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Nem luxo, nem lixo: O ponto de encontro de MC Tha e Alice Caymmi na Fundição Progresso

Por Tito Guedes

quinta, 12 de março de 2020

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Alice Caymmi, descendente da dinastia musical que começou com o avô Dorival, costuma dizer em entrevistas que apesar de ter sido criada nos moldes da “alta cultura”, faz questão de descer desse lugar privilegiado para beber na fonte da cultura pop e das expressões mais populares da música “de consumo”. 

Thais da Silva, a MC Tha, surgiu nos bailes funks da periferia de São Paulo e está em pleno processo de se consolidar como uma das mais expressivas cantoras pop brasileiras da atualidade, com um som que dialoga tanto com o funk quanto com a MPB. Como ela própria afirma na letra da música “Avisa lá”, ela saiu do “lixo” para beijar o “luxo”. 

A fronteira entre esses dois polos aparentemente antagônicos é justamente o elo entre essas artistas brasileiras. E o ponto de encontro de ambas foi a Fundição Progresso no dia 06 de março, quando realizaram dois shows distintos e completos na mesma noite. 

Não cantaram juntas, mas as apresentações dialogaram entre si pela apreciação de um pop inteligente e ousado, que ecoa certas diretrizes tropicalistas, de cara evidentes no visual extravagante de Alice Caymmi ou na alusão discreta e bem bolada de MC Tha à icônica pose de Gal Costa no show “Índia”, ao cantar a sua “Clima quente”. 


Os shows aconteceram no Palco São Sebastião, no segundo andar da Fundição. De estrutura indefinida, baixo e sem coxia, o palco aproxima consideravelmente o público do artista, o que possibilitou uma noite de muito calor humano, sem a distinção quase hierárquica que prevalece nos palcos tradicionais.  


A primeira a se apresentar foi MC Tha, que abriu os caminhos e desfilou pelo repertório do seu álbum de estreia, o elogiado “Rito de Passá”. Cercada por fãs que cantaram todas as músicas com empolgação, ela mostrou que além de compositora de talento comprovado neste álbum inteiramente autoral, seus dotes de intérprete não ficam atrás. 

Prova disso foram suas incursões pelo repertório de alguns clássicos da MPB, como “Tigresa”, de Caetano Veloso, “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor (cantada em homenagem a Ogum) e sobretudo “Preciso me encontrar”, samba de Candeia que constituiu um dos melhores números da noite. 

Entre conversas com o público sobre auto-aceitação e emancipação feminina, MC Tha comprovou a consistência de seu repertório, nada óbvio e de múltiplas possibilidades, capaz de fazer o público cantar alto e apaixonado (como em “Oceano”) ou dançar até o chão (como em “Coração vagabundo”). Inclusive, ao final do show, a cantora transformou a Fundição Progresso em um baile funk ao descer para dançar junto aos fãs. 

Por fim, o show terminou em clima afetuoso e catártico, com um abraço coletivo entre a artista e alguns fãs que subiram no palco a convite dela para entoar a derradeira “Comigo ninguém pode”.


Cantora conhecida pela imprevisibilidade e a criação conceitual de novas personagens a cada trabalho, Alice Caymmi se apresentou na sequência de MC Tha dando corpo à sua mais nova criação. Depois de percorrer o Brasil com uma versão densa e pessoal da trágica Electra, Alice renasce agora com o desdobramento pop e solar da mulher furiosa e ensandecida de Sófocles: batizada como Elétrika, é gestada primeiro nos palcos para depois ganhar um álbum de inéditas prometido ainda para o primeiro semestre de 2020. 

Alice já surgiu causando impacto, com um figurino que evoca a estética camp e as fantasias carnavalescas. Com os cabelos curtinhos platinados, ela vestia um salto plataforma, meia calça 7/8 verde e um corpete branco, além de um burlesco adorno de flores na cabeça. 


No repertório, a mesma salada de frutas tropicalista e orgânica que já apresentou acertadamente em álbuns como “Rainha dos Raios”. Alice cantou baladas de Whitney Houston, Mariah Carey e Lady Gaga em ritmo de arrocha, somando a elas o brega funk de Léo Santana, o axé do Olodum, além de alguns dos maiores sucessos de sua carreira, como “A estação”, “Tudo que for leve”, “Meu recado” (apresentada em arranjo dançante), “Louca” e “Eu te avisei”, parceria com Pabllo Vittar presente no álbum “Alice”. Marcou presença também A noite inteira, single recém-lançado com participação do grupo Àttooxxá, que oficializou o início da Era Elétrika

Alice Caymmi estava visivelmente entregue e fez um show intenso do início ao fim. Sempre com um sorriso no rosto, dançou sob os aplausos do público e soltou o vozeirão grave e invariavelmente afinado, comprovando a sentença dada por nomes como DJ Zé Pedro ou Fafá de Belém de que é uma das maiores cantoras de sua geração. Elétrika definitivamente mostrou ao que veio e deixou gostinho de “quero mais”. 


Do lixo ao luxo, do luxo ao lixo, turvando noções já envelhecidas do que é “bom” ou “ruim” em termos musicais, Alice Caymmi e MC Tha mostraram que quanto mais diversidade e irreverência, melhor. 

Distantes entre si em suas origens, mas aproximadas pela performance libertária e a inspiração tropicalista (consciente ou não), essas duas cantoras - e mulheres - poderosas transformaram o palco da Fundição em verdadeiro caldeirão, no qual houve espaço para tudo, menos para a caretice (política ou musical). Que bom! E que se abram todos os caminhos para MC Tha e Alice Caymmi, porque elas fizeram valer a noite inteira. 

Texto por: Tito Guedes
Fotos: Luiz Franco

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