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Paulinho da Viola, aos 80, em releitura instrumental de Senise e Cristóvão

quarta, 16 de novembro de 2022

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Doublé de sambista e chorão, o carioca de Botafogo Paulo Cesar Baptista de Faria, o Paulinho da Viola, ganha mais uma releitura instrumental de parte de sua obra. Em 2003, o grupo Nó em Pingo D’Àgua, procedente do choro, disparou seu magnífico “Interpreta Paulinho da Viola”. Agora é a vez de outra imersão profunda nas águas do co-autor de “Timoneiro (“não sou eu quem me navega/ quem me navega é o mar”): “Choro negro – Cristovao Bastos e Mauro Senise tocam Paulinho da Viola” (Biscoito Fino). É uma rara abordagem de piano e sopros (sax e flauta), complementada em algumas faixas por meticulosas intervenções de baixo (Jeff Lescowitch) e bateria (Jurim Moreira). Cristóvão foi pianista e arranjador de Paulinho em alguns de seus históricos discos dos anos 70 – e ainda o responsável por adicionar um heráldico e inusitado cravo, na receita de balanço do sambista, um compositor de “marca poderosa e moderna”, como avaliza outro criador ilustre, Edu Lobo, no encarte. 

A produtora do projeto, Ana Luisa Marinho, rebobina como ele nasceu. “Há muito tempo Cristovão e Mauro queriam formar um duo. Cristóvão vem fazendo arranjos e participando dos CDs de Mauro, que, por sua vez, já atuou em alguns discos do pianista. Este projeto é o resultado dessa amizade e admiração mútua”, descreve ela. “O catalisador foi Paulinho da Viola. Mauro sempre admirou suas melodias, tão modernas e elegantes. Cristovão é parceiro e compadre do Paulinho, que completa 80 anos neste novembro. Portanto, esta homenagem faz todo sentido”, acredita. 

Foto de Nana Moraes

“Para um solista de sopros como eu, nada motiva tanto quanto uma boa melodia abraçada por uma rica harmonia”, elogia Senise no encarte. Cristovao arremata: “Considero este trabalho um presente pra mim e pro Mauro. Uma pequena amostra do grande compositor que é meu amigo e compadre Paulinho”. E o pianista - e diretor musical do disco junto com Senise - caprichou na celebração. Fez duas parcerias com Paulinho e o retratou sozinho na etária e finalista “Outonal”. Uma melodia densa, que transcorre em câmara lenta, como a passagem do tempo, mais compassada pela idade. Porém, sem melancolia, serena, na troca de passes entre o piano desenhista de Cristovão e o sax alto solidário de Senise.

“Um choro pro Waldir”, na outra extremidade, abre o disco, numa parceria autoral entre Cristovao e Paulinho, em homenagem ao ás do cavaquinho Waldir Azevedo (1923-1980). Ele é autor de megaclássicos instrumentais, como os choros “Brasileirinho” (1949) e “Pedacinhos do céu” (1951) e o baião “Delicado” (1950). Na contramão da eletricidade destes êxitos, a composição de Paulinho e Cristovao é mais reflexiva, com o piano modulando as suaves arremetidas da flauta. A outra parceria do celebrado com o celebrante, “Não me digas não”, por sua vez, é lépida e fagueira. O quarteto instrumental completo trafega por um choro sinuoso, com ginga de samba. E ainda há espaço para um solo jazzístico do baixo de Jeff Lescowitch.

Adentrando ao repertório de Paulinho propriamente dito, as faixas foram escolhidas por critérios de excelência e sutileza, como a intensamente melódica “Para um amor no Recife”, que o autor gravou num dos dois discos que lançou em seu nome, em 1971. Senise reveza-se numa flauta em sol e sax alto, ambos cariciosos e algo melífluos, junto com o quarteto, num arranjo evocativo de Cristovao. Também de 1971, é a dissonante e vanguardista “Vinhos finos...cristais (parceria com o tropicalista baiano Capinan), com um tema que paira em suspenso, repleto de reticências e espaços, no diálogo entre teclados e sax alto.

Do emblemático álbum “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, de 1970, são as de abordagens antípodas, “Nada de novo” e “Tudo se transformou’. Na primeira, mais diálogos entre os instrumentistas centrais do disco; não raro (como em outros momentos) em encontros uníssonos de sopros e teclados. Já em “Tudo se transformou”, a faixa mais longa do roteiro, com mais de nove minutos e meio, o quarteto volta a abrir espaços para improvisos levemente jazzísticos num compasso de samba desidratado. “Reparem na releitura semioculta obsessiva da segunda parte de ‘Chega de saudade’ (de Tom Jobim e Vinicius de Moraes), presente na gravação original de Paulinho e uma citação fugaz a ‘Este seu olhar’ (Tom Jobim), que Cristovão faz ao longe de seus solos”. A observação é do autor do texto de apresentação do álbum, o crítico e historiador Roberto Muggiati, também saxofonista e ex-aluno de Senise no instrumento.

Outra celebração do disco é o “samba chorado’ (carimbo do próprio autor, Paulinho da Viola) “Sarau para Radamés”. O tema alude ao gigantesco maestro, pianista, compositor e arranjador gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), bilingüe fluente nas músicas erudita e popular, mestre da modernidade musical do país. Mais uma faixa em que o quarteto se esbalda entre sincopas e improvisos, percorrendo a sinuosidade do enredo. A do título, “Choro negro” (parceria com Fernando Costa), permite a Cristovão e Senise entretecerem com vagar a trama dos autores, enfatizando sempre a riqueza melódica e as diversas possiblidades do gênero, lapidado por luminares como Pixinguinha, Garoto e Jacob do Bandolim. E Paulinho da Viola, é claro.



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