A música de

'A Noite do Espantalho': o primeiro ‘grande encontro’ da nova música nordestina

por Rafael Rosa Hagemeyer

segunda, 09 de novembro de 2020

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"A Noite do Espantalho" é o título da obra: um filme, rodado em 1973, mas do qual resultou também um disco. As canções desse cordel musical foram concebidas no Rio de Janeiro pelo compositor Sérgio Ricardo, harmonizadas e arranjadas por Geraldo Azevedo em Nova Jerusalém e gravadas no Rio de Janeiro. Com canções interpretadas por Alceu Valença (Espantalho) e Geraldo Azevedo (Severino), além do próprio Sérgio Ricardo (que canta as vozes do jagunço Zé Tulão e do boiadeiro Zé do Cão) e de sua companheira Ana Lúcia de Castro (que faz a voz cantada da protagonista Maria do Grotão), o disco teria uma repercussão até mesmo maior do que o filme.

Alertava-se ao ouvinte que o álbum era a trilha sonora do filme "A noite do Espantalho", embora a gravação do disco não seja exatamente a mesma banda sonora que foi utilizada na montagem do filme. O filme recebeu reconhecimento internacional, com premiações no Festival de Belém, e também em festivais na Áustria, na Austrália e nos Estados Unidos, sendo exibido ainda na semana da crítica em Cannes. Não se trata aqui de considerar o disco como melhor do que o filme, mas de pensar seu caráter como obra autônoma, que tão somente através das imagens da capa estimula a imaginação de quem, como eu, durante décadas não havia tido oportunidade de assistir ao filme. As alterações da capa do disco são sintomáticas do que ele passou a representar para o movimento musical que posteriormente seria conhecido como “Novo Nordeste”.

Seguramente o disco teve um público ouvinte muito maior do que o público-espectador do filme. De circulação restrita em salas de cinema, o filme jamais foi lançado em VHS, e mesmo em DVD só surgiu em 2010. A primeira edição do LP, lançada pela gravadora Continental em 1974, apresentava na capa o retrato do “espantalho”, personagem do cantor Alceu Valença, tal como aparece na arte psicodélica de Sérgio Greco, autor do cartaz do filme. Mas sobre o retrato se impunha o nome de “Sérgio Ricardo” em amarelo – o que levava a confusões sobre a identidade do autor do disco.


Esgotada a primeira edição, o disco foi reimpresso pela Phonomusic em 1978, destacando abaixo do título, à direita, a “Participação Especial de Alceu Valença”, permanecendo abaixo o nome de Sérgio Ricardo em letras brancas (não mais amarelas).


Finalmente, em 1982, a gravadora Continental reedita o disco, invertendo a capa e a contracapa, colocando o título em vermelho, em letras brancas e miúdas “Participação especial de” e destacado em alaranjado, com letras maiores que as do título, o nome do cantor Alceu Valença.


Na mera descrição iconográfica das capas, cuja arte final é assinada por Oscar Paulillo, evidencia-se o modo como os mercadores de disco percebiam que o sucesso de Alceu Valença, posterior ao filme, poderia “alavancar” a venda daquele material já pronto e muito bem acabado. O filme teria que esperar várias décadas a mais até poder ser reexibido, em outras plataformas, e assim redescoberto já por outras gerações.

Por essa razão, a apresentação da obra, presente na contracapa de todas as edições do disco, traz essa contradição de uma trilha sonora que dialoga no filme, mas ao mesmo tempo mantém sua autonomia. Nilson Barbosa, um dos co-roteiristas do filme, avisa no texto de apresentação do disco que vale a pena ouvir a música e assistir ao filme. O problema é que, durante muito tempo, o ouvinte do disco esteve impossibilitado de vê-lo, na medida em que estava fora de cartaz e indisponível para compra ou aluguel. Munido de tão somente essas duas informações visuais – o cartaz psicodélico e o fotograma dos motoqueiros com asas de libélula – o ouvinte era levado a imaginar a história. O cordel apresenta uma música muito rica e colorida do ponto de vista melódico, harmônico e instrumental, mas na sua poesia não há nenhuma indicação futurista; os elementos deslocados no tempo encontram-se apenas nas imagens do filme. A letra do cordel evoca a figura do coronel e as relações que ele estabelece à “sua gente”, o problema da seca do sertão, a aparição dos jagunços provocando terror, a rebelião dos sertanejos liderados pelo boiadeiro recém-chegado, o trabalho comunitário, a matança e o duelo.

Se a música traz esses elementos do passado arcaico, na tela eles são visualmente representados no futuro, que traz em nova roupagem a classe dominante. É a representação visual de uma “modernização conservadora”, em que o futebol, as câmeras e os personagens do teatro invadem o sertão. O filme é, nesse sentido, uma expressão estética que intuitivamente sintetiza aquilo que, na mesma época, era formulado no âmbito da sociologia como “teoria da dependência”. Mas a música do disco enfatiza a continuidade do processo histórico, já que reencena o mesmo enredo das velhas lutas sociais do passado nordestino, com uma roupagem sonora marcada pela releitura erudita da cultura popular, tensionando as melodias e provocando soluções harmônicas incomuns.

Não era aquele, contudo, o primeiro cordel que criava Sérgio Ricardo, o artista-intérprete da cultura musical e poética do Nordeste brasileiro. Nascido no interior de São Paulo como João Lutfi, filho de imigrantes sírios, aprendera música ouvindo o alaúde do pai acompanhando o cantar da mãe, e ainda menino foi educado ao piano, em um conservatório de música erudita. Do erudito ao popular, como tantos jovens compositores de sua geração, o pianista se tornaria famoso nas boates de Copacabana como “Mansur” ainda nos anos 1950. Depois do convite para ir para a televisão, no início dos anos 1950, seria rebatizado como “Sérgio Ricardo”, nome com o qual se tornou apresentador de programas musicais e também galã de novelas. Com a engajada canção "Zelão", que marca a mudança das preocupações temáticas da Bossa Nova com a favela, surge a amizade com Chico de Assis, um dos fundadores do Centro Popular de Cultura da UNE, que utilizava da cultura nordestina em teatros musicais como "As aventuras de Ripiô Lacraia", peça musical registrada por Sérgio Ricardo na realização de seu segundo filme, "Esse mundo é meu" (1964).

É durante as revelações e montagens dos seus primeiros filmes, no Laboratório Líder Cinematográfica, que Sérgio Ricardo conheceu Nelson Pereira dos Santos, que estava montando Barravento, de Glauber Rocha. Ao conhecer a música que Sérgio Ricardo compôs inspirada por esse filme, o cineasta baiano o convidou para compor a música de seu cordel cinematográfico "Deus e o Diabo na Terra do Sol". Sérgio confessa que não realizou “pesquisa de campo”, apenas recebeu no Rio de Janeiro fitas que Glauber gravou com o “cego Zé”, um cantador da região do sertão baiano, e também provavelmente teve acesso ao material registrado pelo assistente de produção do filme, o cineasta Paulo Gil Soares, que na época estava produzindo o documentário "Memória do cangaço". O compositor conta que fez a musicalização dos versos de Glauber Rocha em uma noite, pressionado pelo amigo em função de cronograma de produção, e que não ficara muito satisfeito com o resultado, mas que era apenas um esboço. Glauber, contudo, arrancou de Sérgio Ricardo uma interpretação gritada de “cantador de feira” que ele, um cantor suave da Bossa Nova, não estava acostumado a dar. E é sua música um dos pontos mais altos do filme, dando maior autenticidade para as cenas, sobretudo na clássica sequência final da perseguição e morte do cangaceiro Corisco.

Contudo, Glauber não permitiu que Sérgio Ricardo criasse arranjos mais elaborados sobre o cordel, preferindo o modo mais despojado da voz e do violão. Tampouco permitiu que Sérgio visse as sequências do filme sobre as quais sua música iria se encaixar. Surpreso com o resultado do filme, Sérgio Ricardo resolveria mais tarde criar sua própria versão da epopeia nordestina, com todos os recursos musicais e cinematográficos de que dispunha, produzindo uma grande ópera futurista do sertão. Segundo Alceu Valença, a capacidade de Sérgio Ricardo interpretar a cultura e a musicalidade do Nordeste está relacionada à sua ascendência síria: “No Nordeste foi muita gente, porque tem muito judeu e muito árabe que foram para lá e o Nordeste tem uma coisa que ele tem uma cultura muito ibérica. Então ele que é descendente… Ele absorveu facilmente essa cultura”.

O cenário escolhido foi a cidade cenográfica de Nova Jerusalém, criada por Plínio Pacheco, onde todos os anos era encenada a Paixão de Cristo. Ali, ouvindo as cantorias das romarias da população da localidade de Fazenda Nova, que atuaram como figurantes no filme, Sérgio Ricardo mobiliza o talento dos compositores pernambucanos Alceu Valença e Geraldo Azevedo. Este último também atuou no filme, como o personagem Severino, além de realizar a direção musical no local para a gravação das canções e a encenação da performance musical diante das câmeras. Em entrevista para o projeto “A Câmera Acústica de Sérgio Ricardo”, ele revela alguns detalhes deste trabalho:

"A direção musical durante esse filme foi fácil e ao mesmo tempo não foi. Algumas músicas eu fiz uma adaptação da maneira de um nordestino criar a coisa e eu estava naquele momento muito aberto também à criação, e tudo que eu propunha pro Sérgio ele aceitava, entendeu, algumas mudanças harmônicas… […] Essa música canta eu e Alceu junto, o tempo todo é nós dois juntos. Em dupla fazendo vocais e tudo. Carreguei também alguns músicos de Recife, que era o Robertinho de Recife, que foi dar um auxílio, na direção musical… A gente ensaiava… Toda gravação para o filme a gente primeiro gravou no Nagra, num gravador de dois canais. A gente gravou toda a trilha lá em Nova Jerusalém, a gente fazia… teve um lugar lá que a gente ficou trabalhando e foi gravando tudo que a gente ensaiava… Robertinho tocava viola. Tinha… Icinho, que era um músico também que eu levei de Recife pra gente ensaiar as bases… As bases todas do filme foram feitas lá. Então essas guias todas que foram feitas, era com Robertinho do Recife e Icinho, Geraldo Amaral no baixo…"

Dessa relação se produziram também espetáculos num circo que foi montado na praça, que contou com a visita de outros músicos da cena pernambucana, como Zé Ramalho e Lula Cotez, sendo que este último também auxiliou na direção de arte do filme. Alceu Valença também relembra a emoção que foi se reinserir na cultura de sua infância e reencontrar velhos amigos: “Então, o Sérgio se cercou de pessoas maravilhosas, como Lula Cortes, como Kátia Mesel fazendo [direção de] arte. Se cercou do povo, da estrutura de Nova Jerusalém, entendeu? A produção era maravilhosa porque você almoçava dentro do restaurante da Nova Jerusalém […]. As pessoas conviviam muito, os atores, etc e tal.”.

Outros problemas, contudo, surgem no momento de realizar as sequências musicadas, pois ainda não havia a gravação definitiva em estúdio. O filme seria dublado posteriormente, de modo que, não havendo metrônomo para marcação do tempo, as sequências tiveram que ser regravadas no Rio de Janeiro, após a montagem.

"Depois a gente trouxe pro estúdio, e transformou tudo aquelas gravações. Levamos pro estúdio, um estúdio da Som Livre, a gente gravou tudo ali. A gente gravou tudo ali de novo. Até porque, a gente… Essa coisa do sync, do sincronismo, foi difícil pra gente trabalhar depois, porque tinha uma coisa de variação técnica. A gente gravou no Nagra, e todo mundo dublava o que tava no Nagra. Tem música lá que eu cantei a voz guia. E que depois a Rejane Medeiros dublava em cima, e quem foi cantar depois foi a [Ana Lúcia], que era casada… Ex-mulher do Sérgio Ricardo, que botou a voz original. A minha voz que era guia pra Rejane cantar, entendeu? Pra Rejane dublar. Então essas coisas foram todas feitas lá. Então essas guias todas que foram feitas, era com Robertinho do Recife e Icinho, Geraldo Amaral no baixo… Sérgio Ricardo gravou umas coisas também, porque tinha umas puxadas de violão que era ele mesmo que criou e era muito difícil de a gente pegar. Ele tocava muito bem, cara, nessa época. Mas foi tudo feito no Nagra, gravado, né, em Nova Jerusalém, lugar que a gente escolheu pra gravar, e gravamos a trilha quase toda lá."

A regravação da trilha no Rio de Janeiro, contudo, foi feita com outros músicos, segundo os créditos que aparecem na contracapa dos discos: Sérgio Ricardo (piano, viola e violão); Piri (viola, violão, rebeca e bandolin); Fred (piano e flauta doce); Cássio (baixo e viola); Franklin (flauta). Não sabemos quem é o responsável pela percussão, cujos ruídos se assemelham por vezes à sonoplastia. E o repertório da narrativa musical do disco não coincide totalmente com a trilha sonora do filme. Há várias músicas que compõem sequências do filme que não foram incluídas no LP. É o caso, por exemplo, do cantar da carpideira no funeral, quando o Espantalho pergunta em tom de romaria: “Quem é essa mulher…” e o coro responde em ritmo de oração: “É Maria do Grotão…”. Outros temas recorrentes, que funcionam como leitmotivs, estão presentes no LP, como Tulão das Estrelas e Mutirão, mas suas variações como o “Tulão desafiando o coronel” ou a “Chegada da Chuva” ficaram de fora, talvez pela redundância, já que era necessário adaptar uma história contada na tela com noventa minutos em um suporte de disco que apenas comportava a metade desse tempo.

Dessa forma, compreendemos a observação de Nilson Barbosa, no início da apresentação do disco, da produção do filme como um grande mergulho na cultura local:

"Só um artista que conhece o sentimento humano consegue revelar suas imagens e seus cantos, ao nível em que eles se manifestam com exatidão e pureza. Sérgio Ricardo em “A Noite do Espantalho" criou um personagem, o Espantalho, que é ao mesmo tempo uma espécie de místico e cantador de feira e, na sua boca, lança uma história cantada que não é outra coisa senão uma história do povo, cantada pelo próprio povo: com imagem e música”.

Dessa forma, o disco "A Noite do Espantalho" atravessou o tempo como síntese da cultura nordestina, tendo em Sérgio Ricardo o artista que mergulhou naquele universo para produzir, com músicos de uma nova geração, um monumento cuja força e autenticidade permanecem com a mesma vitalidade ainda nos dias de hoje.



Rafael Rosa Hagemeyer é autor dos livros História & Audiovisual e Caminhando e cantando: o imaginário do movimento estudantil brasileiro de 1968”, e também dirigiu o vídeo-documentário “Um dia nublado: o cinema nas greves do ABC (1979-80)”. É doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e realizou pós-doutorado em História da Arte pela Universidade Autônoma de Madri. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), atuando no Laboratório de Imagem e Som (LIS), onde coordena o projeto de pesquisa e documentário “A Câmara Acústica de Sérgio Ricardo”. As entrevistas de Alceu Valença e Geraldo Azevedo, citadas neste texto, foram coordenadas por ele, em no Rio de Janeiro, em março de 2017.


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