém, Caetano, ao invés de gravar a canção como um afoxé típico, aproveita somente a célula rítmica do acompanhamento que se tornou sua marca registrada, introduzindo um instrumental com a guitarra de Perinho Santana, uma sonoridade mais próxima dos caminhos que a música baiana ia tomando à época. (Parêntesis: numa reportagem do jornal Valor, Antônio Risério traduz o verbo “caetanear”, cunhado por Djavan nessa música, como “defender o que para muitos críticos parece indefensável: o valor da música popular feita na Bahia desde a década de 1980, que costuma ser rotulada genericamente de axé music”).

Além de Sina, ele utiliza o mesmo padrão rítmico em outros arranjos do mesmo álbum, como “Ele me deu um beijo na boca” (em que Caetano afirma: “Eu sou do clã do Djavan”). Já Djavan, em seu arranjo, mostra-se de certa forma mais realista que o rei, ao gravar a canção com a percussão típica do afoxé, que se apresenta logo na introdução, antes de todo o restante da instrumentação. E, por outro lado, “Queixa”, que abre o álbum de Caetano, inicia-se igualmente com a percussão de ijexá... 

No entanto, o álbum “Luz”, gravado em Los Angeles com diversos músicos estadunidenses, foi tido como o primeiro passo para uma internacionalização da carreira de Djavan, por isso mesmo tem uma sonoridade mais pop do que álbuns anteriores. O disco foi bastante criticado quando lançado, embora apenas no álbum seguinte, “Lilás”, Djavan fosse radicalizar a linguagem na direção do eletrônico — com resultados hoje datados em termos de sonoridade. Olhando-se retrospectivamente, “Luz” consegue uma fusão excepcional entre o pop e a música brasileira, que serviu de base para muito da produção posterior de Djavan, aliada a um perfeccionismo de gravação que, em contraste com os poucos elementos instrumentais (além de bateria e percussão, as linhas de baixo, violão e piano são absurdamente econômicas), levou Djavan a gravar 15 camadas de vozes nos vários “scat singing” da gravação. 

Voltando, portanto, a “Sina”, a canção, duas características podem ser nosso ponto de partida, pontos em comum na escuta cristalizada: além da batida sincopada já mencionada, sua letra de contornos inesperados e classificada de “nonsense” pelos desavisados — como, aliás, diversas outras de Djavan. Porém, a noção de que suas letras não façam sentido causa repulsa no próprio autor. Ao menos uma vez ele já se pôs a explicar verso a verso o refrão de “Açaí” no meio de uma entrevista, com uma indignação algo cômica. Mas efetivamente os versos isolados de diversas canções de Djavan (e de Sina em particular) não fazem sentido por si, ou o fazem em pequenos blocos que precisam ser articulados entre si, mais que pela melodia, pelo ritmo. 

E nesse ponto a escuta desatenta talvez tenha seu quinhão de sábia, por permitir a decantação dos dois elementos efetivamente fundamentais na composição. Em Sina, a síncopa, tanto do arranjo quanto da própria canção, é um elemento afinado com a fragmentação da letra. Andam ambas pari passu. Ou melhor dizendo: a divisão rítmica é a costura entre os significados da letra. Como se as frases cantadas fossem a parte do fio visível, e as interrupções entre os versos, o fio invisível no avesso do tecido. 

Isso é perceptível desde os versos iniciais. “Sina” é aberta por um esquema de pergunta e resposta, um bate-bola de definições entre dois motivos musicais:

Pai e mãe: ouro de mina / Coração: desejo e sina / Tudo o mais: pura rotina 

Essa delimitação introdutória usa um formato econômico usado por Djavan em outras composições, inclusive na indecifrada “Açaí”: “Açai: guardião / Zum de besouro: um imã”, tão somente uma elipse do verbo ser, deixando uma interrupção entre sujeito e complemento nominal, que por sua vez é espelhada no desenho rítmico. Porém, mal é desenhado esse esquema, ele será interrompido por uma palavra: “jazz”. Luiz Tatit, criador de um método de análise da canção popular e que dedicou um capítulo a “Sina” em seu livro “Semiótica da canção: melodia e letra”, dá especial atenção a esse verso de apenas uma palavra, central na canção. 

Tatit aponta que, após três reiterações da terminação na nota da tonalidade, como que compensando melódica/harmonicamente a falta de chão da síncopa rítmica, a palavra jazz se estende na terça da tonalidade, o que Tatit engenhosamente chama de síncopa vertical. Apenas dois tons de diferença entre as terminações são suficientes para dar ao ouvinte a sensação de que a melodia plana a dois passos do chão. Além disso, ao estender-se num tempo longo, “jazz” quebra a convenção rítmica recém-estabelecida e instaura instantaneamente a melodia passional, reforçada pelo fato de surgir numa nota mais aguda, de maior tensão. 

Por sinal que a palavra jazz terá efeitos opostos encerrando a parte A e a parte B. Depois dos versos “tudo o mais: pura rotina”, o “jazz”, com sua característica do improviso, do inesperado, apresenta-se como o antídoto, o recurso de cura, em contraste absoluto. O verso seguinte, “tocarei teu nome pra poder falar de amor”, associa a este o nome da amada e, por consequência, coloca-a também em contraste com a “pura rotina”. Já em sua segunda aparição, “jazz” segue-se aos versos “tudo o mais: pura beleza”, que por sua vez termina uma sequência que fala da mulher amada (“art nouveau da natureza”). E nesse caso, “jazz” vem complementar essa noção, tornando-se, inversamente à primeira vez que é dito, um exemplo de beleza, reforçando a frase anterior. Assim, retirando as palavras de ligação e apenas pela escolha da sequência e alternância melódica/rítmica dos versos, Djavan dá à mesma palavra, enunciada no mesmo lugar melódico, funções opostas em sua relação com o todo.

O verso “Tocarei teu nome pra poder falar de amor” ao mesmo tempo, prenuncia o intermezzo que virá à frente apresentando seu tema melódico e serve de ponte para a retomada da forma inicial, mas agora não como pergunta e resposta, e sim falando diretamente na segunda pessoa — e só então “Sina” revela-se uma canção de amor. Após a segunda aparição da palavra jazz, virá o intermezzo, único momento da canção em que o padrão de duas notas marcadas do acompanhamento é quebrado, em dois versos: 

“A luz de um grande prazer é irremediável néon / Quando o grito do prazer açoitar o ar: réveillon!”

Esses versos tomam o tema introduzido em “Tocarei teu nome...” e o estendem na preparação do refrão. Merece atenção aqui a repetição algo corajosa da palavra “prazer” no mesmo lugar dos dois versos, explicitando: é disso que se trata aqui. No primeiro verso, comparada à luz néon, e no segundo implicitamente aos fogos de artifício do ano novo, num crescendo. Esses dois versos são talvez a mais bela descrição do orgasmo na língua portuguesa, e igualmente anunciam o refrão-orgasmo que virá. E, ao mesmo tempo, o segundo verso remete de alguma forma aos primeiros da canção ao adotar o mesmo procedimento deles, mas invertido: a definição poética do termo vem antes, para só depois ele anunciar-se gloriosamente, com sua segunda sílaba na nota mais alta da canção – o próprio grito do prazer – e que será dada depois mais duas vezes durante o refrão. 

E o refrão que vem tem a missão de unir em si duas características opostas: a divisão rítmica dos versos enunciativos com a extensão emocional remissiva. Djavan enfrenta esse desafio com uma estrutura de versos que não remete diretamente a nenhum tema melódico anterior, seguro de que apenas a retomada do acompanhamento característico será suficiente para fazer o amálgama das partes. E funciona. Porém, para conseguir combinar a fragmentação das frases da parte A com a enunciação completa do intermezzo, ele consegue um verdadeiro ovo de Colombo, apresentando uma frase extensa de forma fragmentada. 

“Quiçá um dia a fúria desse front virá lapidar o sonho até gerar o som, como querer caetanear o que há de bom.”

Tatit diz: “Não há temas em seu interior, pois que ele próprio se configura como um grande tema resultante de toda a extensão melódica.” Porém, longe de qualquer nonsense, essa sentença, em que pese o neologismo, faz todo o sentido em termos poéticos – ou melhor, a presença do neologismo ainda reforça esse efeito. A extensão da frase, aliada ao desenvolvimento harmônico, pratica uma série de adiamentos da conclusão reconhecidos por Tatit em sua análise, concomitantes às síncopas que vão interrompendo a sentença em estacatos, até a volta à nota fundamental em terça descendente. Tatit nota também que o refrão se inicia acompanhando o pulso: “O luar / estrela”, enquanto em seu desenvolvimento se desloca livremente, para ao final retornar a ele afirmativo, definitivo: “O que há de bom.” 

Entretanto, entre a segunda estrofe, em que “Sina” trata de uma relação a dois, e o refrão, há uma mudança, e a tematização passa a um amor mais geral, como um sentimento de plenitude (intermediado pelo orgasmo do intermezzo). “Sina” amplia seu escopo no refrão e confirma-se uma canção de amor, mas não necessariamente do amor romântico. O eu lírico conversa com seu par sobre algo maior. É revelador dessa abertura de foco o paralelismo entre os versos “Tocarei teu nome pra poder falar de amor” e “Lapidar o sonho até gerar o som”, o primeiro no início da canção, o outro no refrão. Ambos descrevem a passagem do sentimento à palavra/música, ou seja, a canção. Um particular, dirigido a uma pessoa específica, outro geral, aberto, humanista; quando a alusão/homenagem a Caetano também se mostra mais abrangente, definindo difusamente um modo de olhar, ou uma ampliação do olhar que Antônio Risério descreve acima, da Bahia para o mundo. 

Mas, afinal, tudo o que é dito nessa análise fria está em estado bruto na escuta, e pode ser um tanto arrogante classificar como desatenta ou redundante a relação de qualquer ouvinte com uma canção, pois o que faz a comunicação entre ela e o ouvinte é exatamente o fato de todos esses detalhes mencionados aqui moverem o ouvinte num outro âmbito, interno e maior. O refrão de “Sina”, tanto por sua característica de ineditismo dentro da canção ao não retomar nenhum tema já apresentado quanto pela ampliação de escopo que realiza, pede reiteração. Mas mais que essas características técnicas, possivelmente há algo de autocongratulatório nele que nos leva a querer ouvi-lo e cantá-lo novamente. É a continuação de um festejo, a extensão do momento de prazer indefinidamente e estendido também a todos, como um réveillon utópico que não fosse apenas um instante. Uma trégua duradoura entre desejo e sina, se não alcançável, ao menos passível de ser vislumbrado numa canção. Esse é o desejo de “Sina”.

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