Cultura

55 anos de Opinião: política, resistência e música popular brasileira

sexta, 20 de dezembro de 2019

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Há 55 anos, o Brasil não vivia um mês de dezembro tranquilo. Meses antes, havia estourado um golpe militar, instalando no país uma atmosfera de ebulição política e cultural que transformou para sempre o nosso país. Especificamente em 11 de dezembro de 1964, um acontecimento entrou definitivamente para nossa história. Estamos falando da estreia do show Opinião, que aconteceu no teatro do Shopping Center Copacabana, sede do Teatro de Arena do Rio de Janeiro. 

O show-manifesto foi dirigido por Augusto Boal, produzido pelo Teatro de Arena e por integrantes do Centro Popular de Cultura da UNE, o famoso CPC. É considerado até hoje a primeira resposta do teatro contra a ditadura militar então em curso no país. Mas além de sua importância política, o espetáculo marcou também a história da música popular brasileira. Para isso, basta dizer que ele era encenado por Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale

A premissa do espetáculo era se utilizar da música para dialogar e escancarar as injustiças sociais do Brasil, além de denunciar o sistema político então em curso no país. A estrutura foi montada a partir da colagem de uma série de fontes, que iam se costurando simultaneamente: músicas, notícias de jornais, citações de livros, cenas ensaiadas e depoimentos pessoais, com textos contundentes assinados por Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes

Mas onde entra a música nisso tudo? Pois a música era justamente o fio condutor da força dramatúrgica de Opinião. Era a linha que costurava e amarrava o espetáculo, dando unidade a ele. A narrativa era dividida em três protagonistas, que tinham origens e histórias distintas, mas se encontravam no caminho ao se utilizarem da música como instrumento de conscientização e luta social.

Os atores escolhidos, como se vê, tinham muito a ver com os personagens que interpretavam. O maranhense João do Vale representava justamente o migrante nordestino que chega ao Rio de Janeiro para tentar conquistar seu espaço como músico no centro da indústria cultural do país. O carioca Zé Kéti era o trabalhador carioca, que vivia na pele a realidade dos morros do Rio. Nara Leão era a garota de classe média que toma consciência de seus privilégios e decide aderir à luta popular. Algo não muito distante da realidade da cantora, que naquele momento esbravejava sem medo contra os militares e a Bossa Nova. Há célebres entrevistas dessa época em que ela critica o elitismo da Bossa Nova e busca romper com a narrativa de “musa do movimento” que criaram em torno ela. Tanto que, poucos meses antes da estréia do espetáculo, Nara lançou o disco Opinião de Nara, o segundo de sua carreira, que já adiantava algumas músicas que estariam no show homônimo e que rompia com a estética da Bossa Nova para beber na fonte dos sambistas de morro, provando a todos que nunca poderia ser engaiolada como uma simples “musa”. Afinal, Nara sempre teve opinião e não iria aceitar ser silenciada de forma alguma. 

O repertório musical que fazia parte do roteiro do show Opinião se tornou referência definitiva para a chamada “música de protesto”, que marcou os anos 1960, não só no Brasil, mas como em toda a América Latina. Grande parte das músicas eram assinadas por Zé Kéti e João do Vale, bem como por outros compositores do morro ou artistas que estavam antenados com as lutas sociais à época, como Edu Lobo (Borandá) e Carlos Lyra (também rompido com a Bossa Nova por convicção política nessa época). Opinião, composição de Zé Kéti que dava nome ao show, tornou-se grande emblema desse momento e símbolo da música de protesto no Brasil:

Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião…

Fora essa, também entraram para a história Peba na pimenta, Pisa na fulô, Carcará e a histórica versão de Guantanamera, que simbolizava a união desses sujeitos com o resto do povo latino-americano. Essas gravações podem felizmente ser escutadas em versão crua e ao vivo no disco do espetáculo, Show Opinião, lançado em 1965. 


Mas o legado histórico de Opinião não para por aí. Semanas depois da estreia, Nara Leão precisou se ausentar do espetáculo por questões de saúde. Para lhe substituir, ela indicou uma cantora ainda muito jovem, de 17 anos, que vira pouco antes tocando com amigos em um teatro local na Bahia. Essa menina era ninguém menos que Maria Bethânia, que se mudou para o Rio com o irmão Caetano, outro desconhecido. 

A chegada de Maria Bethânia deu ainda mais densidade ao espetáculo e potencializou seu impacto dramatúrgico. A suavidade de Nara deu lugar a uma voz grave, impositiva, com o sabor agreste do recôncavo baiano. Sua interpretação de Carcará (a ave que pega, mata e come pra não morrer de fome) ampliou o sentido político da música, com o drama da seca nordestina tomando forma na voz áspera e dura de uma jovem mas já soberana Bethânia.

Por tudo isso, os 55 anos de estreia do show Opinião revelam seu legado amplo dentro da cultura brasileira: um legado de resistência política, mas também de grande relevância para a música popular brasileira. Afinal, foi esse espetáculo que instituiu um novo parâmetro de música engajada no país, além de ter marcado a biografia de duas cantoras fundamentais do nosso cancioneiro. Sem ele, teríamos ouvido Nara de outra forma, e talvez nem chegássemos a ouvir Bethânia

55 anos depois, só nos resta esperar que nossos artistas jamais percam sua opinião, seja ela qual for. 


Texto por: Tito Guedes

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