No Caminho do Som

Por conta de Clarice, passei a escutar faíscas

terça, 26 de dezembro de 2023

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Não poderia, penso eu, começar este caminho de outro modo. De memória fresca, lembro dos livros antes da música. No meu princípio, havia Clarice Lispector. E foi ela quem, apresentando mundos para uma menina curiosa, a menina que segue em mim, foi ela quem me levou às canções brasileiras. Por isso, acho por bem e justiça assim estrear esta coluna: agradecendo a Clarice, recordando de alguns dos artistas que passei a escutar, de fato e coração, por causa de textos dela – uma crônica aqui, uma entrevista ali e, pouco a pouco, um nome que puxa o próximo, firmou-se uma paixão. (Explosão).

À escritora infinita, por exemplo, logo relaciono Chico Buarque e Tom Jobim. De Chico (ou, a fim de avivar grafia inventada por Millôr Fernandes, Xico Buark), cuja candura Clarice bem captou, ela me mostrou “A Banda”, faixa que, como se deu com um tanto de gente, colocou-me na roda buarqueana em definitivo. A modinha tão brasileira e de ar saudoso (caracterizada dessa maneira pela ficcionista) me põe a imaginar, a cada audição, Clarice feliz, ouvindo os versos “Estava à toa na vida / O meu amor me chamou” quinhentas vezes seguidas. Em um estalar de dedos, fico feliz também. Efeito que não falha tal qual remédio santo. Já em relação ao maestro Antônio Carlos, vem à mente primeiro a foto bonita: o compositor no lançamento de A Maçã no Escuro (1961), evento de que foi “padrinho”, ao lado da criadora do romance. Os dois juntos me causam um tipo de emoção grande, matéria de a todos comover. A conversa entre eles, no bairro do Leme, uma conversa a sério em que Tom afirmou que a morte não existe, corresponde ao plano de fundo quando me entrego à sonoridade do homem-sabiá. 


Tom, aliás, puxou Vinicius, Vinicius de Moraes. O poetinha, que muito me ensinou sobre o estado de fascínio pela poesia, trouxe uma certeza para mim: a música do Brasil é a melhor forma de oração (oração que, digo mesmo, mistura fartas dimensões do divino, incluindo o talento humano). Em entrevista conduzida por Clarice, Vinicius resumiu, como só ele poderia fazer, a junção em que eu, modestamente, também creio: “Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções”. Pronto, aí se vê o eixo de tudo. Por ser guiada, principalmente, pela inventora de Macabéa e por outros mais, participo do grupo daqueles que não despregam a palavra do som. Sambas, sonetos, cantos, o ir no “vai! vai! vai! vai!” do mestre, seja na página, seja no disco. 

Lendo Clarice, olho tesouros nossos pelos olhos de quem é de igual tamanho valor (joia total): Elis Regina, ao dar carona para a autora de Felicidade Clandestina (1971) depois de um bate-papo, revelou-se alguém de espontaneidade e simpatia raras, enquanto Maysa, mulher-gata “menos felina do que parece nos retratos”, segundo a escritora, uniu-se à ideia de ressurreição. “Quem já se ergueu várias vezes das cinzas, sabe como é, ao mesmo tempo, difícil e possível a própria reconstrução”, salientou Clarice no parágrafo que abre o pingue-pongue de perspectivas com a compositora de “Resposta” (letra de força necessária). Ouço Elis e penso no que escreveu Clarice. Ouço Maysa e penso no que escreveu Clarice. Fala-se em Cazuza e, em uma rapidez instantânea, recupero trechos de Água viva (1973) e a declaração do cantor em um show de Ângela Ro Ro: “A pessoa que eu mais amo na minha vida chama-se Clarice Lispector”, afirmou Caju. A Roberto Carlos, ligo a personagem Sra. Jorge B. Xavier, do conto “A procura de uma dignidade”, perdida na fome baixa do desejo-danação de comer a boca do ídolo. No final da história, o estribilho: “Quero que você me aqueça neste inverno e que tudo o mais vá para o inferno”. E, ao tocar “Aquele abraço”, de Gilberto Gil, surge no pé do ouvido, como sussurro certo, o adjetivo com o qual a prosadora qualificou a obra: fraternal.

De todos, porém, os irmãos Caetano e Maria Bethânia são a dupla que, por propensão individual, mais confirmam, para e em mim, a possibilidade de caminhar com Clarice pelo repertório musical do país. Agora, justifico esse meu sentir (se é que seja necessária essa atitude): Caetano em razão do entendimento de que o texto clariceano representa um choque e uma explicação; Bethânia porque Clarice, ao assistir ao espetáculo Rosa dos Ventos, identificou as centelhas que saiam do palco, senso de fagulhas que, tendo eu aprendido com a romancista, invadiu o meu ser quando vi a Abelha Rainha em cena. Ou nas tantas noites que reiterei o meu encantamento por Gal ao vivo (hoje, saudades). Por conta de Clarice, passei a escutar faíscas e, desde então, o céu se agigantou.

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