Colunista Convidado

Simone Mazzer e Grupo Semente revisitam Nelson Cavaquinho

segunda, 20 de abril de 2020

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 Um encontro inesperado: a exuberante cantriz Simone Mazzer, associada ao rock/funk (“Férias em videotape”, 2015, “Simone Mazzer & Cotonete’, 2017), e a desempenhos incisivos como no filme “O coração da loucura”, de Roberto Berliner,.sobre a psicanalista Dra. Nise da Silveira, e o castiço grupo Semente, da nata do samba da Lapa. A reunião inaudita dá liga, em torno de uma parcela da obra do fabuloso sambista carioca Nelson Antonio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1911-1986). Tudo a ver. O bardo dos cabarés, além de chafurdar nas noitadas boêmias intermináveis, teve uma trajetória que poderia ser considerada punk/rock niilista. Desapegado aos bens materiais, cantava de graça para quem quisesse ouvir. Às vezes, em troca de dormida ou alimentação, vendia parcerias de seus preciosos sambas, cuja atmosfera relampejava entre o sombrio e o sarcástico, com alguns esgares de humor.

Como na faixa de abertura, “Nome sagrado” (parceria com José Alcides e José Ribeiro Souza), numa levada rápida, cadenciada, do coeso Semente, em que Simone esparge o álacre fel do poeta: “A cobra não morde uma mulher gestante/ porque respeita o seu estado interessante”. Na dupla de embalos sincopados “Rei vagabundo” e “Dona Carola”, a melancolia da primeira (“todos tem o direito de sorrir neste mundo/ só eu choro porque/ sou um rei vagabundo”) desata em galhofa na segunda: “se não fosse Dona Augusta e Dona Carola/ eu saía do hospital de camisola”. A ideia inicial era homenagear Nelson num show e o Semente convocou  Simone “por ter o peso dramático necessário” para interpretar suas canções.

Aos 22 anos de carreira, tendo tocado com Paulinho da Viola, Dona Ivone Lara, Marisa Monte, Monarco e Teresa Cristina – projetada em conjunto com o grupo – o Semente é um quinteto afiado. João Callado dedilha o cavaquinho, ao lado de Bernardo Dantas (violão de 7 cordas), ambos autores dos criteriosos arranjos, apoiados pelos percussionistas Bruno Barreto (também vocais), Maninho e Marcos Esguleba, que herdou o posto do pai, o lendário Mestre Trambique, um dos fundadores do grupo, que faleceu em 2016. “Foi um processo de construção, tanto do repertório como dos arranjos. A partir de meados de 2018, nos reunimos várias vezes para escolher as músicas e ensaiar. Depois levamos as canções para os palcos. Quando fomos gravar, foi bem rápido, pois já sabíamos o que queríamos fazer e o trabalho já estava maduro”, explica Callado. Revelação do Prêmio da Música Brasileira de 2016 e indicada melhor cantora pelo álbum de estréia, ao lado de Gal Costa e Elza Soares, Simone demarcou limites próprios através de sua voz potente e desempenho arrebatador.

No disco, soa mais contida em alguns momentos e, em outros, libera o vozeirão, como nos clássicos do desterro amoroso, “Rugas” (com Ary Monteiro e Augusto Garcez) e “Luz negra” (com Amâncio Cardoso) - nesta, emoldurada pelo sax tenor de Eduardo Neves e a cuíca de Esguleba. Em algumas faixas, a cantora dialoga no vocal com o percussionista Bruno Barreto. “Trabalhamos muito para essa dupla funcionar da melhor maneira possível, já que temos timbres muito diferentes”, admitiu ela, em entrevista ao jornal O Globo. O repertório não oferece surpresas apenas em fusões como “Eu e as flores” (com Jair do Cavaquinho) e o megaclássico “A flor e o espinho” (com Guilherme de Brito e Alcides Caminha), dos célebres versos “tire o seu sorriso do caminho/ que eu quero passar com a minha dor”. Ou a saideira celebrante, na verde e rosa “Sempre Mangueira”, com Geraldo Queiroz, (“nossos barracos são castelos/ em nossa imaginação”) e “Vou partir”, com Jair do Cavaquinho, (“não me leve a mal/ hoje é carnaval”), incluindo evocações das localidades do morro.

Notícia” (com Alcides Caminha e Norival Bahia) abre espaço ao Semente para exibir seu protagonismo exclusivamente instrumental. E as menos óbvias, “Enquanto a cidade dorme”, outra com Jair do Cavaquinho (“meu sofrimento é desconforme/ já perdi a esperança/ meu coração pede vingança”),“Duas horas da manhã”, com Ari Monteiro, (“vou subindo o morro sem alegria/ esperando que amanheça o dia”) e principalmente “Dono das calçadas” (com Guilherme de Brito), alargam ainda mais os domínios acre-líricos de Nelson Cavaquinho, trilhados com perspicácia e emoção por Simone e Semente. Destila a letra do boêmio impenitente: “Como é bom a gente socorrer a quem padece/ eu que já vaguei nas madrugadas/ e já fui o dono das calçadas/ pra todos aqueles que me estenderam a mão/ dividi meu coração”.

Confira o álbum "Grupo Semente e Simone Mazzer cantam e tocam Nelson Cavaquinho" no IMMuB! (clique aqui!)

Tárik de Souza


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