Música

Simone muito além do Natal

quarta, 25 de dezembro de 2019

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Com a chegada de dezembro e a proximidade do Natal, todo brasileiro começa a ouvir aquele questionamento inevitável: 

Então é Natal, e o que você fez?
O ano termina e nasce outra vez...

Trata-se da música Então é Natal, versão de Cláudio Rabello para a música Happy Xmas, de Johnn Lennon, lançada por Simone em 1995 no disco 25 de dezembro, data que marca não só o nascimento de Jesus Cristo, como também o aniversário dessa cantora baiana que se tornou uma das grandes vozes da MPB e que este ano completa 70 anos de idade. Este disco de Simone é considerado o primeiro álbum de Natal do Brasil. Nos Estados Unidos, gravar discos só com músicas natalinas é prática comum desde os tempos de Bing Crosby e Frank Sinatra, mas no Brasil foi sempre uma espécie de tabu. Com o 25 de Dezembro, Simone não só rompeu com esse tabu, como abriu um novo segmento na indústria fonográfica brasileira, já que o álbum (que inclui outros clássicos como Natal das crianças, Jesus Cristo, Boas festas e Noite feliz) estourou comercialmente, atingindo a marca de mais de um milhão de cópias vendidas. 

Embora este seja um álbum inegavelmente importante para a carreira de Simone (Então é Natal tornou-se um clássico da música brasileira), é injusto limitá-la a esse sucesso ou estigmatizá-la como uma “cantora do Natal”, como infelizmente aconteceu. Simone tem uma rica trajetória antes e depois desse disco, e sua importância para a música brasileira, apesar de incluir honrosamente o legado de Então é Natal, é também muito maior do que ele. 

Nascida em Salvador, Simone cursou Educação Física e foi jogadora de basquete, inclusive na seleção brasileira. Sempre gostou de música e teve boa voz, mas só trocou as quadras pelos palcos em 1973, quando lançou pela Odeon o seu disco de estreia, intitulado apenas Simone, que trazia as faixas Morena, Caminho do Sol, Tudo que você podia ser e Bandeira branca. Com isso, logo passou a ser admirada por compositores como Milton Nascimento e Chico Buarque, de quem se tornou uma intérprete fundamental. 

Já para o fim dos anos 1970, Simone foi consolidando sua voz e lançou em sequência uma trinca de álbuns que se tornaram antológicos, e são definitivos para a sua carreira e para a discografia da MPB. O primeiro foi lançado em 1977 e responde pelo nome Face a Face. O álbum é um primor que revelou, além da música de Sueli Costa e Cacaso que dá nome ao disco, outras pérolas que ganharam interpretações inspiradas de Simone, como Jura secreta (Sueli Costa e Abel Silva), O que será (Chico Buarque), Paixão e fé (Tavinho Moura e Fernando Brant) e Começaria tudo outra vez (Gonzaguinha). 

No ano seguinte, em 1978, veio Cigarra, álbum que abre com a música homônima feita por Milton Nascimento e Ronaldo Bastos que originou o apelido pelo qual Simone é conhecida até hoje. Nesse disco, Simone se revelou uma cantora visceral, intensa, com traquejo de blueswoman, sobretudo nas brilhantes interpretações que deu para canções de apelo dramático como Petúnia resedá (Gonzaguinha), As curvas da estrada de Santos (Roberto e Erasmo Carlos) e Sangue e pudins (Fagner e Abel Silva). Com a sensualíssima Medo de amar nº 2, de Sueli Costa e Tite de Lemos, ela já adiantava sua vocação para cantar aquilo que costuma ser dito ao pé do ouvido: 

Você me deixa um pouco tonta
Assim meio maluca
Quando me conta
Essas tolices e segredos
E me beija na testa
E me morde na boca
E me lambe na nuca…

Em 1979, foi lançado aquele que é considerado por muitos o melhor trabalho de sua carreira: Pedaços. A  capa do disco estampa uma linda foto de Simone nua, com o rosto sério e os cabelos volumosos, cobrindo o corpo com um abraço e revelando-se ao mesmo tempo frágil e protegida por si mesma. A antológica faixa de abertura do álbum, Começar de novo, de Ivan Lins e Vitor Martins, fala da superação de uma mulher que sai de um relacionamento abusivo e destrutivo, mas se sente pronta para recomeçar e reescrever sua história - ainda frágil, mas renovada por si mesma, como a Simone da capa. A música caiu como uma luva para aquele momento político do feminismo, em que as mulheres erguiam a voz contra uma série de injustiças e opressões estruturais que sempre se abateram sobre elas. 

A música ganhou ainda mais reverberação quando entrou para a trilha sonora da histórica série televisiva Malu Mulher, em que Regina Duarte dava vida a uma mulher recém divorciada que sai em busca de sua própria autonomia, numa época em que divórcio ainda era uma novidade muito mal vista. Simone foi, portanto, a trilha sonora e a voz propulsora dessas mulheres que não iam mais aceitar se calar ou se curvar. 

Foi justamente essa Simone que atravessou os anos e se consolidou no imaginário coletivo. Uma Simone de voz forte e ativa, que canta como ninguém os mistérios de ser mulher, com densidade, poesia e sensualidade. Ao longo dos anos 1980, lançou uma série de discos com essa temática, como Corpo e Alma (1982), Delírios, Delícias (1983) e Sedução(1988). Nesse período, mexeu com a libido de muita gente ao dar voz a canções que falavam despudoradamente do amor, do sexo, da intimidade a dois e da liberdade feminina. 

Um exemplo célebre foi Paixão, que ela lançou no disco Delírios, Delícias. Ao cantar essa música no show, Simone refastelava-se provocativamente em uma cama redonda que aparecia no centro do palco. A cena da cantora envolta por lençóis de seda e diversas almofadas potencializava a sensualidade da letra de Kledir Ramil:

Ser feliz é tudo que se quer
Ah! Esse maldito fecho eclair
De repente a gente rasga a roupa
E uma febre muito louca
Faz o corpo arrepiar…

O número - felizmente - ficou registrado no histórico show realizado no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, que virou um especial de fim de ano da TV Globo. A cena de Simone cantando Paixão escandalizou muita gente à época, e - talvez por isso - foi mais um grande passo para a liberdade feminina na música brasileira. 

De uma forma geral, ao olharmos com atenção para toda a sua trajetória, pode-se dizer que Simone foi uma cantora essencial para a MPB. Intérprete sem preconceitos, cantou sem distinção ou estúpidos juízos de valor compositores como Chico Buarque ou Michael Sullivan. Artista transgressora e ousada, teve peito de cantar o hino de resistência Caminhando (Pra não dizer que não falei das flores) para um Maracanãzinho lotado ainda na época da ditadura, e que influenciou muitas vozes que vieram depois dela, como é o caso de Zélia Duncan, com quem lançou um belo trabalho, o álbum ao vivo Amigo é casa

Seja no Natal ou em qualquer outra época do ano, o fato é que Simone é soberana. E quando, no final do ano perguntarem “o que eu fiz”, quero responder: ouvi Simone o ano todo! 

Texto por: Tito Guedes

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