Colunista Convidado

Vitor Ramil dobra as afiadas esquinas poéticas de “Avenida Angélica”

segunda, 06 de junho de 2022

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Difusor da “estética do frio”, a partir da milonga gaúcha, o compositor, cantor e violonista pelotense Vitor Ramil, irmão mais novo da dupla formada pelos ex-Almôndegas, Kleiton & Kledir, dobra nova esquina em sua obra. Literalmente. Faz parceria com uma ex-vizinha de quadra, a poeta Angélica Freitas – atualmente radicada na Alemanha, mas que nasceu e foi criada logo ali ao lado dele, na mesma cidade, sem que se conhecessem. Considerada uma das mais eloquentes vozes da poesia contemporânea do país, ela tem os cortes abruptos de sua prosódia seca e esquinada, envolta nos acordes, vocais e batuques de Ramil no CD/DVD “Avenida Angélica (Satolep). Eles também eram vizinhos na mesma editora, a finada e elegante Cosac Naify, e os poemas dela foram apresentados ao músico pelo editor Augusto Massi. Seduzido por eles, Vitor, por e-mail, ofereceu parceria que só seria concretizada 18 anos depois. Desfilam 17 poemas dos livros “Rilke Shake” (2007) e “Um útero é do tamanho de um punho” (2013) e Angélica lê, sem acompanhamento, um deles, “Ítaca”. “Já não se pode viajar sem reservas/ ao mar jônico/ e mesmo a viagem de dez horas parece dez anos/ escalas no Egito?/ nem pensar”, sentencia ela, à palo seco. 

imagem: divulgação

"Godard falou que uma obra de arte tem que correr riscos, do contrário não tem valor. Joni Mitchell, depois de queixar-se que errava muito ao piano, pois não entendia o instrumento, ouviu o conselho de um músico, ‘siga o erro’”, introduz Ramil no texto de apresentação, como se evocasse “a incorporação milionária de todos os erros”, de que falava o modernista pré-tropicalista Oswald de Andrade. Não há exatamente erros, mas ocorreram percalços no projeto, financiado pela Natura Musical, a partir da hecatombe da pandemia, que atingiu suas programadas exibições ao vivo. E não faltaram ruídos e adversidades no registro de voz e violão, no pelotense Theatro Sete de Abril, o terceiro mais antigo do país, cuja obras de restauro o deixaram sem calefação e desumidificação. Entre 7 e 8 de agosto de 2021, a gravação foi realizada entre paredes e pisos molhados, que danificaram alguns microfones. O que não impediu sutilezas, como o toque dos sinos da Catedral Metropolitana de Pelotas, “que gravei com o celular ao perceber que tocavam no tom e andamento de ‘Rilke shake’”. Receita a longa e langorosa faixa de abertura: “por mais que você se deite / se deleite e se divirta/ tem noites que a lua é fraca/ as estrelas somem no piche/ e aí quando não há cigarro/ não há cerveja que preste/ eu peço um rilke shake/ engulo um toasted blake/ e danço que nem dervixe”.

Quando morava em São Paulo, Angélica surpreendia-se com anúncios do tipo "Família vende tudo”. “Eu me perguntava o que aconteceria se uma família decidisse vender tudo mesmo? O poema foi um exercício de imaginação. Gosto muito de escrever a partir de coisas que encontro pela cidade e que me provocam, me tiram do automático”, admite. Vitor confeccionou a parceria e a entoa quase como um mantra farpado (“família vende tudo/ um pai engravatado/ depois desempregado/ uma mãe gorda a seu lado”). “Uma canção contundente, em especial para este momento que o país atravessa, mas sempre com o humor único de Angélica”, depura ele. Já, a partir das reconhecíveis iniciais, “R.C.” celebra o rei da canção pop, numa balada ao seu estilo, em que Ramil surfa com perícia. “Ouvi muito rádio na minha infância, principalmente na cozinha, com as empregadas que trabalhavam lá em casa”, situa a autora dos versos, “e se a luz faltar/ num cantinho do meu quarto eu vou estar/ com um Panasonic quatro pilhas aaa/ ouvindo as canções do rádio”. 

Cerzida por violão leve, cadenciado em dois tempos, e a voz tépida do trovador, “A mina de ouro de minha mãe & minha tia” é outra pérola autobiográfica de Angélica, cuja mãe, nascida numa colônia de Pescadores, ia com a irmã vender cosméticos numa ilha isolada, na Lagoa dos Patos. “Minha mãe e minha tia/ embelezavam as nativas/ devolviam-lhes cores às faces/ todo o espectro de cores”. Num polo oposto, a litania brutalista do “Poema da mulher suja” (“as mãos imundas/ e sob as unhas compridas/ milhares de micróbios”) confronta com a estética da cálida e ríspida antecessora, “Uma mulher insanamente bonita”(“ela vai ganhar um automóvel e muitas flores/ quantas forem necessárias/ mais que as feias, as doentes, e as secretárias juntas”). À capella, num vibrato melífluo, Vitor circunavega o identitário “Bigodinho”: “um apêndice nasobucal/ buconasal/ tipo um chapéu/ ninguém te incomoda nos cafés”.  E desliza manso no falsete nos acordes recorrentes e interrogativos de “Siobhan” – "Será que ela pensa em mim/ será que também se pergunta/ o que aconteceu com as boas garotas de Sodoma que / sempre/ se beijavam nas escadas/ sumiam nas bibliotecas/ preferiam virar sal?”. Um “blues rural” pontua “Cosmic Coswig Mississipi” (“vacas aparando a grama/ galinhas arregaladas/ galos em estacatos”), e há dois sambas batucados à mão. A vinheta “Versus eu” (“Lá embaixo/ um samba que não me chama/ pois não conhece o meu nome”) e o avesso dos tantos homônimos, “Mulher de malandro”. Trata-se de um samba de breque diversificado, com direito a citação do lendário escritor pornógrafo, conhecido por não honrar compromissos: “vai dizer que não pode ser verdade/ os dois, marido e mulher, vivendo na maior malandragem/ não são zen, não são budistas/ não tem trabalho à vista (...) um ao outro se perguntam/ esse tal de Henry Miller que tipo de sujeito será?”.  

Esgrimindo com o inaudito, insólito, inesperado, nas esquinas de seus versos, a poeta encontra no músico um ourives dedicado, apto a extrair tanto mel quanto fel de suas imagens pontiagudas, como na finalista “Ringues polifônicos”: “entre Dumbo nas alturas e o cuspe na calçada/ alça vôo a aventura na Avenida Angélica”.


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