Sobre a Canção

A volta do Almirante Negro

quinta, 15 de fevereiro de 2024

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Nos dias de hoje, certamente a forma musical mais complexa de toda a música popular brasileira atende pelo nome de samba-enredo. Uma forma que evoluiu por quase um século desde os primeiros desfiles, em que o samba sequer precisava ter relação com o enredo. Atualmente, um samba-enredo precisa satisfazer uma enorme série de exigências. Para começar, ele deve não apenas tratar do enredo da escola, mas ter em si uma série de tópicos específicos deste enredo, que são fornecidos pelo carnavalesco e serão desenvolvidas nas fantasias e alegorias do desfile. Além disso, diante do tamanho das escolas e da extensão do desfile, ele precisa ter mais de um momento de ritmo mais marcado, em que o coro da escola e a bateria possam se alinhar, impedindo que o samba atravesse. Por isso, sambas-enredo atuais têm dois ou mesmo três refrões. Além disso, se o samba for composto já pensando nos momentos em que a bateria poderá fazer viradas e paradinhas, ajuda muito.

Todas estas exigências técnicas, por outro lado, não podem impedir o samba de ser cantável e empolgante. Muitas vezes a necessidade de mencionar diversos assuntos acaba burocratizando a composição, que se torna uma mera lista de temas e acontecimentos. Conseguir coadunar todas estas necessidades - que não são fabricadas, mas realmente indispensáveis para o sucesso do desfile - com uma melodia inspirada, uma letra não apenas compreensível como emocionante (às vezes tratando de um assunto muito distante da realidade dos componentes da escola) é uma tarefa hercúlea, por isso mesmo muitas vezes tomada a oito, dez ou mais mãos.

Já escrever um samba com o formato de samba-enredo, mas sem a responsabilidade de conduzir uma escola pela avenida, é algo que muitos compositores da MPB se dispuseram a fazer (e em alguns casos, com a responsabilidade, como veremos). E destes, provavelmente poucos se aproximaram mais da forma exata para um desfile que “O Mestre-sala dos Mares”, de João Bosco e Aldir Blanc.

Ouça a gravação de João Bosco de “O Mestre-sala dos mares” aqui

O Mestre-sala dos mares” abre o álbum de João “Caça à raposa”, de 1975, e conta a história de João Cândido, o marinheiro que se tornou líder da Revolta da Chibata. A história é conhecida: mesmo mais de 20 anos após a Abolição da Escravatura, na Marinha brasileira persistiam castigos corporais pesados como as chibatadas, que recebiam vista grossa do Estado, já que a maioria absoluta do contingente era composto por negros e pobres, em contraste com os oficiais brancos de elite. Vários anos antes de 1910, quando a revolta eclodiu, esta já era planejada pelos tripulantes do encouraçado Minas Geraes, que ao lado do São Paulo eram os dois navios de guerra mais poderosos da América do Sul, a ponto de sua aquisição pelo Brasil ter iniciado uma corrida armamentista no continente. O plano, desde o início, era se apoderar dos navios por meio de motins, e então negociar com o governo federal o fim oficial dos castigos físicos e a anistia aos revoltosos.

A revolta foi iniciada na noite de 22 de novembro de 1910, e à meia-noite, além do Minas Geraes e do São Paulo, os revoltosos tinham controlado alguns outros navios fundeados na Baía de Guanabara e escolhido João Cândido como seu líder. Avisaram o governo de suas exigências e ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro se não fossem atendidos. De fato, chegaram a bombardear fortes militares da costa e das Ilhas das Cobras e Villegagnon. Após um período de impasse, o presidente Hermes da Fonseca concordou com as exigências, a anistia foi aprovada no Congresso com a defesa de Ruy Barbosa, e a revolta cessou no dia 26 de novembro.

Porém, o governo não cumpriu a promessa da anistia. Nos dias seguintes, mais de 1.300 revoltosos foram desligados da Marinha, tantos que, para manter suas operações, foi necessário contratar marinheiros portugueses. Mais de trinta prisões foram feitas e, quando os marinheiros ameaçaram se amotinar novamente pelo não cumprimento do acordo, o governo declarou Estado de Sítio na capital.

João Cândido foi expulso da Marinha e preso, sob a acusação de ter favorecido as novas revoltas. Foi posto numa masmorra com outros 16 revoltosos, e foi o único a sobreviver - todos morreram asfixiados pelas condições da prisão. No ano seguinte foi levado ao Hospital dos Alienados, como louco, mas recebeu alta e finalmente em 1912 teve a absolvição das acusações - mas não a readmissão na?Marinha. Sobreviveu precariamente a partir daí, como estivador e com trabalhos temporários, mais os traumas físicos e mentais do que passou.

Esta é a historia contada por João e Aldir. Ou melhor, não exatamente, porque eles não se propõem a contar a história, e sim lembrá-la e relê-la sob um prisma épico, colocando-o no contexto da luta contra o racismo e pela liberdade e igualdade. Já os primeiros versos, “Há muito tempo nas águas da Guanabara / o Dragão do Mar reapareceu”, relacionam a história de João Cândido com a de outra figura ilustre, mas não ligada diretamente à sua, a de Francisco José do Nascimento, líder dos jangadeiros cearenses e ativista do abolicionismo, que em seu estado aconteceu quatro anos antes do restante do país, em 1884. João e Aldir estabelecem uma linhagem entre eles. Todo o restante dos fatos é narrado de forma quase alegórica, com versos que ao mesmo tempo parecem tentar suavizar os acontecimentos embelezando-os, e exaltar a figura de João Cândido, pintando-o com uma dignidade que paira acima de todos.

Imagem de Francisco José do Nascimento

Assim, as “mocinhas francesas, jovens polacas e batalhões de mulatas” que o saúdam no porto são as prostitutas, descritas de forma edulcorada, assim como as “rubras cascatas” que “jorravam das costas dos santos” são cantadas com um entusiasmo que mal disfarça sua verdadeira natureza. Elis Regina, em sua gravação no álbum do mesmo ano de 1974, usou de estratégia semelhante à aplicada em outro samba-enredo de João e Aldir, "O bêbado e a equilibrista": reduziu seu andamento e estilizou a batucada, de forma a realçar tanto os contornos melódicos da composição quanto a sua imensa dramaticidade.

Ouça Elis Regina cantando “O Mestre-sala dos mares” aqui 

Porém, assim como João Cândido, a canção que narra sua história também teve, a seu modo, de lutar por sua liberdade. Aldir conta, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som:

Tivemos diversos problemas com a censura. Ouvimos ameaças veladas de que o CENIMAR (Centro de Inteligência da Marinha) não toleraria loas a um marinheiro que quebrou a hierarquia e matou oficiais, etc. Fomos várias vezes censurados, apesar das mudanças que fazíamos, tentando não mutilar o que considerávamos as ideias principais da letra.

Assim, João e Aldir trataram de ir modificando a letra a cada ida à censura. O bravo marinheiro dos primeiros versos tornou-se feiticeiro; o Almirante negro tornou-se apenas navegante; e as rubras cascatas que jorravam das costas dos negros passaram a jorrar das costas dos santos, entre outras mudanças, sendo que estas últimas se devem à revelação final feita a Aldir:

Minha última ida ao Departamento de Censura, então funcionando no Palácio do Catete, me marcou profundamente. Um sujeito, bancando o durão, (…) mãos na cintura, eu sentado numa cadeira e ele de pé, com a coronha da arma no coldre há uns três centímetros do meu nariz. Aí, um outro, bancando o “bonzinho”, disse mais ou menos o seguinte:
– Vocês não estão entendendo… Estão trocando as palavras como revolta, sangue, etc. e não é aí que a coisa tá pegando…
Eu, claro, perguntei educadamente se ele poderia me esclarecer melhor. E, como se tivesse levado um “telefone” nos tímpanos, ouvi, estarrecido a resposta, em voz mais baixa, gutural, cheia de mistério, como quem dá uma dica perigosa:
– O problema é essa história de negro, negro, negro…

Só então Aldir e João se deram conta do que deveriam fazer. Foi quando a canção teve o nome mudado de “O almirante negro” para “O mestre-sala dos mares”... E passou.

Embora “O mestre-sala dos mares” seja sem dúvida um samba-enredo, guarda diferenças importantes com os que efetivamente são criados com a intenção de desfilar. O principal deles trazer em si um arco crescente que não é comum nos sambas das escolas. Estes precisam manter o entusiasmo constante dos integrantes, e por isso as curtas estrofes mais tranquilas são logo entremeadas por refrões e trechos mais marcados e em regiões mais agudas, de forma a manter um impulso constante e o mais homogêneo possível.

Já João e Aldir não têm este compromisso. Por isso, seu samba-enredo se dá o direito de ter toda a parte inicial na região mais grave, sendo cantado, mesmo na gravação animada de João, de forma mais comedida. Somente a partir da segunda parte, com o verso “Rubras cascatas” é que a melodia começa a buscar o agudo, para enfim, em seu final, as glorificações acontecerem num crescendo que traz as notas mais agudas da melodia. O arco dramático de “O mestre-sala dos mares” tem início, meio e fim, e é sintomático que nem a gravação de João nem a de Elis o cantem duas vezes- João repete apenas a parte final, e Elis nem isso. O samba-enredo produzido pela MPB se permite ser híbrido da forma tradicional da canção.

Mas então como seria um samba-enredo tradicional que tratasse do mesmo tema? João Cândido já foi homenageado mais de uma vez em desfiles - A União da Ilha do Governador, em 1985, trouxe o enredo “Um herói, um enredo, uma canção”, que justamente tanto o homenageava quanto referenciava o samba de João e Aldir - a escola não desfilou bem e amargou um 12º lugar. Mas como no mundo do samba muitos temas retornam - e é bom que retornem -, a Paraíso de Tuiuti em 2024 veio com o enredo “Glória ao almirante negro”.


O samba de Cláudio Russo, Moacyr Luz, Gustavo Clarão, Júlio Alves, Alessandro Falcão, W. Correa e Píer (14 mãos!) segue à risca diversos dos itens necessários ao desfile na avenida: O refrão inicial apresenta a escola já em alta voltagem, quatro versos fortes e bem ritmados, alinhando o canto e a bateria e prometendo empolgar - tudo ao contrário do samba de João e Aldir. Entretanto, à menção direta a eles segue-se a adaptação do primeiro verso de “O mestre-sala dos mares” abrindo aqui também a narrativa: “Nas águas da Guanabara”.

Apesar do início auspicioso, seria de temer aqui que o samba-enredo se convertesse em uma mera paráfrase e tentasse estabelecer sua força às custas do anterior. Felizmente, não é isso que acontece. Em vez disso, “Glória ao almirante negro” constrói sua narrativa a partir de sua própria pesquisa, inclusive narrando a traição por parte do governo federal, ausente em “O mestre-sala dos mares” (e que provavelmente também não teria passado na censura, mas no caso de um enredo de escola de samba se torna indispensável). Os dois sambas não se perdem de vista, mas correm com personalidades particulares e imagens próximas, mas distintas. O samba de Moacyr Luz e seus companheiros faz também de forma mais direta a ligação dos castigos físicos com a escravidão já abolida, traçando o paralelo com a casa-grande e os contratadores, que arrematavam ao Império Português do direito de exploração das terras com o uso extensivo de escravos.

Por sinal que chama a atenção a presença de Moacyr, um músico que, embora com os pés fincados no universo do samba, transita com desenvoltura pela composição relida pela MPB, entre os compositores do samba da Tuiuti. Não que isto seja novidade: Moacyr é useiro e vezeiro da autoria de sambas-enredo por mais de uma escola, ganhou mais de um Estandarte de ouro - incluindo em 2023 pela Tuiuti com o enredo “Mogangueiro da Cara Preta”. Também é um dos autores do samba de 2018, “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”, com que a escola foi vice-campeã do carnaval. Assim como Martinho da Vila, Moacyr é um compositor que domina a técnica de composição de sambas-enredo tanto quanto da canção popular, e passa de um à outra com desenvoltura. Para grau de comparação, basta analisarmos seu samba mais conhecido, “Saudades da Guanabara”, todo composto a partir de um tema melódico único que vai se desdobrando pelas estrofes - algo impossível num samba-enredo, que precisa, ao contrário, de vários motivos musicais diferentes que se sucedam para evitar a monotonia de sua repetição por 50 minutos.

E, se “O mestre-sala dos mares” delicadamente estabelece João Cândido em uma linhagem de abolicionistas, “Glória ao almirante negro” traz também um outro estratagema que lhe serve, simultaneamente, para manter o interesse do ouvinte e da escola e situar a si próprio, por sua vez, em uma linhagem de sambas e canções que narram esta luta por liberdade. Pois não é apenas ao samba de João e Aldir que ele se referencia - a este muito claramente, a outros de forma mais sutil. Assim, nos versos:

Ôô, a casa grande não sustenta temporais
Ôô, veio dos Pampas pra salvar Minas Geraes

A melodia do Ôô se inicia muito semelhante (para logo se diferenciar) a um dos refrões de “Kizomba, festa da raça”, samba vencedor do carnaval pela Unidos de Vila Isabel em 1988 (de autoria de Martinho, por sinal), nos versos:

Ôô nega mina, Anastácia não se deixou escravizar
Ôô Clementina, o pagode é o partido popular

Por mais que coros como este sejam comuns em sambas enredos e a menção seja sutil, é suficiente para sugestionar o ouvinte na ligação temática. Da mesma forma, logo em seguida surgem os versos:

Lerê, lerê, mais um preto lutando pelo irmão
Lerê, lerê, e dizer: Nunca mais escravidão

Aqui nem mesmo é necessário o paralelismo melódico: o coro Lerê, lerê é a marca registrada da introdução da canção de Dorival CaymmiRetirantes (Vida de negro)”, quase uma trilha sonora da escravidão no imaginário popular desde que foi apresentada como tema da novela Escrava Isaura, em 1976.

E para completar, a mais sutil e mais recente alusão: a última estrofe se inicia com a expressão “Meu nego”. Uma forma carinhosa de tratamento, sem dúvida, e que no samba da Tuiuti pode soar como uma repentina mudança na letra: se até aí ela contava a história de João Cândido na terceira pessoa, neste final, com o uso de um vocativo, estaria passando à segunda e falando diretamente com ele. Uma guinada talvez excessivamente brusca e de difícil compreensão à primeira escuta.

Mas esta impressão só dura até lembrarmos do já célebre samba da Mangueira vitorioso em 2019, “Histórias para ninar gente grande”. Nele, a letra é toda na segunda pessoa e, de forma bastante arrojada, conversa diretamente com o Brasil - e usando com ele exatamente a forma de tratamento carinhosa e cheia de significados: “Brasil, meu nego, deixa eu te contar”.

E então a escolha de Moacyr e seus parceiros se ilumina.?Não se trata de uma guinada, mas apenas da revelação tardia de que era o próprio país o interlocutor do samba desde seu início. E assim, “Glória ao almirante negro” se alinha a “Histórias de ninar gente grande”, como que continuando a conversa iniciada pelo samba anterior, contando uma das histórias que a História não conta (no samba da mangueira, João Cândido não chega a ser citado, mas o Dragão do Mar Francisco José do Nascimento sim).

E finalmente, chegamos aos versos finais

Salve o Almirante Negro
Que faz de um samba-enredo imortal

Onde se realiza a promessa feita desde o título do enredo: de devolver a João Cândido o título honorário concedido por João e Aldir e retirado pela ditadura antes mesmo de vir a público. O navegante negro tem finalmente reconhecida sua condição de líder da frota que enfrentou a República para torná-la efetivamente a res pública, aquilo que pertence ao povo. João Cândido torna-se almirante de fato e de direito, e Glória ao almirante negro reclama para si um pouco desta glória também. Se esta virá e o samba da Tuiuti se tornará um daqueles sempre lembrados pelos anos seguintes, o tempo dirá. Mas o almirantado de João Cândido será o marco da escola este ano, um marco a não ser esquecido. Em 1985, em pleno desmantelar da ditadura, a União da Ilha foi chamada ao 1º Distrito Naval para prestar esclarecimentos sobre seu enredo, e teve de convencer os militares que não se tratava de nada subversivo. Que hoje a Tuiuti possa contar esta história sem receios é um sinal de que a luta de homens como João Cândido não foi em vão.


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