Na Ponta do Disco

Sérgio Ricardo, 'um Sr. Talento': ontem, hoje e sempre

Por Tiago Bosi

sábado, 26 de dezembro de 2020

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Há quatro meses, no dia 26 de agosto, perdíamos João Lufti, nome de batismo de Sérgio Ricardo, aos 88 anos. Talvez para muitos que conheçam apenas os fatos mais memoráveis  da Música Popular Brasileira, este seja apenas um nome associado à fatídica noite da quebra do violão pelo artista no III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record – no entanto, Sérgio Ricardo foi um cantautor imenso (talvez imensurável), que definitivamente não se resume “a noite do violão” e ao arranjo à época considerado por críticos difícil e experimental, de um choro carregado de paronomásias - diga-se “Beto bom de bola”. E ainda por cima em um festival tenso chamado de “Festivaia” por muitos (termo cunhado originalmente por Augusto de Campos). Seja por quatro meses ou quarenta anos, muita justiça é devida a um dos maiores artistas brasileiros do séc. XX.

Foto: Reprodução/Facebook 

No álbum de Sérgio Ricardo “Arrebentação” (Equipe, 1971), um trecho de uma carta do grande filólogo Antônio Houaiss ao músico é reproduzido. Nela Houaiss escreve,

“(..) esse pan-brasileiro [Sérgio Ricardo], devotadamente brasileiro, que tem melodias e harmonias e cadências e timbres seus-nossos, expressões doces e másculas, sofridas e esperançosas, magoadas e aurorais, amorosas e tristes, de nossa sensibilidade coletiva”.

A carta de Houaiss parece que atravessou o tempo e ecoou de forma absolutamente genuína e potente no filme “Bacurau” (2019) de Kleber Mendonça Filho. No filme, na fatídica cena do enterro da matriarca do vilarejo, Dona Carmelita, ouvimos “Bichos da Noite”, composição de Sérgio Ricardo presente no álbum “A Grande Música de Sérgio Ricardo” (Philips, 1967) – originalmente composta para a peça musical do mesmo ano “O Coronel de Macambira”, de Joaquim Cardozo e Amir Haddad.



Na película recente do diretor pernambucano, a matriarca falecida é carregada em um caixão pela população com o violeiro cego à frente representando a morte. A canção de Sérgio Ricardo não poderia ser mais propícia como pano de fundo da cena. Além de citar o pássaro Bacurau, cuja fêmea anda para trás pra proteger os filhotes de predadores (levando assim seus perseguidores a irem na direção contraria, assim como faz o curupira), a canção também fala de outros tantos mitos e lendas caboclas e ribeirinhas que se presentificam na narrativa fílmica de forma alegórica na obra de Mendonça Filho. Dessa forma, se faz presente a tradição popular tão rica daquilo que se convencionou chamar pelo viés de Guimarães Rosa de um “Brasil Profundo”.

Cena do filme "Bacurau" (Reprodução) 

Essa é a força de Sérgio Ricardo ao qual Houaiss se referia utilizando a expressão  “devotadamente brasileiro”. E não é à toa que o artista participou da composição da trilha sonora de outros dois filmes que, assim como “Bacurau”, já nasceriam clássicos do cinema nacional, diga-se: “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), ambos do genial Glauber Rocha.  

Estar na trilha sonora de filmes canônicos da história do cinema brasileiro desde 1960 definitivamente não é algo simples ou ordinário. Revela de forma irrefutável a densidade criativa do artista, mas também sua capacidade de pesquisa e mergulho no material popular, nos moldes em que Mário de Andrade foi pioneiro e nos deixou como seu legado modernista de “turista aprendiz”.

Sérgio Ricardo foi um artista que teve uma capacidade inacreditável de construir diálogos e redimensionar a relação entre erudito e popular em nosso país. Seu piano carregava Debussy e Villa-Lobos, mas como músico podia também ser um feirante cantando um pregão, um sambista cantando "Zelão" ou simplesmente reproduzir perfeitamente o minimalismo estético de um bossanovista. E, assim como Mario de Andrade, sua obra era imbuída de uma missão. Tal missão era uma missão em busca via cultura popular da nação e do povo brasileiro –  e de uma  perspectiva que entendia a arte por meio de seu potencial emancipatório. 

Foto: Ana Rezende 

Sérgio Ricardo constituiu uma carreira profissional desde meados da primeira metade da década de 1950 como pianista de boates famosas no Rio de Janeiro. Conhecido primeiramente como Mansur (por sua ascendência sírio-libanesa) passou a conviver nas noites cariocas com pianistas como Ed Lincoln,Luiz Eça, Moacyr Peixoto e Newton Mendonça. Com a saída de Tom Jobim como pianista regular da Boate Posto 5, o jovem Mansur é indicado a substitui-lo e passa a ganhar cada vez mais notoriedade ao ocupar o “posto no Posto” de ninguém menos que Jobim. Dali pra frente, o artista vai consolidando sua carreira e passa a lançar discos autorais que até o início da década de 1960 variam entre o sambalanço, o expressionismo melódico, ritmos afro-caribenhos em voga na época, sambas aboleirados e o estilo bossanovistico propriamente dito. 

O grande salto de Sérgio Ricardo ocorre com a composição “Zelão” presente no álbum “Não gosto mais de mim” (Odeon, 1960). 
Ironicamente, a canção foi escolhida para compor o repertório da mítica noite de Bossa Nova no Carnegie Hall em 21 de novembro de 1962.  Apesar de carregar na gravação os elementos centrais harmônicos e melódicos daquilo que se entende por Bossa Nova, a canção opera uma mudança fundante em sua temática. Fugindo assim dos temas de “sorriso, amor e flor”, Sérgio Ricardo faz novamente uma ponte cinematográfica, mas dessa vez com o diretor Nelson Pereira dos Santos. Como que redescobrindo o Rio, a Bossa Nova sai da Zona Sul, pega o trem na Central o Brasil e vai pra Zona Norte carioca retratar o “cidadão precário” do morro.  No filme “Rio, Zona Norte” esse personagem é interpretado por Grande Otelo. Zelão representa tal “cidadão precário” que perdeu tudo numa enxurrada, mas ao invés de uma melancolia  minimalista bossanovista, ele traz o morro como “lugar de memória” de resistência, luta e tristeza crua da vida na favela: “todo mundo entendeu quando Zelão chorou/ Ninguém riu, ninguém brincou e era carnaval”. 



Assim, “Zelão” passou a ser uma canção fundante daquilo que se convencionou chamar na década de 1960 de Música de Protesto ou Música Engajada ou mesmo um marco para o surgimento da segunda geração da Bossa Nova.

Quando Sérgio Ricardo começou a compor cada vez mais por esse viés engajado e a frequentar o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, também passou a conviver diariamente com cineastas, dramaturgos, escritores e estudantes. Porém a consolidação de um campo cultural engajado na música popular só se daria com dois episódios centrais: o primeiro seria a “guinada” de Nara Leão para o movimento e sua aproximação com o samba das “classes populares” – o que geraria críticas acaloradas de gregos e troianos – ; e o segundo seria o lançamento de “Um Sr. Talento” (Elenco, 1963) por Sérgio Ricardo. Essa segunda geração da Bossa Nova seria poucos anos depois o caldo formativo daquilo que até hoje chamamos de MPB.

Capa do álbum "Um Sr. Talento" (Reprodução) 

A importância de “Um Sr. Talento” nesse sentido é a incorporação do “samba urbano” de forma direta e “autêntica” tanto na melodia e ritmo como também nos timbres. Isso se verifica em diversas canções do LP como “A Fábrica”, “Enquanto a tristeza não vem”, “Folha de papel”, “Menino da calça branca” e “Tamborim”. Nessa última, a presença de um tamborim evidenciando o tema da canção parece trivial, porém, à época, timbres percussivos de samba em geral eram substituídos pela bateria do trio de jazz. Tal mudança de incorporação timbrística dentro da Segunda geração da Bossa Nova custou a ocorrer e ainda se limitou a poucos artistas a exemplo de Nara Leão , Sidney Miller e o próprio Sérgio Ricardo

Mas não há apenas sambas no álbum de 1963 de Sérgio Ricardo. Também aparecem outros ritmos com o barravento na canção homônima, terceira faixa do álbum. Aqui o artista traz um dos três toques de atabaque base da diáspora centro africana para o Brasil. Isso era algo completamente diferente da tradição do cancionista brasileiro composta à época e rompia diretamente com as fórmulas estéticas e temáticas tradicionais da Bossa Nova (Dorival Caymmi foi por sinal o grande precursor de tais toques na música popular brasileira gravada). 

O álbum ainda trazia elementos do impressionismo tonal influenciado por Debussy. Faixas do LP como “Só eu sei” ou “Manhã” carregam essa marca que em verdade nunca deixaria de aparecer nos álbuns subsequentes do artista.

“Um Sr. Talento” é um álbum em que Sérgio Ricardo convoca muitos elementos que fazem da sua obra um verdadeiro panteão do que foi a música popular no Brasil do século XX. A obra é uma condensação de décadas de matéria histórica e musical que o artista transforma em canção. 

Sérgio Ricardo vive entre nós pois sintetiza o que foi toda uma experiência da canção no Brasil do século passado, ou, retomando as palavras de Houaiss, o artista foi um “pan-brasileiro” que resumiu nossa “sensibilidade coletiva”.  Caberão aos historiadores e musicólogos do futuro entender a real grandeza de Sérgio Ricardo para o Brasil, pois compreender e conhecer a obra desse “Sr. Talento” é uma tarefa e um deleite para uma vida inteira. 

Por: Tiago Bosi

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