Almanaque do Rock Brasileiro

Titãs: com os dentes mais afiados do que nunca

terça, 24 de maio de 2022

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Não estamos aqui para realizar nenhum estudo de economia, mas em 1987 a situação no Brasil era crítica, muito mais do que hoje em dia, só quem viveu sabe. Naquele tempo, as pessoas não tinham o que comer, as pessoas não tinham acesso à saúde (o SUS só entrou em vigor a partir de 1988), os ecos da ditadura ainda soavam bem alto, a AIDS era um fantasma da geração, e assim viviam os brasileiros nos anos 80.

No meio disso tudo vale perguntar: o que é preciso para viver? Não estamos falando de sobreviver, mas sim viver. Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas traz todas as necessidades e a reflexão daquilo que é básico para sobreviver e aquilo que os brasileiros viviam.

O ano de 1987 era fundamental para os Titãs. 1 ano antes, o disco “Cabeça Dinossauro” alavancou a carreira do grupo, levando-os a outro patamar, um grande disco, um grande sucesso. Agora era hora de voltar e se afirmar como grande filão do Rock Brasil e mostrar os dentes foi a solução mais plausível.

Uma continuação melhorada, um discurso mais maduro de tudo que antes era dito e de tudo o que poderia se dizer neste momento de quase fim da ditadura. É um privilégio ter a política tão presente na vida das pessoas e ver todos cantando na mesma voz, com diferentes pontos de vista, mas o mesmo ideal.


Prólogo

Esse é o mês do Rock aqui no IMMUB e nesta resenha vou entrar no clima então não esperem mais do mesmo ou algo convencional. Para começa esse álbum, é preciso lembrar, mesmo que vagamente, o trabalho anterior, “Cabeça Dinossauro”, e tenha a mente aberta de entender que esse é um álbum POP.

Liminha é um conceituado produtor, em sua carreira nunca correu sérios riscos, pense nos trabalhos de Rita Lee, Lulu Santos e tantos outros. O próprio Titãs era um verdadeiro vulcão, oito cabeças completamente diferentes, que formavam um produto magnífico. Portanto, “Cabeça Dinossauro” é um disco de muitos estilos e para várias tribos, bons exemplos são “Homem Primata”, um ska The Clash; "Família", um reggae; e “O que”, um funk como era produzido naquele tempo.Outra canção que vale destaque é a própria “AA UU”, uma canção bem Queen, no sentido de que é bastante acessível e fácil para todos cantar como “We will rock you” (Longe de mim dizer que é uma cópia que fique bem claro).

É claro que o grande destaque deste disco são as músicas pesadas como “Polícia”, “Bichos escrotos”, “Porrada” e a faixa título “Cabeça Dinossauro”, o que nos mostra que o público queria e esperava muito Rock, mas ainda era preciso de um certo toque de “POP Radiofônico” para o caso de se as coisas não dessem certo. O álbum foi muito bem sucedido, alcançando Disco de Ouro (Certificado de 100 mil cópias vendidas), o que significou que o próximo disco deveria seguir essa linha e de fato foi o que aconteceu.

“Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, consegue ser mais pesado, soturno e roqueiro, afirmando toda a rebeldia mainstream brasileira naquele tempo. E com uma pegada POP, encoberta por uma mensagem forte e necessária.


O país dos Banguelas

Segundo Nando Reis “Jesus não tem dentes no país dos banguelas”, surgiu de uma frase de sua esposa que dizia “Esse é o país dos banguelas”, e Jesus não teria dentes no país dos banguelas, pois ele era a representação de seu povo.

Voltando ao disco, basicamente possui um lado POP e outro lado Rock, que na versão de LP fica bem claro, mas com o advento do CD e no Streaming não fica muito evidente.

Logo de cara o ouvinte se depara com um sampler que, explicando de uma forma bem simples, seriam sons armazenados em um equipamento, podendo ser máquinas ou teclados. Em 1987, o recurso ainda era bem democrático, depois passaria a ser mais utilizado no funk, rap e música eletrônica. Mas nessa época Soft Cell e Kraftwerk, já havia feito muito sucesso com o recurso e de certa forma aberto as portas. Pet Shop Boys e Depeche Mode naquele tempo também bebiam naquela fonte. Então, nada mais natural do que de uma forma bem titânica, o polvo paulista também fazer bom uso do recurso. E o sample foi algo bastante presente neste disco, ao menos em sua primeira parte.

Todo álbum deve ser ouvido do início ao fim, mas existem casos mais específicos como esse que valem mais a pena ainda.

No seu canal no YouTube, Nando Reis comentou gostar deste álbum e o achar mais “Bem resolvido”, que o trabalho anterior. De fato, aqui tudo era muito rock, a atmosfera sombria e soturna do disco, se faziam presentes em todas as faixas. E ainda acrescento que foi um álbum muito inteligente e coeso, as músicas de trabalho foram todas bem escolhidas.

Começando por “Comida”, que é algo bem típico dos Titãs, algo improvável de ser sucesso, mas que é um grande sucesso até os dias de hoje. Com muita razão, Arnaldo Antunes é fundamental para essa primeira fase, por essas e outras contribuições, seja com seu vocal inconfundível ou por sua composição peculiar. Outra grande escolha fica por conta de “Diversão”, interpretada por Paulo Miklos, em um tempo que era tão comum mixagens e versões de canções por DJs, essa aqui é um prato feito até os dias de hoje.

Essa primeira parte do disco era bem mais POP, talvez por um pedido da gravadora, por uma questão de se certificar, para que nada desse errado. Mas por incrível que pareça, o lado Rock deu tão certo ou até mais do que o lado POP, isso porque “Desordem” e “Lugar Nenhum” são grandes sucessos até hoje, e a faixa título “Jesus não tem dentes no país dos banguelas” e “Nome aos bois”, são muito queridas pelos fãs e pela banda.

Esse sim é um disco que soa pesado em temas e em clima, afinal, não existem muitos momentos de descontração neste disco e aqui, sim, a banda pode se afirmar como uma banda de rock. Apesar de boas escolhas para os singles e voltando aos samples, o começo com “Todo mundo quer amor/Comida/O inimigo” é uma prova que esse disco forma um conjunto, definitivamente esse não é apenas um álbum de canções.

Entretanto, o único problema que vejo são os excessos de vinhetas. Apenas na primeira parte são três, mas esse é um álbum conceitual, então elas fazem parte do que deveria ser dito. Acima de tudo é um disco de Rock, os Titãs que abandonavam a fase “Televisão”, "Sonífera Ilha”, agora tudo era cinza e pesado.


Go Back

Esse álbum é um retrato de tudo o que digo, tudo cinza, pesado e frio como as noites suíças de Montreux.

Os Titãs foram escalados para o Festival de Montreux, a exemplo dos Paralamas do Sucesso no ano anterior - já que esse disco está entrando como um bônus, não comentarei da série de desventuras e trapalhadas relatadas por Nando Reis durante a gravação, mas quem quiser pode conferir em seu canal no YouTube.

Ao mesmo tempo que encerra um ciclo, este disco apresenta os Titãs muito Rock ao público que abrem os shows com “Jesus não tem dentes no país dos banguelas” e encerra com “Nenhum Lugar”.

Pouca gente sabe disso, mas foi neste disco que as músicas “Marvin” e “Go Back”, passaram a serem conhecidas, agora em uma nova versão, inclusive, ganhando um clipe. Talvez fosse uma pendência com um passado mal resolvido.

O repertório é algo maravilhoso, o disco em si vale muito a pena como forma de se entender o que os Titãs viriam a ser daqui por diante.

Aqui temos um registro muito fiel da banda em seu momento mais primoroso e com muita lenha para queimar.


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