Colunista Convidado

Johnny Alf em gravações inéditas como autor e intérprete

sexta, 03 de maio de 2019

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Rotulada pelos preconceituosos como música da elite branca da zona sul carioca, a bossa nova tem, na verdade, um pai negro, nascido na suburbana Vila Isabel, de Noel Rosa, filho de uma empregada doméstica e um cabo do exército. Alfredo José da Silva, o Johnny Alf (1929-2010), pianista, compositor e cantor, foi o primeiro a perpetrar com êxito a fusão samba-jazz, essencial ao movimento. Ele disseminava seus experimentos no célebre bar do Hotel Plaza, no Leme, onde tinha na seleta platéia, de Tom Jobim, Roberto Menescal, João Donato e Carlos Lyra a João Gilberto e até Roberto Carlos. Também se apresentava em boates como a Cantina do Cesar (de Alencar, o animador da rádio Nacional), na rua Duvivier, em Copacabana, ainda iniciante, em 1952, onde recebia canjas das também debutantes cantoras e compositoras, Dolores Duran e Dora Lopes. É o que ele documenta em dois preciosos registros recém editados pelo selo Kuarup. Lançados nas plataformas digitais, os dois álbuns, encimados pelo nome do artista - “O autor” e “O intérprete” - foram compilados e produzidos pelo experiente Thiago Marques Luiz, a partir do acervo do produtor e empresário de Alf, Nelson Valência. 

São inéditas gravações ao vivo de alta potência estética, realizadas no começo dos anos 2000. Há curtas falas do tímido Alf – a quem Tom Jobim reverenciava com o trocadilho “Genialf- como a dos encontros com as cantoras Dolores e Dora, que prefacia sua apresentação de “Céu de estrelas”, faixa do álbum “O autor”.

“Dolores se apaixonou por essa música e a cantava sempre, ela estava inédita desde 1952”, diz ele do sombrio romantismo que ronda a letra, entre a balada e o samba canção.

Já o ensaboado samba “Pisou na bola” (Caymmi disse/ quem não gosta de sambão/ é pinel/ ou tem minhoca no dedão”), “foi gravado por Isaurinha Garcia em seu último disco”, comenta. Também obscuras são “Quem sou eu” (“a flor traz beleza/ o sol traz o dia/ e a noite, o amor/ mas você traz o enigma/ contido numa simples interrogação”) e “Mais um som”, esta apenas instrumental, com eventuais intervenções em scat singing do compositor. O repertório também singra alguns dos principais clássicos do compositor. Dos sincopados e suingantes “Rapaz de bem” (com uma introdução instrumental de mais de um minuto), “Fim de semana em Eldorado”, a um ralentado “Céu e mar” (originalmente composto no formato de baião). E ainda as devastadoras “Eu e a brisa” (desclassificada no célebre Festival da TV Record, de 1967, mas seu maior sucesso), “Ilusão à toa” (considerado o primeiro hino gay da MPB) e “O que é amar”, lançada pioneiramente pela então rainha do rádio Mary Gonçalves, em 1953 – cinco anos antes da eclosão da bossa nova. 

Na introdução do álbum “O intérprete”, Alf anuncia: “vou agora fazer um trabalho sobre outros compositores”. E enfileira quatro petardos de Tom Jobim, em recriações de liberdade harmônica, fraseado e timbre desafiadores. São elas, “Corcovado”, numa clave ainda mais lírica; a notória “Chega de saudade”, parceria com Vinicius de Moraes, ressignificada, e duas com Newton Mendonça (“Foi a noite” e “Desafinado”, ainda mais sincopada). Alf introduz: “Já que falamos de Tom, vamos falar de Vinicius, que, às vezes, dispensava os parceiros e sozinho fazia letras e músicas”. E canta duas criações solitárias do poeta, a “Valsa de Eurídice”, desidratada de seu compasso original para descaídas jazzísticas, e “Medo de amar” (“Vire essa folha do livro e se esqueça de mim”), sambossa lenta escudada no dilaceramento amoroso. Alf celebra mais uma vez a ex-colega Dolores Duran num de seus sambas canções doloridos (“Fim de caso”, 1959), o também pioneiro Dick Farney, de vocal confidente, criador do sucesso “Alguém como tu” (José Maria de Abreu/ Jair Amorim), de 1952, e revisita o passado do grandiloqüente Francisco Alves, na empolgada “Despedida de Mangueira” (Benedito Lacerda/ Aldo Cabral), de 1940. Há espaço ainda para uma regravação em inglês da balada cálida “The shadow of your smile” (Johnny Mandel/ Paul Francis Webster), tema do filme “Adeus às ilusões (The sandpiper)”, de 1965.


Texto de Tárik de Souza

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