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Ney Matogrosso: livro conta os 80 anos de sexo, drogas, música e morte

quarta, 04 de agosto de 2021

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Nascido em Bela Vista, fronteira de Mato Grosso (que viria a ser município do Mato Grosso do Sul em 1977, com a divisão do estado do Mato Grosso) com o Paraguai, Ney de Souza Pereira é filho de um pai homofóbico e uma mãe que devolveu na mesma medida a primeira agressão que sofreu de um homem. Quando criança e adolescente, mudou-se algumas vezes e, aos 17, acabou saindo de casa depois de se defender metendo o pé no peito do progenitor. Entrou para a Aeronáutica, morou em Brasília, onde lidou com a morte em seu trabalho e começou a cantar em coral e atuar. Praticamente assistiu a algumas tentativas de suicídio de pessoas próximas. 

Ney queria ser ator, mas virou cantor, mesmo tendo um timbre vocal estranho para os ouvidos mais tradicionais. Viu Caetano Veloso saindo de um hotel vestindo uma roupa cor-de-rosa e se sentiu estimulado a encarar a carreira artística. Por uma sorte, foi apresentado pela amiga Luli ao idealizador do grupo de rock Secos & Molhados, João Ricardo, e teve um sucesso estrondoso, porém mal estruturado. Não, o Secos & Molhados não inspirou a banda de rock Kiss e Ney Matogrosso desistiu do grupo quando soube que ele não tinha direitos iguais ao de seu criador.

Já famoso, Ney Matogrosso saiu em carreira solo e assistiu de perto às mortes de vários amigos e amores vitimados pela Aids. Dirigiu a banda RPM e uma de suas grandes paixões, Cazuza (prepare-se para a história real do namoro e da separação). Isso tudo, sempre, usando diversos tipos de drogas e experimentando todo tipo de sexo, com homens e mulheres. Relacionamento aberto foi seu lema. Paixão, foram poucas, mas com Marco de Maria ele até se casou. Entregar-se ao amor nunca foi uma opção para Ney, que talvez tenha organicamente escolhido esse caminho por carregar dentro de si um trauma de infância. 

Melhor não falar mais do que isso, para não dar spoiler, mas definitivamente, ler Ney Matogrosso – A biografia significa lidar com a vida de um ser humano tão criativo e talentoso quanto pragmático. Lançado pela Companhia das Letras às vésperas do aniversário de 80 anos do cantor – celebrado em 1º de agosto –, o livro é resultado de uma pesquisa de mais de cinco anos do jornalista Julio Maria e traz a história desse artista que tem uma trajetória única na música brasileira, mas que enfrentou percalços e obstáculos para, simplesmente, poder existir. 

“Quando terminei a biografia da Elis Regina, fiquei pensando em quem seria um biografado vivo que entendesse o biógrafo, e eu entendi que o Ney estava preparado para ser biografado. Era alguém que ia lidar com a própria história de forma impetuosa, se necessário. Falaria sobre si mesmo, suas vitórias e erros, além de certezas que talvez não fossem tão certezas assim”, declarou o autor na live de lançamento do livro, conduzida por mim no canal da Livraria da Travessa no YouTube. 

O resultado deste mergulho mostra o trabalho do biógrafo como um profissional preocupado com a manutenção da memória da música brasileira, mas também para apresentar a quem só conhece apenas a imagem bem-sucedida de Ney Matogrosso, o caminho árduo, muitas vezes amargo que esse grande artista trilhou. “A quantidade de vezes que chamaram ele de ‘viado’ impactou muito o Ney na leitura do livro”, revelou Julio Maria durante o papo.

Constam no livro trechos que podem impactar qualquer leitor mais sensível: “Não quero filho viado”, disse o pai de Ney, tentando afastá-lo de sua orientação sexual; “Você já fez saliência com meninos?”, perguntou o padre, ajudando o menino a compreender o que sentia; “Chacrinha pedia aos militares que cuidassem de Ney com a devida intolerância dos tempos”, escreve Julio Maria, que não poupa quem não poupou seu biografado, ao mesmo tempo em que não deixar de contar histórias que Ney não lembrava ou não queria que fossem expostas. 

“O livro traz versões que não são do Ney, coisas que ele acreditou a vida inteira, como essa de que o Kiss se baseou no Secos & Molhados. Para escrever esse livro, eu comuniquei que o faria, não pedi autorização. Ele viu que não podia proibir. Foi minha forma de dizer: ‘Ney, não é um livro para você. É um livro sobre você’.”, contou o autor, que depois de tudo, deu o conteúdo para Ney revisar, e não censurar, o que ele já sabia que não aconteceria, afinal, essa atitude não combinaria com seu biografado.  

No livro, Julio Maria narra cenas emocionantes, como o dia em que o pai de Cazuza, na plateia, agradeceu a Ney pela luz que ele jogou no filho, que cantava doente no palco. O autor não deixa de revelar que o todo poderoso da indústria fonográfica João Araújo era um homem que volta e meia ameaçava internar a esposa, Lucinha Araújo, e o fez quando ela foi contá-lo de sua desconfiança sobre a relação do filho, Cazuza, com aquele novo amigo – isso bem antes da descoberta do HIV. Julio não deixa de eternizar o episódio em que Ney disse que é um ser humano, causando certa polêmica na comunidade LGBTQIA+: o autor lembra que esse “Homem com H” – que colocou seu corpo, sua voz, seus figurinos e repertórios à disposição em constante resistência – recusa-se a se tornar ícone porque “sua existência ereta aos oitenta anos, sem ceder em nenhuma de suas convicções, já era sua principal revolução”.

“Ser o que você é, ter liberdade para isso se tornou, antes de qualquer militância, a grande mensagem do Ney Matogrosso. Ele sabe da importância e legitimidade dessa requisição da sociedade, mas ele fala que ser reduzido a isso era tudo o que os militares dos anos 70 queriam: colocar um rótulo. Por isso aquela frase: ‘Gay, não. Sou um ser humano’. Ele defende ser um ser humano com liberdade de expressão”, explica Julio Maria. 

Autor também de “Nada será como antes”, biografia de Elis Regina que venceu, em 2015, o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), Julio Maria visitou as cidades onde Ney morou, buscou documentos que Ney nem imaginava existir – como o que atestou que ele foi preso durante sua passagem pela Aeronáutica – e entrevistou mais de 200 pessoas, entre elas os familiares do cantor (inclusive a mãe, Dona Beíta, ainda viva). O papel do biógrafo é encontrar o fio – conduzido por alguns parâmetros – para contar a história.  Nesse livro, o fio condutor foi o lema – aqui um pouco alterado – sexo, drogas, música e morte. O livro tem 512 páginas, pouco mais de 450 de uma história que precisa ser conhecida e reconhecida.

Chris Fuscaldo


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