Conversa de MPB

Uma viagem - nada hermética - na Tábua de Esmeralda de Jorge Ben

quinta, 25 de fevereiro de 2021

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Falar de Jorge Ben (seja antes ou depois da inclusão do Jor no seu nome) é sem dúvida pensar sobre um verdadeiro alquimista da música brasileira pela fusão de estilos que ele sempre fez, seja nas misturas do samba-rock, reggae, rock, soul, funk, ijexá... Além de sua característica de se reinventar no decorrer de toda sua carreira, a capacidade, ou diria mesmo a necessidade de misturar elementos, é marca fundamental revelada em sua vasta produção musical. Comumente ele é relacionado a uma das características mais marcantes de toda a sua carreira, a forma de tocar o violão e a guitarra de maneira extremamente ritmada e dançante, o que considero verdade, mas apenas parte da importância do compositor para a música brasileira. 

A conversa de hoje é sobre o místico, misterioso, mitológico, enigmático, hermético e – para muitos apenas - dançante "A Tábua de Esmeralda" lançado no ano de 1974 e que, juntamente com "Solta o Pavão" de 1975 e "África Brasil" de 1976, segue um caminho que outros compositores como Elba Ramalho e os polêmicos seres ultrassupraluminosos, Raul Seixas e a Sociedade Alternativa, Zé Ramalho e Lula Côrtes envoltos na aura mítica de Paêbirú e Tim Maia na reiterada busca pelo Mundo Racional também tomaram na década de 70, ou seja, temas místicos, míticos, esotéricos e que para muitos soava e ainda soa como estranhos. "A Tábua de Esmeralda" é o décimo primeiro álbum de estúdio da carreira prolífica iniciada em 1963 com "Samba Esquema Novo".

Jorge Ben nos anos 70 (Foto: Reprodução) 

Já ouvi de pessoas que conhecem o disco que ele é uma verdadeira viagem, um portal para outra dimensão, um grande mistério. Eu concordo com todas essas percepções, e digo que para mim ele é uma experimentação, não daquilo que ainda está por vir, mas partindo das possibilidades que temos de pensar sobre ele e o interpretar. Jorge Ben começa suas relações com a alquimia desde o período de quase três anos, que vivenciou em um convento no Rio de Janeiro. Leitor assíduo desde muito cedo, ao aprofundar-se nos textos de São Tomás de Aquino (1225-1274) no seminário, passa a entendê-lo não apenas como um marco representante da Filosofia Teológica Medieval, mas como um representante da alquimia. Desde então, outros autores da alquimia passaram a ser sua fonte de leitura e uma verdadeira busca de entendimento. É esse contexto alquímico que está espalhado por todo "A Tábua de Esmeralda" que, como diz Jorge Ben, é ao mesmo tempo medieval e renascentista, antigo e moderno, e nesse mesmo contexto é que convido você para conversar e pensar em várias letras e características do disco, praticamente todo remetendo ao tema central da alquimia.

Sem dúvida, a música “Os Alquimistas Estão Chegando” - a primeira faixa - é a mais conhecida do disco e uma das mais famosas de toda carreira do cantor, uma das suas marcas. Nela, podemos perceber uma clara descrição das atividades dos alquimistas, eles “Escolhem com carinho a hora e o tempo. Do seu precioso trabalho, são pacientes, assíduos e perseverantes. Executam segundo as regras herméticas. Desde a trituração, a fixação. A destilação e a coagulação. Trazem consigo cadinhos. Vasos de vidro, potes de louça. Todos bem e iluminados”. Não é um retrato perfeito de um alquimista em seu trabalho? 

Além dos estilos, os temas são alquimicamente fundidos no disco. A malícia, os olhos azuis, o sorriso branco, o corpo de uma “Menina mulher da pele preta” uma música marcada pelo swing e pela levada fortemente ritmada do violão de Jorge Ben. Até mesmo a linda “Magnólia”, ele a espera, segundo os astros, na primavera. Como ela vem? De vestido branco “Voando numa nave maternal doirada. Muito veloz feita de um metal miraculoso. Com janelas de cristal. E forro de veludo rosa”. Seguindo a levada, é impressionante a mistura que dá certo quando Jorge diz que “Eu vou torcer” uma torcida fervorosa pela paz, pelo amor, pelo irmão, pelo verde lindo do mar, e ao mesmo tempo pelo Gato Barbieri (saxofonista argentino), Santo Tomás de Aquino pela influência e relação com a alquimia, pelo Mengão, pelas moças e dondocas bonitas e pela agricultura celeste (de Paracelso) todos no meio balaio de gatos. Só Jorge Ben mesmo... 

O mesmo Paracelso (1493-1541), um dos alquimistas mais importantes do século XV-XVI, e um dos idealizadores da homeopatia, surge como referência em “O homem da gravata florida”, quando Jorge Ben fala da harmonia, da combinação de cores, de flores e de um “jardim suspenso” pendurado no pescoço. Paracelso era conhecido por usar uma echarpe colorida e por ser considerado pela medicina oficial como um mago, bruxo, um charlatão. Pelo uso da alquimia, vivia ao mesmo tempo fugindo e sendo requisitado para a cura daqueles desenganados pelos curadores oficiais. A letra, além da referência à gravata-echarpe, nos remete à ideia da Agricultura Celeste e a necessidade de ligar/relacionar o que é plantado à sua interação cósmica, pois é segundo a perspectiva deste autor que as plantas curam, pelas suas relações cósmicas. Ou seja, as plantas só crescem, dão flores e frutos no tempo certo, ditado pelo cosmo. Com aquela gravata, qualquer homem feio vira príncipe, e repetidamente diz SIMPÁTICO, SIMPÁTICO, SIMPÁTICO, claramente guardando uma relação direta com a chamada Doutrina Simpática de Paracelso na explicação das doenças e das relações cósmicas de atração de todos os seres.

Paracelso (Foto: Reprodução) 

Além das referências diretas ao tema central do disco, é difícil marcar apenas uma música como o ponto alto do disco. E algumas músicas, um dos pontos altos é “Zumbi”, uma letra de fundo histórico impactante que mostra de maneira muito forte a realidade da escravidão no Brasil. Jorge Ben traz à tona uma relação de etnias que foram brutal e dramaticamente trazidas da África “Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa, Rebolo”. A realidade dessas etnias na África é destruída com a escravidão executada pelos europeus e, inclusive, fizeram com que princesas fossem leiloadas, “Há um grande leilão. Dizem que nele há uma princesa à venda. Que veio junto com seus súditos. Acorrentados em carros de bois”. E a imagem cinematográfica se complementa “Dum lado cana de açúcar. Do outro lado o cafezal. Ao centro senhores sentados. Vendo a colheita do algodão branco. Sendo colhidos por mãos negras”. Zumbi ganha aqui a força de um herói, ele vai chegar, ele é senhor das demandas, numa perspectiva ampla, cósmica, celestial, transcendental.

Diferente às outras músicas do disco, “Errare humanum est” é uma levada onde a batida ritmada é substituída por um arranjo de cordas belíssimo e que conversa com o lá lá lá lá das backing vocals, criando um panorama, uma ambiência psicodélica marcada pela voz forte de Jorge Ben. A frase do título, de forma completa seria “Errare humanum est. Perseverare autem diabolicum”; é um axioma filosófico muito conhecido e uma influência, dessa vez, de Santo Agostinho, e significa “Errar é Humano, permanecer no erro é diabólico”. Na utilização de Jorge Ben parece fazer uma relação com a visão que o ser humano tem no mundo, ciência, filosofia. Diria que a partir da frase ele busca demonstrar que não assumimos, a partir da perspectiva científica, que temos uma “herança cósmica”. Isso tudo foi desprezado e até mesmo esquecido a partir da ciência pela perspectiva cartesiana. Você já parou para pensar sobre isso? Jorge Ben, pelo jeito, pensava o tempo todo: “Tem uns dias que eu acordo. Pensando e querendo saber. De onde vem o nosso impulso. De sondar o espaço”. A letra faz menção direta ao famoso livro “Eram os Deuses Astronautas”, de Erich von Däniken, lançado no Brasil em 1968, que cogitava – a partir de provas como as pirâmides do Egito, os Moais de Páscoa e as linhas de Nazca - a possibilidade de nossa existência advir de “seres de outras galáxias” como tem na letra também. 

Mas as referências diretas à alquimia voltam com toda a força na parte final do disco. Em “O Namorado da Viúva”, o samba-rock dá o tom e a sensação, aos mais desavisados, de uma música de conteúdo jocoso, satirizando o namorado da viúva que soubera que as apostas sobre sua coragem e o fato de ele “não dar conta do recado” por puro medo. O Namorado da Viúva é uma menção direta a Nicolas Flamel (1330-1418), um escrivão francês que só conseguiu dedicar-se à alquimia e à busca da Pedra Filosofal (lembram do Harry Potter?) depois de casar-se com uma viúva muito suspeita. A história conta que Pernelle Flamel (1320-1397) havia sido casada e enviuvara já duas vezes, o que assustava qualquer pretendente, apesar de todos os dotes: “Que viúva é essa. Que todos querem, mas têm medo. Têm receio de ser dono dela. Dizem que ela tem um dote. Físico e financeiro invejável”. Flamel teve coragem e tornou-se não só o namorado da viúva como um dos ícones da alquimia. Inclusive, a capa do disco está entre as figuras mais importantes da iconografia hieroglífica de Flamel, e revelaria os segredos da alquimia, cabala, da transmutação e da própria pedra filosofal. 

Capa do álbum "A Tábua de Esmeralda" (Foto: Reprodução) 

Terminando nossa viagem nas letras “Hermes Trismegisto e a sua celeste Tábua de Esmeralda”, praticamente o nome do disco, revela de maneira clara os princípios contidos no texto Tábua de Esmeralda e que teria como autor Hermes Trismegisto (entre 1.500 e 2.500 a.C), pai fundador da alquimia e que tem características de uma deidade que une a tradição grega e egípcia. De Hermes surge o termo filosofia hermética e Trismegisto significa aquele que é três vezes grande. Todos os 15 fundamentos ou princípios do Hermetismo como constantes da Tábua de Esmeralda estão lá. Inclusive, a frase que consta da capa “É verdade sem mentira, certo muito verdadeiro” é o primeiro princípio dessa filosofia que buscava entender o universo. Dentre outros, é interessante destacar “O sol é seu pai, a lua é sua mãe. O vento trouxe em seu ventre, a terra é sua nutriz e receptáculo” e “O pai de tudo, Telemeu. Do mundo universal está aqui”, ou seja, de onde tudo advém, todo o segredo do universo estaria nas 15 leis expostas.

Hermes Trismegisto (Foto: Reprodução) 

Desde "Samba Esquema Novo" (1963), apesar de sempre buscar associar a sua música à música pop, já mostrava para o que veio. Sua “batida diferente” não o levaria a “sofisticar” e suavizar a batida do samba como muitos queriam, mas sim para swingar, para balançar não só o corpo, mas também a mente de muita gente. Mesmo que sua pegada não fosse da intelectualidade, as músicas de Jorge Ben nos mostram como é possível, diria necessário muitas vezes, aprofundarmos em temas tão importantes da nossa existência, do universo, nossas indagações sobre o mundo, nossa existência, nossas origens e a nossa história, sem deixar de sermos populares, sem deixar de estar próximo de muitos e não de poucos. Não sei se o objetivo de Jorge Ben era possibilitar nossa conexão a uma filosofia, como o nome mesmo diz, hermética, de qualquer forma, adentrar na diversidade e possibilidade de entendimento do disco, por si só já é uma viagem filosófica. Questionar o que as letras querem dizer, a ordem das músicas, aonde ele queria chegar, tudo isso é, de certa forma, filosofia. Mesmo sabendo que “Errare humanum est”.

Leonardo Malcher 

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