Na Ponta do Disco

O sol secreto e particular de Marissol Mwaba

por Tiago Bosi

quinta, 25 de novembro de 2021

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Para os bakongo, o sol está sujeito a caminhos misteriosos que guiam nossas vidas e nossa possibilidade de renascer sempre: seja todos os dias pela manhã, seja em novos ciclos de nossas vidas. Assim como os bakongo e os gregos, uma centena de civilizações já notaram e discorreram em suas cosmovisões sobre as intrínsecas relações entre os astros e os ciclos de nossa existência terrena. Mas talvez a parte mais bonita da cosmovisão dos bakongo e de outras cosmovisões centro-africanas seja a ideia de “Musoni”, ou o local secreto que concebe a vida antes (mesmo antes da gestação, como a semente de um baobá) e o novo. “Musoni” é também onde o sol se esconde e, pelos segredos das forças místicas da vida, renasce. É também o mundo secreto dos sonhos e (não à toa) da ancestralidade que mora em nós. 

Tudo isso está amarrado à musicalidade solar de Marissol Mwaba, uma jovem artista que nasceu em Brasília, mas cuja família é de origem congolesa, mais precisamente da região de Katanga na República Democrática do Congo. Marissol carrega em sua musicalidade a beleza e a força dos dois mundos e isso se torna cada vez mais visível de acordo com o amadurecimento nítido de sua obra. 

Acontece que Marissol é também astrofísica de formação pela Universidade Federal de Sergipe e sua inclinação a estudar os astros se deu em parte por influência de sua família, também acadêmica, que lhe apresentou as belezas complexas da teoria da relatividade de Einstein. 

Mas a música quase sempre foi parte definitiva da vida de Marissol que, aos seis anos de idade, se emocionou ouvindo “Canção da América” (Milton Nascimento/ Fernando Brant) e o sentimento novo que experimentou ficaria como marca de sua sensibilidade. 

De lá pra cá, Marissol trilhou seu caminho pelo estudo dos astros, mas manteve a música como lugar de expressão criativa pulsante: em 2011 lançou o seu primeiro álbum “Luz-A-zul” e em 2016 o álbum “Palavra Mágica”. Foi a partir de 2016 que a artista começou a atrair a atenção de grandes nomes da nossa canção. A primeira parceria foi com Luedji Luna que gravou “Erro” – parceria de Marissol com seu irmão François Muleka – e depois, “Notícias de Salvador”, uma parceria das duas.

Além de Luedji, Marissol caiu nas graças dos irmãos Fióti e Emicida que não economizam elogios à cantora. Ela inclusive participou da faixa “Principia” do álbum “AmarElo” (Lab Fantasma/ 2019) de Emicida, vencedor do Grammy Latino (2020), e também da canção “Quero te ver bem amanhã” de Fióti, lançada em 2019 junto com Rael.  Além dos rappers paulistas, a artista foi responsável pelos arranjos vocais do álbum “O amor é um ato revolucionário” de Chico César, que definiu Marissol de forma concisa: “fada foda”. 

A pandemia veio, mas o Sol de Marissol continuou a brilhar. Além das parcerias e do reconhecimento já citados, a artista ganhou louros do nosso Xangô de Xangai (e agora imortal da ABL), Gilberto Gil, que ouviu e já teceu elogios a uma versão de “Esotérico” interpretada pela artista brasiliense. E Marissol não parou por ai: em julho desse ano lançou junto com Drik Barbosa, Linn da Quebrada e François Muleka a canção “Chupando versos”, que reflete diretamente o amadurecimento e a capacidade poética e musical da artista. Em setembro desse ano veio a canção “Sol”, em parceria com o nosso “Manicongo”, vulgo Rincon Sapiência. A canção não poderia ser mais emblemática: o Sol de Marissol renasce assim como o astro rei de tantos artistas que ficaram na escuridão nesses momentos desafiadores para a cultura em meio à pandemia – muitas vezes a primeira atividade a parar e a última a retornar. 

Porém, a consequência mais trágica da pandemia foi, evidentemente, a perda de tantas vidas preciosas para o vírus. Assim, voltando para a visão dos bakongo e ao “Sol escuro e secreto” (“Musoni”), podemos dizer que muitas dessas pessoas tornaram-se nossos ancestrais e nós, que aqui permanecemos, vencemos as provações dos lugares escuros e misteriosos. Mas, em nossa fé silenciosa, nós renascemos também, carregando em nossa nova vida todos aqueles que se foram. E a música, em sua miríade de formas e possibilidades – que atravessam tempos e culturas – talvez seja a forma mais intensa nas artes de relembrar e reviver aqueles que partiram. 

Assim brilha a música e o “Sol particular” de Marissol Mwaba: uma luz que teima em brilhar apesar de todos os pesares. A canção e o clipe traduzem perfeitamente esse sentimento: leveza, luz e poder de recriação – como um rei e uma rainha do Kongo, Marissol e Sapiência elevam (-se) no refrão: Tão quente é o sol/ Calor divino/ Insinua meu alto astral/ e eu me sinto tão bem; e no “verso livre” do Manikongo: Temporal, sua luz/ já não vem/ Chuvas e trovões é pra lavar/ Tudo vai brilhar e o tempo é rei. Como um pássaro mágico que voa entre o tempo e o espaço, a música e poesia de Marissol nos (re)encantam e deixam o mundo mais belo e leve. Não à toa seu novo álbum que deve ser lançado em breve terá o nome de Ndeke que em suaíli significa “pássaro”. Segundo a artista, o nome tem relação com a fênix – o pássaro de fogo que renasce sempre das cinzas. E assim como a música e a cultura, nós também aos poucos vamos renascendo – gravitando suaves e plenos ao redor de novos sois, luas, astros, em direção a um novo futuro feito de ancestralidade, sonhos e luz.   



Tiago Bosi Concagh é historiador, professor e produtor cultural. Mestre em História Social pela USP e bacharel em produção cultural pela FAAP.  Idealizador do canal Na Ponta do Disco e do III Encontro de Música Brasileira: Sons da Diáspora, além de editor da Revista Lamella.

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