Música

Torquato Neto: O trágico tropicalista

segunda, 15 de abril de 2019

Compartilhar:

“Eu sou o que sou, pronome pessoal e intransferível/ Do homem que iniciei na medida do impossível.”

Musicados por Gilberto Gil, esses versos de um dos mais desesperados poetas do Tropicalismo dão a dimensão do valor de Torquato Neto – um dos nomes mais importantes do movimento musical que em 1968 desfolhou bandeiras, domingou nos parques e nas geleias gerais e reabriu todas as cortinas do passado. Com suas letras cheias de metáforas, estilos, sustos, balas ou vícios, Torquato esteve em todos os primeiros e determinantes instantes ao lado de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Capinam, Tom Zé, Rogério Duarte, Rogério Duprat e todos aqueles cabeludos geniais.

“Adeus, vou pra não voltar/E aonde quer eu vá, sei que vou sozinho.” Trágico e atormentado, Torquato Neto chegou tarde da noite ao apartamento onde morava no Rio de Janeiro, no dia 10 de novembro de 1972. O poeta acabara de retornar da festa onde comemorava, com amigos, seus 28 anos de idade. Abriu o gás e se matou.

Torquato Pereira de Araújo Neto saiu de Teresina, onde nasceu em 1944, e viajou quatro dias de ônibus, até desembarcar cheio de letras (para Gil, para Caetano, para Macalé, para Edu Lobo, para Carlos Pinto) e de sonhos no Rio de Janeiro. “Peguei o trem em Teresina, pra São Luís do Maranhão/Atravessei o Parnaíba, ai, ai, que dor no coração.” Essa é de João do Vale, e quem cantou pro país inteiro foi Luiz Gonzaga. A de Caetano, também inspirada na cidade do poeta, é a coisa mais linda do mundo, e foi feita exatamente para o trágico, tropicalista, atormentado e suicida: “Existirmos, a que será que se destina?/Pois quando tu me deste a rosa pequenina/Vi que era um homem lindo e que se acaso a sina/Do menino infeliz não se nos ilumina...”. Com ela, Caetano presenteou o pai de Torquato, o promotor público Heli Nunes.

Em coluna jornalística no extinto diário Última Hora, que deu muito o que falar, no final da década de 1960, Torquato escreveu sobre tudo e sobre todos da música, do teatro e da literatura (da poesia, quase sempre). A coluna chamava-se Geléia Geral, título que depois ele deu também a uma de suas letras, das mais belas, musicada por Gilberto Gil: “O poeta desfolha a bandeira/E a manhã tropical se inicia.” É de Gil também a melodia para Louvação.

A depressão foi a companheira e parceira mais constante de Torquato Neto. Então tomava rios de vodca, mares de cerveja, compunha sem parar e se trancava em casa por enormes períodos. Foi várias vezes internado no sanatório do Engenho de Dentro (de passado e tradição, pois por lá um dia ficaram Ernesto Nazareth e Lima Barreto), experiência utilizada na construção de poemas mais tarde reunidos no livro póstumo Últimos dias de paupéria. Ali está um poeminha que diz assim: “Quando eu nasci um anjo torto veio ler a minha mão/Não era um anjo barroco/Era um anjo muito louco com asas de avião.”

O anjo do Tropicalismo levantou voo muito cedo, é verdade. Mas Castro Alves também, Noel Rosa também, Sérgio Sampaio também. Valeu, enquanto deu.


Texto extraído do livro "Com esses eu vou - De A a Z, crônicas e perfis da MPB", de Luís Pimentel.

Referência: Pimentel, Luís, 1953 - Com esses eu vou: de A a Z, crônicas e perfis da MPB / Luís Pimentel
Ilustrações Amorim. - Rio de Janeiro: Zit, 2006.

Comentários

Divulgue seu lançamento