Na Ponta do Disco

Uma Tarde com Índio da Cuíca

Por Tiago Bosi

quinta, 23 de março de 2023

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Ao entrar na casa onde mora Índio da Cuíca em uma rua arborizada da comunidade de Parada de Lucas, Zona Norte no Rio, um cachorro me espera rosnando baixo e com olhar apreensivo.

- "Ele está só guardando o lar".

Quem fala é Shirley Oliveira companheira há décadas do famoso cuiqueiro ao abrir a porta para mim.


Índio aparece logo atrás da companheira – como é de praxe, seu traje é impecável: terno e calças brancas e seu sapato bicolor inconfundível. Quase como uma senha dada para um clube secreto ou para um barqueiro do submundo faço meu cumprimento ensaiado ao artista:

- “Stribinaite Camufraite Ouraite”.

- “Stribinaite, meu amigo!”, responde Índio, prontamente.

O rosnar apreensivo do cachorro cessa.

A frase meio que onomatopeica vem de corruptelas de termos do inglês. Algo entre as palavras “night” “Come on” e “all right”, mas a frase em si não tem significado algum mesmo ao buscarmos algum paralelo no inglês. Ou melhor dizendo, tem todo sentido do mundo para o artista que estou prestes a entrevistar.

Índio trabalhou por anos entre as décadas de 1960 e 1970 em shows na Suiça, Alemanha, Austrália, EUA e outras dezenas de países (chegando a morar 6 anos no país alpino). Também trabalhou em um cruzeiro (o Costa Eugenio) com uma companhia de um tal de Roberto com dezenas de artistas do mundo todo. Ao redor do globo era conhecido como “a orquestra de um homem só” ou simplesmente como o portador da “cuíca encantada”. Índio e Shirley, que aprendeu a cantar e ser dançarina para as turnês, levavam adiante algo de brasileiro em terras longínquas. Nas turnês, Índio e Shirley, faziam de tudo um pouco. A cuíca afinada no sistema modal do artista permitia que ele tocasse nossos standards da bossa nova como “Garota de Ipanema” e “Samba de Uma Nota Só”, além de “Brasileirinho”, “Cidade Maravilhosa” e outras melodias clássicas. Índio me conta que as vezes tinha pouco mais de três minutos para executar um tema dentro do tempo concorrido dos shows: “Stribinaite Ouraite!”, era o mote introdutório dos shows e a marca registrada do artista. Nesse tempo ínfimo, Índio se virava: cantava, sambava um miudinho e ainda tocava extraordinariamente sua cuíca. E, de quebra, tirava notas e melodias de seu instrumento encantado.

Sentados em uma antessala cheia de instrumentos ajusto meu gravador enquanto Índio me mostra seu afinador alemão comprado nos anos 1980:

- “Ainda funciona perfeitamente”, diz ele e toca um “Lá” no violão para ver se o afinador “aprova” a afinação. E vai contando:

- “Os gringos, sabe, não sabiam de onde estava vindo o som da cuíca. Achavam que era outro instrumento. E quando eu mostrava a cuíca e tocava eles queriam olhar dentro do instrumento para ver como o som era produzido. Um dia um diretor da Rede Globo ouviu minha cuíca de longe e disse ‘quem está tocando essa flauta maravilhosa?’”.


Índio ainda revela que foi em um desses programas da Rede Globo em que eles traziam uma banda de acompanhamento que Índio acabou ganhando destaque e virando primeiro cuiqueiro das apresentações na TV. Dali em diante no tempo que não estava viajando e quando as “turnês do suiço” acabaram, o artista continuou na ativa junto anomes como Jair Rodrigues e Dicró em shows e turnês e Alcione como músico de estúdio, e revela:

- “Se eu não me engano minha cuíca também está em algum disco do Roberto Carlos da década de 1970”.

Depois de décadas trabalhando como músico profissional e de estúdio, Índio da Cuica, no início dos anos 2000 começa a dar voz a um desejo antigo: gravar um álbum solo.

O artista já tinha participação em uma gravação de 1972, o LP “Balança Povo” (Som Livre) do grupo Corda K Samba, mas dar vazão a sua produção solo nunca tinha ocorrido em 50 anos de carreira. Foi assim, por meio de Paulinho Bicolor, cuiqueiro e sambista, que o sonho começa a virar realidade.

Índio revela ao longo da entrevista as dificuldades do artista de estúdio ter um reconhecimento no país como produtor de uma obra e sempre acabar associado apenas ao virtuosismo do instrumento. Índio é sem dúvidas um showman, mas revelou-se também um letrista e compositor fora de série. Assim foram surgindo as canções do álbum “Malandro 5 Estrelas” (2021: Selo QTV). A presença de Gabriel de Aquino na direção musical do álbum, junto a Paulinho Bicolor, foi dando forma aos arranjos das composições que Índio da Cuica já tinha prontas ou no prelo.

Tudo no álbum de estreia de Índio, dos ritmos, as melodias e timbres, é incomum e maravilhoso. Sua voz passeia num timbre próprio e nos convida a entrar em um novo mundo de sua música encantada. No álbum o (multi)artista toca cuíca, pandeiro, cavaquinho, reco-reco, violão e berimbau. Quando sua “cuíca chora” em canções como “Baile do Bambu”, (a estupenda) “Medley de Ogum”, “Strinbinaite Camufraite Ouraite”, “Melódica”, “Cuíca Malandra” e, claro, “A Cuíca Chora”, vemos a genialidade do artista que interpreta há cinquenta anos o mesmo instrumento – e quando ganho uma palhinha ao vivo não me surpreende mais em nada o desejo dos “gringos” em olhar dentro do instrumento para ver de onde vem o som que o artista produz tão espontaneamente. Sem precisar olhar para a haste flexível dentro da membrana de fricção induzo algo que naquele momento me parece uma obviedade: “o som vem do próprio Índio” – ou a simples conclusão de ver um artista que se fundiu ao seu instrumento.

Pergunto então como foi seu primeiro show, que ocorreu esse ano, e as dificuldades para os artistas em especial os que lançaram trabalhos nas plataformas em plena pandemia. Índio muda de semblante de imediato e entre sorrisos e gracejos não consegue encontrar as palavras:

- “Shirley! Vem aqui um instante amor. Meu amor, como foi o meu primeiro show como repertório novo?”

A companheira entra e discreta decreta:

- "Ah, foi maravilhoso!"

Eles então explicam longamente a magia da noite do primeiro show pós-álbum que ocorreu em Copacabana, mas em minha mente já está mais que evidente que Índio foi feito para os palcos e é um showman e malandro nato.

O artista então troca a cuíca pelo violão e mirando sua companheira há 37 anos começa a dedilhar a composição que gravou em homenagem a ela no álbum: “Seus olhos são lindos; Como as estrelas; o seu amor me faz feliz; respirando o ar da natureza sinto Deus atuando em mim”.


Enquanto dou um gole na limonada bem gelada que me ofereceram meus olhos marejam.

Voltamos a entrevista e pergunto se ele sempre teve essa personalidade de showman, extrovertida e pronta para o palco. Ele revela que não, que na realidade era bastante tímido e introspectivo na infância e adolescência na região do Borel no bairro da Tijuca. E me conta que seu pai, Seu Manuel, foi um dos fundadores da Unidos da Tijuca e que cresceu e aprendeu cuíca na Escola de Samba, mas por um desentendimento em relação a uma premiação saiu da Escola e foi trilhar outros caminhos. Ele me revela também que a necessidade de ganhar a vida como artista foram fazendo ele vencer a timidez por meio da cuíca:

- “A cuíca me ensinou a falar”.

“Não...”, penso. “A sua cuíca veio para reencantar o mundo”.


Meu agradecimento à Mariana Mansur e à Bernardo Oliveira, tanto pela importância na produção do álbum, como por fazerem possível essa tarde com Índio acontecer.



Tiago Bosi Concagh é historiador, professor e produtor cultural. Mestre em História Social pela USP e bacharel em produção cultural pela FAAP.  Idealizador do canal Na Ponta do Disco e do III Encontro de Música Brasileira: Sons da Diáspora.


Fotos de Alfredo Alves

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