Resenha de Samba

Compositor Mamão completa 85 mantendo a tradição

quinta, 04 de janeiro de 2024

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Sambista de Juiz de Fora viveu de perto efervescência musical dos anos 1970

Nascido Armando Fernandes de Aguiar em 24/8/1938, o popular Mamão é daqueles raros compositores clássicos do Samba. Em fins de 1940, formou-se na Escola de Samba Feliz Lembrança, de Juiz de Fora (MG), mas também cresceu ouvindo os grandes sambas das décadas de 40, 50 e 60 na Rádio Nacional e outras emissoras. Alcançou sucesso estrondoso com Tristeza Pé no Chão na voz de Clara Nunes, em 1973. Quis o destino que em vez de apenas mais um Armando no Rio de Janeiro, Mamão fosse Rei em Juiz de Fora. Hoje, qualquer samba de JF em que Mamão comparece, um tapete vermelho é estendido ao velho sambista, por toda honra e glória que conquistou para o samba juiz-forano. Nessas ocasiões, após algumas talagadas num chá de macaco, Mamão solta sua voz malandreada, sincopada e repleta de malícia do samba de outrora, desfilando repertório autoral merecidamente idolatrado por seus conterrâneos. 

Na resenha de samba a seguir, conheçam um pouco mais do grande Mamão e suas histórias com nomes inconfundíveis da música popular brasileira, como Clara Nunes, Ismael Silva, João Nogueira, Tia Vicentina, Natal da Portela e muitos outros. Com Mamão, o Samba segue mantendo a tradição.

Esta entrevista foi realizada por mim e pelo músico e pesquisador Márcio Gomes, produtor de Mamão com Açúcar (1996) e Pedacinhos de Mamão (2003), os 2 discos solos do compositor. Márcio é também um dos autores do livro “O Samba de Juiz de Fora - Vinte Biografias”, de 2015.

Mamão radiante no Festival de Música Popular de Juiz de Fora de 1973 | Acervo Márcio Gomes 

Mamão, qual seu nome completo e como você começou no Samba, sua família era ligada ao Samba?
Armando Fernandes de Aguiar, nascido em 24 do 8 de 38, em Juiz de Fora. Meu pai, Nelinho (Manoel Fernandes de Aguiar), foi vice-presidente da Escola de Samba Feliz Lembrança, além de Porta-Estandarte e me levou pra Escola de Samba. Eu com 12 anos saía de Benfica [bairro de JF], vinha aqui nas batalhas de confete e comecei a minha história no samba ali. Eu saí em 1949 cantando Se eu Fosse Feliz [de Djalma de Carvalho, Juquita e B. O.]. E outro detalhe importante: quando eu trabalhava como alfaiate numa oficina em que trabalhava o Antônio Camargo, o Chico Tavares, a gente ouvia rádio o dia inteiro, B3, Rádio Nacional, Tamoio, Tupi. Então eu acho que é mais ou menos por aí, porque pra fazer samba você tem que ouvir muita coisa. Ataulfo Alves, Ciro Monteiro, Nelson Gonçalves e depois logo apareceu Lúcio Alves. Na Feliz Lembrança eu saía no coro.

Nancy de Carvalho e Nelson Silva desfilando pela Escola de Samba Feliz Lembrança de JF | Acervo Márcio Gomes

Quem eram os maiores compositores das Escola de Samba de Juiz de Fora? Quais mulheres se destacavam?
Da Feliz Lembrança era Djalma de Carvalho e Nelson Silva na Turunas do Riachuelo tinha Oceano Soares, Ministrinho, Alfredo Toschi. Mulher predominantemente era no coro, a própria Nancy, que saía com Nelson Silva sambando, de Porta-Bandeira, a Judith comandava a Ala de Baiana. 

Você começou nos Festivais de Música Popular de Juiz de Fora, entre os anos de 1969 e 1973. Como foi seu desempenho nesses festivais?
Com “Adeus Diferente” fiquei em 5º lugar em 1969; “Boneca Joana” de 1970 fiquei em 4º; “Cadê Catarina” de 1971, 3º lugar; em 72 saí com “Tristeza Pé no Chão” mas acabou não havendo disputa. No ano seguinte, 73, ganhei com “Baianeiro”, que ninguém levava fé, só eu.

Mamão foi o vencedor aclamado do Festival de Música Popular Brasileira de Juiz de Fora de 1973 | O Pasquim

Os festivais de música popular não prestigiavam muito o samba. Como foi poder representar o Samba e obter boas colocações no movimento dos festivais em JF?
É, exatamente, naquela época tinha aquele negócio de uma música própria pra Festival. Era uma música que acabava não dizendo nada com nada, entendeu? E ficava aquele marasmo todo, melodia complicadíssima e as letras não diziam nada, vinha solto.

Você podia contar então como é que começou a composição de “Tristeza Pé no Chão”.
O Alvim frequentava lá o Beco, a gente desce a Rua São João eu, Sarrafo, o Ricardo Leonel, do tamborim, o Marquinho de surdo. Viemos fazer um samba no bar do Alvim. Quando nós chegamos lá no bar do Alvim, que o Ricardo começou a bater aquele tamborim, “BÉH, BÉH, BÉH”, aí eu falei com ele: “ô, bicho, dá um aperto nesse tamborim aí, dá um aperto de saudade”. Pô, eu falei assim e fui lá dentro e anotei, isso aí dá samba, “dá um aperto de saudade no tamborim”. E naquela noite ficou eu, o Ratinho, meu cumpadre, nós tomamos um porre e eu falava com ele assim: “ô Rato, não deixa eu esquecê essa merda, não!”. E ele falava: “não enche o saco, não! se você esquecê, eu lembro, eu lembro!”. Na mesma hora comecei a compor a melodia e quando nós chegamos no dia seguinte, o samba já tava pronto.

E tem aquela história do pé no chão que é do desfile que tava fraco, né?
É… quando o Álvaro Santos morreu, que era o Presidente da Feliz Lembrança e ele que botava dinheiro na Escola. A Escola saiu muito fraquinha… fraquinha, saiu o pessoal descalço lá. Aí eu tava na avenida, eu vinha com a Escola de Samba e o Hegel Pontes tava com a namorada dele aqui em frente ao Brasão e a Escola desfilava de lá pra cá. Aí ele falou assim: “Mamão, comé que tá a Escola de Samba aí?”, falei “olha, tá, tá terrível, tá parecendo um bloco tristeza pé no chão”. Aí ele falou: “Isso aí dá samba”. Depois eu fui fazendo.

E a história da escolha da intérprete também, é legal falar a história da escolha da Clara.
Clara Nunes e Mamão no Festival de Música Popular de Juiz de Fora de 1972 | Acervo Márcio Gomes

É… o Júlio Hungria tinha um gravador grandão, daqueles rolinhos de fita, roda pra cá, roda pra lá. E ele fez uma reunião com a gente no Dreams, na Rio Branco, em cima do Brasão ali pra saber “ô fulano, quem é que vai interpretar sua música?”, porque eles tinham um compromisso em dar um espetáculo. E ele falou assim: “Mamão, quem é que cê qué pra interpretá essa música?”. Aí eu falei assim: “você mostra pra Elizeth Cardoso, pra Elza Soares e pra Clara Nunes. Se nenhuma das 3 quisé, eu não vô subi lá no palco pra cantá, não, deixa rolar, esquece”. Aí isso o Júlio Hungria me contou depois do festival. Ele pegou aquele gravadorzinho dele e foi na Odeon. Quando ele chegou lá, isso ele me contando, ele falou assim “Ô Clara, tem uma música pra você cantá lá em Juiz de Fora”, ela falou “não, Juiz de Fora eu não vô, com esse negócio de Festival eu tô dando uma parada nisso aí, porque quando a gente ganha tá tudo bem, se perde o compositor fica chateado, coisa e tal, eu não vô, não”. Mas aí, o Sidney Miller virou pro Júlio e falou assim: “Ô Júlio, cê tá com a fita aí de Juiz de Fora? Eu ouvi dizê que tem um samba lá bonito, dá pra me mostrá?”. Aí o Júlio rodou a fitinha lá, aí mostrou pra ele o samba. Mas aí a Clara falou assim: “Se fosse pra cantá esse samba eu ia participar do Festival”. Ela achou que o samba era do Sidney Miller (risadas). 

O Júlio: “É isso que eu queria te mostrá, você não quis ouvir”. E outra coisa também, nesse ano [1972], fizeram uma gravação ao vivo ali no Cinema Central, gravaram um LP ao vivo com as músicas vencedoras [do Festival de Música Popular de Juiz de Fora de 72]. 

Aí o Adelzon, ele me contou, pra frente, ele foi produzir o disco da Clara. Então ele falou assim: “vamô botá aquela música de Juiz de Fora”, aí ela falou assim “não, aquela música foi queimada naquela gravação ao vivo que fizeram lá, aquela música tá queimada”. O Adelzon disse: “então a música vai ficá na reserva”.

Eu frequentava o Rio naquela época, tava ali no Amarelinho, com o pessoal ali, Noca da Portela, Jurandir, aquela turma ali e o pessoal, eles gravavam de madrugada. Por que de madrugada? Porque tinha pouco barulho e não dava interferência. Aí pessoal do [Conjunto] Nosso Samba chegava lá, o Carlinhos do Cavaco: “Ô Mamão, já tá no disco, a música já não tá mais na reserva, tá no disco”. E aí de repente a música apareceu como a primeira faixa do disco.

Como foi seu encontro com Ismael Silva? Onde ele morava e o que ele te falou que você nunca mais esqueceu?
Mamão recebeu conselhos do sempre elegante Ismael Silva | Foto: Chico Nelson

Deixa eu contar a história: eu tava no Rio, frequentando o ponto dos compositores ali e aí chegou um cara tal, meio frio, meio chovendo no Rio. O cara chegou perto de mim e falou assim: “Ô Mamão, Ismael Silva qué muito te conhecê, eu sou fotógrafo dele e eu sô muito amigo dele e eu prometi que vô te levá lá no Largo do Estácio”. Aí eu falei assim: “pô!”, ainda perguntei pro Délcio Carvalho, o Noca: “Quem é esse cara que tá aí?”, vai me assaltar. Aí o Noca falou assim: “Não, pode ir, o cara é muito amigo do Ismael Silva” e tal. Aí foi passando a noite, passando a noite, eu olhava pro cara e o cara tava lá, me esperando. De repente ele chegou: “Vamô agora?”, aí já foi todo mundo embora, “então vamô, vamô lá”. Aí ele me levou no Largo do Estácio. O Ismael tava morando em cima dum botequim, rapaz! botequim fuleiro toda vida. Aí ele foi lá, falou com o cara: “o homê vai descê aí, ele tá mudando a roupa”. Ele andava alinhado, de gravata, sapato de duas cores. Aí, o Ismael desceu, “ô, esse aqui é o Mamão”, e tal. Aí ele falou assim comigo: “meu filho, você vai cantá essa música enquanto você for vivo, você vai ter que cantar essa música”. Eu falei: “pô!”, eu já não gostava mais de cantar [“Tristeza Pé no Chão”]. E dito e feito.

O primeiro grande sucesso da Clara Nunes é o maior sucesso da sua carreira. A Clara não te procurou mais depois desse grande sucesso?
Aí eu já tinha voltado pra Juiz de Fora. Porque eu tinha um filho excepcional e ele precisava muito da minha presença aqui. Eu ficava naquele vai e vem, vai e vem, vai e vem [Rio - JF]. Eu me lembro que um dia a Clara veio cantar aqui em Juiz de Fora, veio ela, Vinícius e Toquinho, vieram cantar no Cinema Central. E ela ficou hospedada no Ritz Hotel, aí me chamou lá, entrou em contato comigo. E falou assim: “ó, eu vô gravá outro LP, você vai na minha casa que eu quero ouvi umas música sua”. Aí eu fui pro Rio, juntou eu e o Marquinhos da Pedreira, ele tocava violão muito bem. Aí nós fomos lá pra mostrar umas músicas pra ela. Mas eu não tinha, tinha poucas músicas, um repertório que não passava de uma meia dúzia de músicas, não. Mas então ficou ali. Depois, não apareceu mais, ficou o dito pelo não dito. Já tava morando aqui [em Juiz de Fora], não podia lá, correr atrás, porque no Rio os caras correm atrás toda vida.

Conta como foi o dia que você foi apresentado ao Natal da Portela e como ele te recebeu.
Natal: “A Portela te recebe de braços abertos, Mamão” | Acervo Portela

Eu acabei fazendo uma amizade com o João Nogueira e encontrava com ele, lá no Rio. Aí, o Sérgio Cabral tava produzindo um LP do João Nogueira, o 1º LP, foi produção do Sérgio Cabral, o pai. Então, quando eu tava lá na Portela com ele, tem até um lance engraçado, O Wilson Moreira tava lá, disse: “ô Mamão, vô te apresentá pra Dona Vicentina”, lembra daquele samba do Paulinho? “comi o famoso feijão da Vicentina”. Ela ficava lá na cozinha, servindo aquele pessoal, lá. Aí ela falou comigo assim: “ô Dona Vicentina, esse aqui é o Mamão, compositor lá de Juiz de Fora, fez aquele sucesso com a Clara, aí”. Ela falou assim: “Ah, meu filho! aquele samba é lindo, é lindo! muito bonito, mas você foi falá na Mangueira”, “vai Mangueira tradição”, ela achava. Falei, “não!”, o Wilson: “Não é Mangueira, não, é “Manter a tradição”

Mas voltando a história do Natal, eu tava na quadra, aí o João Nogueira falou assim: “Ó, o Seu Natal vai chegá aí, eu vô te apresentá o Seu Natal”. Quando ele chegou com aquele monte de cara de terno preto rapaz!  segurança dele, sai aquele senhor, com um braço só. Sentou aí ficou aquele cordão de isolamento, o cara ficava lá, sozinho. Aí o João Nogueira conversou com um segurança daquele, com o outro, com o outro e foi lá. Daí a pouco o João Nogueira: “vem cá que eu vô te apresentá o Seu Natal”. Aí o Natal falou: “pode deixá ele entrá aí”. Aí ele entrou comigo lá, falou “ô Seu Natal, esse aqui é meu amigo, de Juiz de Fora, compositor também, portelense”. Aí ele falou assim comigo: “meu filho, eu não vô falá que eu tô de braços abertos pra você, porque eu tenho um braço só. Mas a Portela tá de braços abertos pra você”. Interessante, né? Eu fiquei emocionado. 

Na sua opinião, qual o samba mais bonito de Juiz de Fora?
Eu acho que é “Se eu fosse Feliz”, do Djalma de Carvalho, Juquita e B. O. [Samba cantado no desfile de 1949 na escola de Samba Feliz Lembrança, de JF]:

“Aí se eu fosse feliz / Pra poder sorrir e cantar / Beber / E aquela mulher amar / O destino não quis / Tenho que me conformar.
A vida é tão boa / Pra quem tem o seu amor / Sou a tristeza em pessoa / Vou chorando a minha dor / Perguntei ao onipotente / Meu Deus que mal eu fiz / Vejo tanta felicidade / E eu não sou feliz (ai se eu fosse feliz…)”.

Desfile da Escola de Samba Feliz Lembrança de 1966 | Acervo Maria do Resguardo

Você começou saindo em Escola de Samba, em blocos de rua e só depois se atreveu a compor. Ou seja, você é um legítimo compositor de Samba, não caiu de paraquedas nesse meio. O cara que é de MPB de repente: “ah, vou fazer um samba”. Esse samba vai ter a mesma qualidade do que o cara que é um sambista?
Nãããããooooo!!!... não vai ter, não, não vai ter, não, sabe por quê? O Samba tem que ter raiz, você tem que ter raiz. 

Pra encerrar, como é aquele samba seu, “Endereço”, pode cantar pra gente?
“Descendo o morro / À direita de quem vai à feira / Há um barraco / Seminovo e forrado de esteira / Subindo o morro / Mesmo lado da capela / Reside a morena /Que eu morro de amores por ela.
Há / No meu barraco um sabiá / Pra cantar / Quando o nosso amor amanhecer / Há / Um jardim na casa dela / Para florir nossas vidas / Ao som do meu sabiá”

Mamão em caricatura de Luiz Felipe Gonçalves (2015)

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