Amigo ao Peito

Sergio Abreu, Violonista e Luthier

terça, 07 de maio de 2019

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Milhares de pessoas (na verdade, duas) me cobram nunca ter escrito aqui sobre o meu biografado, Sergio Abreu; sempre achei que tivesse esgotado o tema com meu singelo livro, mas pelo visto há quem não o tenha lido. Então vou escrever algumas palavrinhas sobre ele, o mais cult dos violonistas brasileiros. Ah, várias pessoas (dessa vez bem mais que duas!) reclamaram que eu digo que vou voltar a um determinado tema e nunca volto. Acalmai-vos! Eu apenas gosto de diversificar! Voltarei a TODOS os temas!

Sergio Abreu nasceu no Rio de Janeiro, em 1948. Neto de músico – de quem ainda falarei aqui, o prof. Rebello – filho de músicos, cresceu numa Copacabana de casas, pouco trânsito, praias limpas. Vocês poderiam esperar que ele tenha tido uma infância jogando futebol pelas avenidas, pegando onda na praia, mas não: nem TV teve (TV teve? Que frase, meu Deus!), a diversão principal era a enorme rádio vitrola, conhecida como Hi Fi. Dirão os menores de 40 anos: o que diabos é isso? Era um móvel retangular, da atura de uma mesa, em que pontificavam um rádio, valvulado, eventualmente de ondas curtas (ou seja: você podia ouvir – mal – estações de outros países), e acoplada ao móvel um toca discos, para vinil e 78 rotações. Seu nome vinha de High Fidelity, Alta Fidelidade. Ali compartilhava com o irmão Eduardo, 1 ano mais novo, as músicas do avô: Bach, Beethoven, Britten, Jacob do Bandolim... Uma coisa eclética mas extremamente sofisticada. Os muito sociáveis irmãos foram ao delírio quando ganharam um toca discos próprio, então podiam se enfurnar no quarto dos fundos e ouvir as próprias seleções musicais.

Passarinho que anda com morcego dorme de cabeça para baixo. Com os irmãos não foi diferente: logo se interessaram pelo violão, instrumento do pai e do avô, e começaram suas aulas. Rapidamente ficou claro que eram de uma categoria diferente. Em pouco tempo o avô resolveu que precisavam de uma tutela mais cuidadosa e entregou-os à supervisão de dona Monina Távora, de quem já falei aqui. 

Começaram uma carreira fabulosa, mas não meteórica: deram UM recital em 1963, UM recital em 1964 (mais um, caseiro, organizado por ninguém menos que Jacob do Bandolim, mas do qual não ficaram registros) e TRÊS em 1965 – na Argentina. A partir dali estouraram, e em pouco tempo eram considerados por muitos o melhor duo do mundo – e formado pelos dois maiores violonistas do mundo!

Em 67 Sergio ganhou o principal concurso de violão, o de Paris (no ano seguinte Eduardo, sem nenhuma vontade de ter participado ficou em segundo lugar). Seguiram tocando juntos até que em 1975 Eduardo desistiu. Sua personalidade introvertida era por demais agredida nesse mundo de flashes e recepções. Deixaram 3 LPs, todos perfeitos.

Sergio seguiu carreira solo e, mais uma vez, virou cult. Lançou um único LP solo, tocando Paganini e Sor. Um clássico imediato, lançou uma luz sobre peças simples de Fernando Sor que até hoje não foi reproduzida. Mas...

Se o irmão era retraído, Sergio era também, apenas uns 10% menos. E a rotina de recitais era, segundo ele, um dos 1475 motivos que o levaram a, em 1981, parar de tocar. Não avisou a ninguém, simplesmente guardou o violão no estojo e voltou para casa. Estava na Hungria, aliás.

Desde durante sua carreira Sergio se interessava por luteria. Usuário de um violão maravilhoso, um Herrmann Hauser de 1930 (pertenceu a Segovia, depois a dona Monina), sempre se interessou em entender como aquilo soava tão bem. Fez plantas, estudou, chegou a fazer alguns testes, até que entendeu que cada luthier tem sua sonoridade, e começou a SUA busca pelo SEU som. Trabalhou na fábrica Giannini numa série especial, onde fez quase 500 instrumentos (ele fazia os tampos, a empresa montava o violão), e em sua carreira solo já fez mais de 700. E aos 70 anos continua experimentando. Avesso a modismos, fiel a seu ideal sonoro, trabalha 15 horas, dorme 2, trabalha mais 13, dorme umas 3 ou 4, trabalha mais 20, até que desmaia e entra em coma, repetindo o processo ao acordar. À hora em que escrevo – ou a em que você lê - ele pode estar dormindo, tomando café, jantando... Relógio é apenas um conceito abstrato, como num jantar em que ele serviu sua famosa bacalhoada: marcou às 20, chegou às 23:30, serviu às 2 da madrugada.

E encerro falando de duas características: 

Primeiro, sua memória prodigiosa. Ele é capaz de reconhecer uma peça de música que ouviu há 20 anos, mas incapaz de lembrar se já almoçou ou não. Vocês podem imaginar como isso foi agradável quando escrevi sua biografia!

-Sergio, como foi o recital no lugar tal?
-Ah, foi razoável, aconteceu que o empresário...

E segue a história. Uma semana depois:

-Sérgio, tem um detalhe sobre o recital no lugar tal...
-Eu NUNCA toquei lá!

Cogitei diversas vezes o suicídio.

A outra característica é o ouvido; os exemplos são milhares, mas minha favorita: estava dirigindo e comecei a ouvir no rádio um quarteto de cordas. Como provavelmente a viagem terminaria antes do fim da peça, liguei do celular para Sérgio, perguntando que música era aquela. Ele ouviu um trecho, e declarou que era um quarteto de Beethoven, e disse o opus. Ok, nada demais. Pediu para ouvir mais um pouco. Uns 15 segundos depois, comentou:

- Curioso, parece o Quarteto Alban Berg, mas está um pouco diferente da gravação que eu tenho...

Achei meio impossível ele reconhecer o intérprete assim, ainda mais via celular e com barulho de trânsito. Resolvi atrasar meu compromisso e ouvir até o fim a transmissão. Sim, era o Quarteto Alban Berg, numa gravação ao vivo. A que ele tinha era de estúdio...

E sim, vou voltar a falar dele!


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