Resenha de Samba

Na Pancada do Ganzá: Mário de Andrade e a Ancestralidade Musical do Nordeste

terça, 27 de fevereiro de 2024

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Enciclopédia que não chegou a ser escrita foi um dos maiores projetos do musicólogo paulista

Mário de Andrade (1893-1945) sonhou escrever sozinho uma enciclopédia sobre a música popular ancestral do Nordeste. Para isso, realizou uma viagem etnográfica a região de pouco mais de 2 meses, lá desembarcando dia 10 de dezembro de 1928 e regressando em alto-mar, a 20 de fevereiro de 1929. O viajante sonhador primeiro foi ao Rio Grande do Norte, depois passou pela Paraíba e encerrou sua expedição em Pernambuco, lugares onde escreveu mais de 700 partituras com as melodias e letras aprendidas com cantadores da região. Tudo feito com recursos próprios. Após a viagem, estudou profundamente o tema reunindo bibliografia com mais de 800 títulos a respeito. Porém, com os desencontros da vida, não chegou a escrever os volumes da obra que tanto almejou, cujo título seria “Na Pancada do Ganzá” e abordaria expressões culturais ainda hoje pouco projetadas como Lundus, Chulas, Cocos, Desafios, Romances, Benditos, Bumba-Meu-Boi, Catimbó, Cabocolinhos, Cheganças, Congos, Pastoris e muitas outras.

Cabocolinhos de Itabaiana (PB), 1938 | Foto: Luis Saia

Os Cocos (1928)

O primeiro anúncio no qual Mário revela a intenção de publicar uma obra retratando uma dessas manifestações culturais do Nordeste foi feito pouco antes de sua viagem, ainda em 1928, quando contava com 35 anos. No “Ensaio sobre Música Brasileira”, livro musicológico de conteúdo técnico lançado em 1928, Mário noticiava: “É verdade que na segunda parte deste livro dou apenas uma amostra do que são os cocos. É que reservei a maioria dos documentos colecionados pra um livro que sairá o ano que vem”.

Ao tomar conhecimento do Coco por meio de correspondentes nordestinos e por uma aluna também nordestina, Mário se encantou com este tipo de Samba que é uma das mais fortes raízes da música nordestina. A tal ponto que, mesmo sem nunca ter presenciado uma roda de Coco e sem nunca ter ido ao Nordeste, decidiu escrever um estudo a respeito. Nascia o ensaio “A literatura dos Cocos”, que abordava a poética desse gênero e foi escrito em julho de 1928, ou seja, por volta de 5 meses antes de sua viagem ao Nordeste. Mário ainda não havia ido a campo, talvez por isso tenha escolhido não publicar esse texto em vida. 

Roda de Coco, um dos tipos de Samba mais populares do Nordeste | Foto: Luis Saia, 1938, Itabaiana (PB)

Viagem Etnográfica ao Nordeste (1928-1929)

Em novembro de 1928, Mário de Andrade parte para a sua viagem etnográfica com primeira parada no Rio Grande do Norte. Logo após desembarcar no Nordeste, já na cidade de Natal, em 15 de dezembro, transborda de euforia e musicalidade: “Estou que nem posso dormir de felicidade. Me estiro na cama e o vento vem, bate em mim cantando feito coqueiro. Por aqui chamam de “coqueiro” o cantador de “cocos”. “O vento canta, os passarinhos, a gente do povo passando. O homem que leva e traz as vacas daqui perto, não trabalha sem aboiar... Aqui em casa também. Todos cantamos, cocos, embolados, sambas, dobrados, modinhas”.

Mário sente a força de estar perto dos cantadores de expressões culturais que estuda: “No meu Ensaio sobre música brasileira botei “A palmilhar longas estradas”... Porém O trovador potiguar, cuja existência só descubro agora, me corrige pra mais brasileiro a colocação do qualificativo. É: “estradas longas”. Aliás já reparei que o meu livro [Ensaio Sobre Música Brasileira], na parte segunda, está com um bom número de informações inexatas”. Ao presenciar uma Chegança em Natal, o poeta se deleita: “Meu prazer está compacto como o vento... Os paulistas não conhecem nada disso…”

Chegança em Torrelândia, João Pessoa (PB), 1938 | Foto: Luis Saia

No Nordeste, os dias de Mário são cheios, o musicólogo não para: “Estes meus dias estão vendo pouca novidade e tenho trabucado bastante, colhendo melodias, versos e outras manifestações de arte popular, assim eles passam. Vim pro Nordeste não foi só passear não. Vivo numa sala com meus homens”.

O ano de 1929 se inicia e Mário de Andrade mantém a intensidade de suas pesquisas: “já estou popular aqui. Vivo dum lado pra outro em busca de quanta festa, quanta Chegança, quanto Boi se ensaia, quanto coco se dança, levando pra casa quanto cantador encontro... Outro dia eu passava, um homem do povo cutucou o parceiro, me mostrando: – Esse é o dotô de São Paulo que veio studá Boi...Se riram”.

Bumba-Meu Boi, Patos (PB), 1938 | Foto: Luis Saia

Na companhia de Câmara Cascudo (1898-1986), Mário chega a utilizar de seu prestígio junto às autoridades públicas locais para isentar os ranchos de Reis de pagar uma taxa para festejarem em 6 de janeiro o Dia de Reis: “Que a Polícia obrigue os blocos a tirarem licença muito que bem, pra controlar as bagunças e os chinfrins, mas que faça essa gente pobríssima, além dos sacrifícios que já faz pra encenar a dança, pagar licença, não entendo. Seria justo mas é que protegessem os blocos, Prefeitura, Estado: construíssem palanques especiais nas praças públicas centrais, instituíssem prêmios em dinheiro dados em concurso”.

Mário fica em Natal até 6 de janeiro, quando ruma para o Engenho Bom Jardim no interior do estado, nas cercanias do município de Goianinha, cerca de 60 km da capital. Lá, conhece o cantador de Coco Chico Antônio e sua vida muda: “Estou divinizado por uma das comoções mais formidáveis da minha vida. Não sabe que vale uma dúzia de Carusos. Vem da terra, canta por cantar, por uma cachaça, por coisa nenhuma e passa uma noite cantando sem parada. Já são 23 horas e desde as 19 que canta. Os cocos se sucedem tirados pela voz firme dele”.

O Cantador de Coco potiguar Chico Antônio encantou Mário | Foto: Mário de Andrade, 1929

“Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente no compasso unário, na “pancada do ganzá”, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas certas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. E quando tomado pela exaltação musical, o que canta em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo”.

Vivendo sob o encantamento da música ancestral do Nordeste, Mário então lamenta que um dia terá que regressar a sua terra natal: “E terei de ir para São Paulo... E terei de escutar as temporadas líricas e as chiques dissonâncias dos modernos…”.

O fascínio que Chico Antônio exerce em Mário é tamanho que, ao se despedir do coqueiro, o poeta assume mais um compromisso literário futuro: “O coqueiro Chico Antônio, que hei-de celebrar melhor em livro”

Mário no Engenho Bom Jardim (RN), lugar que inspirou sua alma de poeta (1929)

No Engenho, deslumbrado com Chico Antônio, Mário permanece até o dia 16 de janeiro, quando regressa a Natal, de onde parte de carro no dia 26 para João Pessoa (PB). Na Paraíba, a intensidade de seu trabalho não diminui. O jornalista paraibano Adhemar Vidal, que hospedou Mário em sua casa na capital do estado narra como era a sua rotina:

“Entregava-se ao piano muito cedo, quase de madrugada, já encontrando à sua espera dois ou três matutos vindos do interior - e que iam sendo aproveitados em série, isto é: dois ou três por dia”. “Nesse trabalho infernal (enquanto ouvia, tocava piano com a mão esquerda, deixando a direita entregue às anotações a bico de pena), necessário de contar com uma pachorra educada, Mário de Andrade pôs toda a sua alma e todo o seu alegre coração”. “Cerca de quatrocentos temas foram musicados em nossa casa no decurso apenas de breves dias. A luta despendida pelo folclorista não experimentou desfalecimentos, foi diuturna, infatigável e continuada a sua energia de mestre de insaciável apetite.” 

No dia 8 de fevereiro, sexta-feira de Carnaval, Mário parte rumo a Recife (PE), para experimentar a festa na capital pernambucana, o que acontece naquela mesma noite: “caímos todos no frevo do Vassouras. Loucura e formidável porre de éter [eufemismo para álcool]”. 

O Frevo de Pernambuco arrebatou Mário de Andrade no Carnaval de 1929

Em 20 de fevereiro, Mário inicia o seu regresso de navio a São Paulo, com a cabeça repleta de ideias e alma transbordando de notas musicais que nunca havia sonhado escutar. Segundo consta, Mário teria escrito com suas próprias mãos em torno de 700 partituras de cantos populares ancestrais nesta viagem etnográfica.

“Na Pancada do Ganzá” (1929-1935)

Após a expedição ao Nordeste, Mário planeja a publicação de um livro definitivo sobre a música ancestral nordestina, “Na Pancada do Ganzá”, que seria publicado em vários volumes e, além de contar com as melodias e letras colhidas em campo, viria acompanhado de um amplo estudo sobre o assunto. De acordo com Flávia Toni, a maior estudiosa da obra musical de Mário de Andrade na atualidade, o poeta deu início aos trabalhos de “Na Pancada do Ganzá” em agosto de 1929. 

O Ganzá é instrumento central no Coco | Ilustração de Luis Saia, 1938

O ano de 1929 se finda e Mário não realiza a publicação do livro com as partituras de sua coleção sobre os Cocos que havia prometido em 1928 no “Ensaio Sobre Música Brasileira”. Mas suas ideias já eram outras e seus planos também, afinal, na viagem ao Nordeste Mário passou pela maior experiência musical da sua vida, o que levaria um bom tempo para ser traduzido em livro.

Passada a euforia onírica da expedição, Mário vai deixando pistas sobre o andamento da feitura da sua nova obra. Um ano após a viagem etnográfica, em correspondência com Câmara Cascudo de abril de 1930, Mário é sincero: “Meu livro sobre aí [Nordeste] avança lerdo, é uma desgraça”.

Mário chega a planejar nova viagem ao Nordeste, projetada para fins de 1932 a fim de tirar dúvidas essenciais de “Na Pancada do Ganzá”, conforme escreveu para Cascudo em novembro de 1931: “Como espero dedicar mais todo o ano que vem pro que já tenho, no fim do ano só levarei pra aí coisas que careça esclarecer milhor, perguntas e documentos si carecer”. Essa viagem, contudo, nunca saiu do papel.

Em fevereiro de 1933, novamente em correspondência com Cascudo, Mário dá notícias a respeito do livro sobre a ancestralidade musical nordestina: “Pretendo este ano terminar os estudos sobre o livro do Nordeste, e escrevê-lo ano que vem”.

Alguns anos já haviam se passado da viagem etnográfica de Mário sem que ele tivesse escrito o “Na Pancada do Ganzá”, o que era natural, devido a enorme quantidade de material que havia coletado no Nordeste. Mas o poeta dava indícios de que prosseguia amadurecendo o projeto. Como se vê na introdução do livro póstumo de Luciano Gallet (1893-1931), “Estudos sobre o Folclore”, assinada por Mário em julho de 1933: “Por gentileza de dona Luiza Gallet, estão excluídas desta coletânea várias melodias populares do Nordeste”. “Essas melodias fazem parte de trabalho mais completo que tenho em elaboração”.

Em 1934, escreve parte do prefácio de “Na pancada do Ganzá”, advertindo: “Esse não é um livro de ciência, é um livro de amor. Estarão muito enganados os que vierem buscar nele a sistemática dos fatos musicais do Nordeste”

O Coqueiro João Fulô sustenta seu canto na pancada do ganzá - Praia de Tambaú, João Pessoa (PB), 1938 | Foto: Luis Saia

No mês de março de 1935, Mário dá ótimas notícias sobre o andamento de seu livro, mais uma vez em carta a Câmara Cascudo: “Tenho escrito muito do meu livro, pelo menos dum dos volumes, o que trata das danças-dramáticas”. Porém, pouco depois, em junho de 1935, Mário de Andrade assume o recém-criado Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo e, compromissado com iniciativas de grande vulto em prol da democratização da cultura, seus projetos literários vão ficando para trás. 

Anteprojeto do Iphan (1936)

No mês de março de 1936, entretanto, Mário oferece grande contribuição aos cantos ancestrais brasileiros ao redigir o anteprojeto do ainda Serviço do Patrimônio Artístico Nacional (posteriormente Sphan e atual Iphan), órgão fundado em janeiro de 1937. No texto, Mário inclui no plano de conservação, defesa e propagação do patrimônio artístico nacional a “Arte Popular”, que englobaria “Folclore - Música popular” e “danças dramáticas”. Na época, este anteprojeto não foi colocado em prática, porém, o que Mário sugeriu no ano de 1936, ao longo das décadas se tornou lei e hoje expressões culturais populares têm a sua prática assegurada por meio de planos de salvaguarda elaborados pelo Iphan Junto aos detentores.

Primeira lauda do Anteprojeto do atual Iphan redigido por Mário de Andrade em 1936

Missão de Pesquisas Folclóricas (1938)

Mesmo sem dar continuidade ao “Na Pancada do Ganzá”, Mário parte para um tipo de documentação musical muito mais fiel e revolucionário para aquela época. Em 1938, com recursos da Prefeitura de São Paulo, realiza a Missão de Pesquisas Folclóricas, direcionando ao Nordeste e ao Norte do Brasil uma equipe para efetuar de forma pioneira gravações fonográficas em série da música ancestral brasileira, além de outros registros como filmagens, fotografias, entrevistas, partituras e gravuras. O chefe da expedição era Luis Saia, que estava acompanhado do maestro Martin Braunwieser, do técnico de som Benedito Pacheco e do assistente técnico de gravação Antônio Ladeira. Assim, entre fevereiro e julho de 1938, a equipe enviada por Mário gravou pouco mais de 1.000 fonogramas (34 horas de gravação) e 19 filmes, tirou cerca de 1.000 fotografias entre diversos outros documentos. Foram registrados mais de 70 grupos ou cantadores individuais de 28 cidades em Pernambuco, Paraíba, Maranhão, Ceará, Piauí e Pará. Entre as manifestações gravadas estão as ainda hoje pouco conhecidas Toré, Praiá, Toada, Canto de Pedinte, Cabaçal, Cantoria de Viola, Xangô, Carregadores de Piano e inúmeras outras.

Gravação feita ao ar livre durante a Missão de Pesquisas Folclóricas idealizada por Mário | Acervo Centro Cultural São Paulo (Torrelândia, João Pessoa - PB)

“Exílio” no Rio (1938-1941)

Mário ocupa a função de Diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo até maio de 1938, quando por discordâncias políticas é demitido e vai morar no Rio de Janeiro. Em 1938, por correspondência, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) brinca com Mário: “você precisa de umas três vidas pelo menos: uma para consagrar exclusivamente a esses estudos musicais brasileiros: é um mundo!”. 

Em 1939, Mário passa a trabalhar no SPHAN, hoje IPHAN, onde permanece até 1941. Assim, de 1935 a 1941, boa parte de seus projetos literários ficam em segundo plano devido a intensa vida profissional que passa a exercer. 

São Paulo - últimos anos (1941-1945)

No início de 1941, Mário regressa a São Paulo e volta a escrever sobre música popular nordestina com certa regularidade, mas para a imprensa. Nesse cenário, entre agosto de 1943 e abril de 1944, surge um sopro de vida: a série de 6 textos ficcionais intitulados “Vida do Cantador” seguidos de 7 artigos sobre cantadores nordestinos publicada no jornal Folha da Manhã. Nesta série, um ano antes de falecer, Mário reafirmou compromisso de lançar obra sobre o Nordeste musical: “darei um exemplo de Chico Antônio em livro técnico futuro”

Esse futuro, infelizmente, não chegou. Mário de Andrade faleceu a 25 de fevereiro de 1945, com apenas 51 anos, vítima de um enfarto. Os estudos sobre a música ancestral nordestina que tanto sonhou não chegaram a ser escritos, mas povoaram incessantemente os seus pensamentos e o tempo de seu cotidiano. Basta mencionar que para a elaboração de “Na Pancada do Ganzá”, entre 1929 e 1944, além das presumíveis 700 partituras colhidas no Nordeste de próprio punho, Mário havia selecionado uma bibliografia com 837 títulos, entre livros, revistas e jornais, a maior parte deles sobre folclore e cultura popular.

Oneyda Alvarenga organiza fragmentos de “Na Pancada do Ganzá” (1945-1965)

Sem os textos que não foram escritos, as partituras grafadas em campo por Mário foram todas publicadas em obras póstumas fielmente organizadas pela leal discípula e talentosa musicóloga Oneyda Alvarenga (1911-1984), que entre 1945 e 1965 se dedicou a essa árdua missão. 

Muito do que se conhece hoje da obra etnomusicológica de Mário se deve ao cuidado de Oneyda Alvarenga 

De acordo com os documentos que a família de Mário entregou em mãos para Oneyda, a enciclopédia “Na Pancada do Ganzá” teria alguns volumes, com a seguinte estrutura: 

(Introdução) 1 - A Poesia Cantada no Nordeste | 2 - Danças Dramáticas | 3 - Melodias do Boi | 4 - Os Cocos | 5 - Outras Peças

Além disso, no plano inicial da obra, Mário previa estudos e partituras contemplando um 6º volume, dedicado à musicalidade religiosa afro-indígena do Catimbó. Desses volumes, apenas “A Poesia Cantada no Nordeste” não ganhou livro póstumo, embora Oneyda reconhecesse que os artigos sobre os cantadores escritos em 1944 pudessem muito bem ser aproveitados nesse sentido.

Ao que parece, o único tema que Mário conseguiu consolidar um texto finalizado (de modo não definitivo) foi o das Danças Dramáticas. Assim, Mário chegou a escrever um estudo geral sobre as Danças Dramáticas do Brasil, além de textos individuais retratando algumas delas: Cheganças; o Pastoril; Congos; o Maracatu; os Cabocolinhos e o Bumba-Meu-Boi.

Dos outros temas anunciados na estrutura de “Na Pancada do Ganzá”, Mário deixou mais 2 estudos: o texto marginal “A Literatura dos Cocos”, escrito antes de sua épica viagem ao Nordeste e “Música de Feitiçaria no Brasil”, conferência que realizou em 1933 abordando aspectos musicais do Catimbó. Apesar de ser uma obsessão de sua vida, Mário nunca conseguiu publicar o tão sonhado estudo sobre a musicalidade ancestral do Nordeste, pois ele não foi escrito. Mário morreu antes de concluir a promessa feita em 1928 e reafirmada durante sucessivos anos de sua vida.

Sessão de Catimbó, João Pessoa (PB), 1938 | Foto: Luis Saia

Chico Antônio - O maior Cantador do século 20

Com a projeção que os textos de Mário de Andrade conferiram a Chico Antônio, o cantador de Coco chegou gravar um LP em sua velhice, “No Balanço do Ganzá”, lançado em 1982, bem como foi tema do documentário “Chico Antônio - O Herói com Caráter”, de Eduardo Escorel, de 1983. Além disso, na cidade de Toulouse, na França, há uma estátua de Chico Antônio com uma placa que informa: “Chico Antônio - O maior Cantador do século 20”. Segundo Oneyda, a inspiração para o título da enciclopédia de Mário vem de um verso entoado por Chico Antônio em alguns cocos:

“Passe pra aqui, / Passe pra ali, passe p’o canto, / Qu’eu daqui num me levanto, / Quantas tapa qué levá? / Aplante a planta, Agôie a planta, mude a planta, / Meu mano, vigie a planta, / Mode a planta num murchá! / Eu sô marujo, / Eu também sô canuêro, / Eu sô mestre barcacêro, / Da ribêra do Pilá; / Ande ligêro, / Arrepare, cavalêro / Eu sô um bicho ligêro / Na pancada do ganzá!”

Textos de Mário geraram reconhecimento a Chico Antônio, que teve LP lançado pela Funarte em 82

Os ecos da pancada

A viagem de Mário de Andrade que desencadeou no projeto não concluído de “Na Pancada do Ganzá” deixou marcas profundas no modo de pensar e agir na figura do pesquisador de campo da música popular brasileira. Para Flávia Toni, a partir de sua viagem ao Nordeste, “Mário de Andrade se consolida como fundador da nossa etnomusicologia”. Quanto a “Pancada no Ganzá”, Toni vai além, dimensionando a obra como o “projeto de uma enciclopédia sobre o cantar e fazer versos do homem do Nordeste, bem como sobre as danças dramáticas”. Já a discípula de Mário, Oneyda Alvarenga, admirada, concluiu: “Realmente, o fruto das pesquisas de Mário de Andrade constitui até hoje o maior e melhor acervo de música folclórica brasileira registrado por um pesquisador sozinho e por grafia musical direta”.

Mesmo sem os textos que Mário almejava, o projeto “Na Pancada do Ganzá” resultou na publicação póstuma de 4 livros independentes, pacientemente editados pela insuperável Oneyda Alvarenga, que se debruçou sobre os seus fragmentos durante 20 anos de sua vida, entre 1945 e 1965:


1) 1959 - Danças Dramáticas do Brasil, em 3 tomos | 2) 1963 - Música de Feitiçaria no Brasil | 3) 1984 - Os Cocos | 4) 1987 - Melodias do boi e outras peças 


A força do estudo e da paixão de Mário de Andrade pelo cancioneiro nordestino era tão grande que mesmo os textos que escreveu de modo não definitivo espalhados em livros, diários, jornais, revistas e pedaços de papel diversos prosseguem sendo utilizados como fontes fidedignas de quem viveu nossa música com ardência e fervor. Mário dignificou a música ancestral do Nordeste com tamanha intensidade que ainda hoje é possível ouvir os ecos da pancada do ganzá das centenas de melodias transcritas pelas suas próprias mãos após escutar inebriado o canto sem igual dos cantadores nordestinos. 

Os estudos musicais de Mário de Andrade revelam um Brasil ainda hoje desconhecido da maioria dos brasileiros. Um Brasil humano, poético, nordestino e interiorano, pelo qual Mário trabalhou incessantemente, movido por uma paixão febril reveladora de toda a sua devoção e respeito pelos cantadores e cantadeiras que preservam a beleza de nossos cantos populares ancestrais rincões afora “por uma cachaça, por coisa nenhuma”.

Mário de Andrade em 1941: sonhos que não couberam numa enciclopédia | Acervo Oneyda Alvarenga

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