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'Outra dimensão', a estreia lapidada de Marina Lutfi

terça, 31 de agosto de 2021

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Filha de um precursor da bossa nova e da canção de protesto, Sérgio Ricardo (1932-2020), Marina Lutfi estreia solo, em “Outra dimensão” (Cacumbu), após muitas colaborações musicais com o pai, cujo nome, na identidade, era João Lutfi. Paulista de Marília, radicado no Rio na década de 50, ele ganhou o pseudônimo artístico por conta de uma de suas muitas habilidades, a de ator, que conjugou com as de pintor e cineasta – o único a participar de outro movimento fulcral dos anos 60, o cinema novo. A caymmiana “Barravento” (“noite de breu sem luar/ lá vai saveiro pelo mar/ levando Bento e Chicão”), uma das faixas do disco de Marina, não por acaso, evoca o filme de estreia, de mesmo nome, do cinemanovista Glauber Rocha (para quem ele faria a trilha de “Deus e o diabo na terra do sol”), que o compositor lançou em seu disco “Um senhor talento”, de 1963. A voz de Sergio comove, no contracanto do coro jogral do belo refrão, em meio a orquestração densa, de Henrique Band. Marina, também designer e produtora, levou oito anos na lapidação do álbum - de igualmente oito faixas - iniciado em 2013, alinhavado com seu amigo violonista, produtor e arranjador, Flavio Mendes. “Quis dar um mergulho mais fundo no cantar, expressão vital para mim. A idéia foi buscar um caminho próprio nessa dimensão da música, com referências para além de meu pai’, dimensiona na apresentação.

Suas escolhas estéticas cirúrgicas surpreendem. A começar pela parceria do roqueiro concretista Arnaldo Antunes, ex-Titãs, com o pós-tropicalista Péricles Cavalcanti, “Quase tudo”: “Tudo que dá para ter/ quase que dá para dar/ quase tudo dá”,  gira a letra, encordoada por violão (Mendes), cello (Lui Coimbra), agulhados por flauta, de Alexandre Caldi, com direito a frullato, e percussão incisiva de Marcos Suzano. O elenco instrumental do disco é um compêndio de quem circulou pelo lendário Bar Semente, da Lapa carioca, onde o repertório foi inicialmente testado. Da cena, é o compositor Rodrigo Maranhão, da melíflua “Milonga” (“nem todo toco ecoa/ nem todo eco toca/ nem toda toca é casa”), adornada pelo acordeon de Marcelo Caldi, outro ás do pedaço. Sinuosa parceria de João Donato e Paulo Cesar Pinheiro (lançada no icônico disco “Quem é quem”, de Donato, de 1973)  “Ahiê”, alicerçada pelo baixo de Guto Wirtti, flutua nos sopros de Everson Moraes (trombone), Levi Chaves (clarinete e flauta), Diogo Gomes (trompete) e Henrique Band (sax barítono, flauta e arranjo).

foto Mario Grisolli

Na caixinha de ideias que eu levava desde o início, estavam as músicas do Julio Dain, amigo e compositor que admiro muito. Cheguei a fazer capa de disco para ele como designer e acabei conhecendo mais suas canções”, comenta Marina no texto de apresentação. “Fiquei tão impressionada com a originalidade das melodias, a poética das letras, harmonias dissonantes e ricas”, exalta ela. A cantora pinçou duas composições do pouco difundido autor carioca, antes radicado em Paris, de seu disco “Apenas humano”, de 2009, para o qual fez a capa. Uma delas é a enevoada bossa “No meio da escuridão” (“quero te descobrir/ como um bicho/ só por instinto vital”), atravessada pela “guitarra de efeito” do irmão da cantora, João Gurgel. Também foi escalada, como faixa título, a espacial, de sincopa alongada, pontuada pelo MPC de Domenico Lancellotti, “Outra dimensão” (também com participação da voz de Sérgio), definidora de rumos da intérprete, ora cariciosa, “se o infinito é nosso cais/ eu já não posso mais/ ficar restrito aos apitos e sinais/ de trânsito”.

Ora assertiva, como no seminal afro samba paterno “Esse mundo é meu” (“fui escravo no reino/ e sou/ escravo no mundo em que estou/ mas acorrentado ninguém pode/ amar”), de 1963, título de outro de seus filmes, com edição e montagem do cinemanovista Ruy Guerra, o autor da letra. Violão e ukulele de Flavio Mendes cerzem o ponto de candomblé pulsante, na percussão de Carlos Cesar Mendes. Nome escolhido por Marina para sua empresa, a anárquica “Cacumbu”, de 2008, crivada de contra-ritmos, (guitarra, efeitos e baixo de Carlos Pontual) é outra comunhão estética entre filha e pai. Ela aponta para o futuro de uma obra intensa e em progresso: “Lá se vai pro mundo oceânico/ pro céu de anzóis eletrônicos/ de cascos iscas e âncoras/ deixando o peixe no ventre/ das ondas do mar”.


Tárik de Souza

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