Na Ponta do Disco

O Sambista e o Educador

sexta, 24 de maio de 2024

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“Garoto de pobre/ Só pode estudar em escola de samba
Ou ficar pelas ruas jogado ao léu/ Implorando a bondade dos homens
Aguardando a justiça do céu
Seu lápis é sua baqueta que bate o seu tamborim”
“Garoto de Pobre” - Geraldo Filme

Esse texto propõe um encontro entre Geraldo Filme (1927-1995), pelas suas canções e sua atuação político-cultural, e a obra de Paulo Freire (1921-1997), em especial o úiltimo capitulo do livro “Pedagogia do Oprimido”. E também é um texto autobiográfico dentro do plano afetivo pois revela o amor daquele que vos escreve pela Escola de Samba como aventura civilizatória e pelos ensinamentos do tambor e suas gramáticas múltiplas e potentes. Além disso revela minha atuação como professor de uma escola municipal da Cohab do Educandário a poucos metros do “Metrozão” prédio da Cohab em que Geraldo Filme morou nos seus últimos anos de sua vida. Esse texto é uma confluência das duas maiores aventuras civilizatórias que tenho ciência: o samba e a educação. 

Diz a lenda que Ismael Silva, em 1929 propôs para o prefeito do Rio de Janeiro (governador do distrito federal a época, Antonio da Silva Prado Junior), que a Deixa Falar e as outras Escolas de Samba que seriam fundadas pouco depois, que as Escolas de Sambistas poderiam ser consideradas também escolas Normais da cidade. A proposta foi tratada com total desdém.

Por volta de 1990, outro sambista, das terras da pauliceia, Geraldo Filme fundou a Quilombo do Educandário, uma Escola de Samba que durou cerca de seis anos e teve como polo aglutinador o Bar do Carlão, que hoje não existe mais. Foi destruído por tratores em 1995 quando fizeram a retificação de um córrego do Rio Pirajussara na Zona Oeste da capital paulista. Carlão era dono do bar a vinte anos e ao ver os tratores chegarem ficou junto a outros frequentadores do bar e sambistas na frente protegendo a unhas e dentes seu estabelecimento. Ao final só Carlão sobrou para proteger seu recinto e lá de cima, como um capitão de um navio naufragando que jamais abandona sua embarcação, caiu se esborrachando no chão como “um pacote flácido”, quando o último concreto da fundação cedeu para as bocas de ferro do maquinário pesado. Na queda bateu a cabeça ficando daquele em dia em diante afetado por problemas mentais decorrentes de um traumatismo craniano. Os moradores mais antigos do Educandário e contam que Carlão vaga até hoje cantando sambas de Geraldo Filme pelas ruas do bairro e que de manhã cedo é possível ver ele em algum ponto de ônibus entre as Avenidas Eiras Garcia e a José Porfirio de Souza, cantarolando: “quem nunca viu o samba amanhecer...”

Geraldo Filme foi um sambista político, intelectual orgânico do samba e da história do povo negro de São Paulo destacando em seus sambas figuras como Tebas, Maria Soldado e Pato N’Agua. Antes de mais nada era um amante do seu povo e um sambista de muitas amores e pavilhões: Vai-Vai, Unidos do Peruche, Paulistano da Glória...

Foi para Londres e lá encontrou uma nova visão sobre o conceito de sindicatos e proletariado na capital da Revolução Industrial. 

Na década de 1960 conheceu Solano Trindade e, segundo sua filha Raquel Trindade em depoimento para o historiador Lucas Marchezin, esse encontro foi fundamental para depois Geraldo encontrar Plinio Marcos e para a realização da peça teatral Balbina de Iansã de 1971. Da peça surgiria o álbum “Nas Quebradas do Mundaréu” (1974), com Geraldo, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro

Passando agora a baqueta para Paulo Freire das terras do Leão do Norte em seu canônico, “Pedagogia do Oprimido” os quatro pontos centrais que ele elenca como elementares de uma práxis libertadora são em nossa visão também sincrônicos à base formativa e fundante (como de fato fundamento) da Escola de Samba. São eles: a) A Co-laboração; b) A União; c) A Organização; d) A Síntese Cultural. 

A Co-Laboração e a União

A Colaboração é um dos pilares de qualquer construção civilizatória, ela é segundo Freire operada no sentido do “eu-tu” que se estabelece no espaço dialógico e está diametralmente oposta ao “eu-dominador” que se revela nas relações de reificação do sujeito no processo capitalista.

Na canção “Garoto de Pobre”, quando Geraldo Filme cita a situação precarizada daquele que nem tem acesso à educação formal, ele também mostra o seu eu autobiográfico do menino das marmitas que no Largo da Banana vendia as quentinhas para ajudar a mãe. No processo de marginalização social do capitalismo o garoto vai para Escola de Samba estabelecer uma educação não-formal e trocar o “lápis pela baqueta”.  A letra precisa de Geraldo é um retrato da juventude negra que o pós-abolicionismo de uma república das bananas transformou em mão de obra precarizada e ainda o faz até os dias atuais.

Mas voltando ao sentido de “dialógico” na perspectiva freiriana ele é constituído por quatro “nãos”: não impõe; não maneja; não domestica; não sloganiza. E o objetivo da ação dialógica é principalmente se comprometer com os objetivos aos quais estabelece previamente. Ademais a ação dialógica e a colaboração não “mitifica a realidade concreta”. Essa é uma das grandes ideias para pensarmos a relação da sala de aula e um ensaio de Escola de Samba. A mitificação do concreto é estabelecida pela indústria de massa e as elites. Enquanto a educação liberta e desaliena muitos vão para a visão simplória de que os professores têm um projeto de tutoria panfletaria. Assim como nos desfiles das Escolas de Samba quando de repente há um súbito espaço concedido pela mídia no carnaval para toda a potencialidade de corpos indóceis se mostrando absolutamente comprometidos com um enredo que não mitifica o concreto, muito pelo contrário: seja num surdo de terceira tocando um Agueré de Oxóssi caçador, seja na apresentação de uma contra narrativa indo de encontro à pauliceia das Bandeiras como o Vai-Vai fez com um enredo sobre o Hip-Hop ainda esse ano, seja quando a Mangueira entra com “História Para Ninar Gente Grande” em 2019 ou mais recentemente em 2022 quando a Beija Flor nos brinda com o arrebatador “Empretecer o Pensamento É Ouvir a Beija-Flor”: “quem é sempre revistado é refém da acusação/ o racismo mascarado pela falsa abolição”. Além disso, podemos ir longe na década de 1940 quando sete escolas de samba do Rio homenagearam “O Cavaleiro da Esperança”, Luís Carlos Prestes – quando o tenentismo tomou seu lado revolucionário as Escolas de Samba não deixaram de lutar contra nossa oligarquia e representar isso nos desfiles. E sem esquecermos jamais o samba enredo da Império Serrano de 1969 “Heróis da Liberdade” que foi inspiração inclusive para o samba enredo da Unidos do Peruche de 1972, “Chamada aos Heróis da Independência” de Geraldo Filme. O samba enredo atraiu a fúria da Ditadura Militar por fazer clara apologia a democracia e a liberdade de expressão. Mesmo passando na censura prévia, o DOPS sob o comando de Erasmo Dias intimou Seu Carlão do Peruche a se explicar pelo Samba e mesmo ele não sofrendo consequências mais duras além do depoimento, Geraldo Filme e a Escola de Samba não tiveram a mesma sorte. A Peruche foi invadida duas vezes naquele ano pela polícia e teve instrumentos e carros alegóricos metralhados por centenas de balas de fuzil, já Geraldo Filme ficou preso trinta dias no prédio do DOPS – “quem foi de aço nos anos de chumbo”.

Dessa forma, a teoria dialógica “exige o desvelamento do mundo que é sua desmistificação”. E isso se revela nos enredos e nas muitas gramáticas da Escola de Samba traduzindo o seu ethos como lugares de transformação social muitas vezes pelo aquilombamento. Isso é, em última análise uma profunda desmistificação da nossa ideologia dominante que vende o carnaval das Escolas de Samba em linhas gerais como uma festa espetaculosa e fugaz. 

Esse movimento de “Aquilombamento” (citando o termo de Abdias do Nascimento) se dá dentro da perspectiva freiriana a partir da ideia do “unir para a libertação”. Transpondo assim mais uma vez as perspectivas do autor pernambucano para a Escola de Samba temos o movimento de descoberta do mundo pelo sujeito e isso se dá “em uma percepção distinta da significação dos signos. Mundo, homens, cultura, árvore, trabalho, animal, vão assumindo a significação verdadeira que não tinham”. Aqui Freire nos brinda com uma possibilidade do “eu” em relação ao “todo” que reconstrói a noção do sujeito no mundo. Isto ocorre tanto no processo da educação formal como na Escola de Samba. A diferença é que na Escola de Samba são apresentados saberes de ordem milenar que não seguem os planos cartesianos estruturantes da educação ocidental. Naturalmente na Escola de Samba o saber se dá pelo encantamento. Ao recriar a relação do sujeito em relação ao todo ou ao cosmos, o encantamento se opera na forma da dança-ritual de um mestre-sala e uma porta-bandeira, numa feijoada de Ogum, na pipoca, na velha guarda, na passista, na bateria, no enredo, etc. 

O que Freire estabelece como necessidade de romper no processo da reificação do sujeito como sendo “quase-coisas possuídas”, a escola formal pode libertar por meio da consciência de classe, mas a Escola de Samba oferece uma nova perspectiva de libertação pelo encantamento e pelo pertencimento. Na Escola de Samba todos tem seu lugar de destaque, cada qual em sua função social dentro de um todo estruturante que segue formas milenares de ser-estar. 

A Organização e Síntese Cultural

É notável o que Freire estabelece dentro da ideia da organização pelo “testemunho” dentro da “teoria dialógica da ação”. O testemunho é a base de uma visão concreta da realidade e passa por cinco categorias: coerência; ousadia; radicalização; valentia de amar; crença. 

Aqui ele faz uma análise da ideia de uma liderança dentro de uma proposta revolucionária que na ação histórica-dialógica transmite um testemunho potente e transformador. Porém dentro do espaço da Escola de Samba a relação da autoridade máxima não é personificada – ou melhor dizendo: é personificada pelo “pavilhão”. Mas o que é o pavilhão se não uma entidade que rege aquele espaço de sociabilidades pelo amor e respeito absolutos a algo que é maior que nós, mas não é metafisico uma vez que o pavilhão também come e bebe tal qual um Orixá. Aqui todos os sentidos do testemunho freiriano são amalgamados por um ser máximo que rege as relações de respeito entre os integrantes daquele espaço. O Pavilhão quando segurado pela porta-bandeira representa o ethos máximo daquela agremiação. Nada está acima da Águia da Portela ou do Machado de Xangô do Vai-Vai. E assim, a Coerência que nos une em torno do ideal de um Pavilhão; a Ousadia de saber se colocar na hora e no momento certo entre seus pares como um garoto que faz um solo de repinique que até arrepia de tão energizado; a Radicalização de buscar a raiz daquilo que está ali, mas é afro-diaspórico por excelência; A Valentia de Amar de entrar na avenida sem medo de defender aquele pavilhão com unhas e dentes (ou na época dos cordões e ranchos em que literalmente havia disputas físicas pelo pavilhão adversário); e a Crença inabalável na vitória daquele Pavilhão como entidade suprema. Isso sim é uma liderança das boas. 

E para terminar temos que falar da Síntese Cultural. No sentido freiriano, essa ação é dialética e ocorre em uma modalidade de ação que é histórica e busca superar a própria “cultura alienada e alienante”. É da própria natureza das Escolas de Samba trabalhar os temas nacionais, isso vem dos primeiros concursos como regras das entidades do Rio de Janeiro. No entanto em uma perspectiva afro-atlântica temos que repensar algumas operações culturais que nos parecem simplificadoras. Nesse sentido a própria Escola de Samba trabalha os temas e contradições da realidade em sua totalidade. E as opera de forma extremamente dialética e refinada. 

É sintomático como Freire pensa a Síntese Cultural por dois vieses centrais: a investigação temática e a ação como síntese cultural. Ambas, assim como podem e devem ser pensadas na educação formal, também são em nosso ver um guia para a ação cultural das Escolas de Samba. Nesse sentido, a Escola ao escolher o Enredo (investigação) trabalha estabelecendo já as ações para a criação de um novo ethos para a Escola naquele ano por meio das atividades e ensaios (ação). Nesse sentido, a Escola vai levantar certas bandeiras, sociais ou não, mas em sua permanência se mantem estruturalmente igual. A Ala das Baianas, por exemplo, pode mostrar algo próximo ao traje da baiana típico com seu Alá, ou pode referenciar algum Orixá, ou mesmo trabalhar esteticamente temas do afro-futurismo, mas a Ala é a permanência das Baianas como as Yabás daquele Terreiro do Samba. Nesse sentido, a Escola de Samba se mantém sempre traduzindo temas que variam e tangenciam questões sociais, históricas e estéticas variadas, mas suas permanências guiam a base daquele chão. 

Duas aventuras civilizatórias

Geraldo Filme foi alguém que pelo samba tentou mudar nossa estrutura social, denunciar uma metrópole racista que fez e faz pouco caso de sua memória negra e que lutou em nome de uma arte transformadora. Paulo Freire foi mais que um educador, foi um filósofo do seu tempo que pela educação via a possibilidade da transformação social. Quando a estátua de Geraldo Filme foi inaugurada na Barra Funda em 2022, onde era o Largo da Banana (Hoje Memorial da América Latina), havia um mural enorme de Paulo Freire em um prédio ao lado. Esse texto emerge do encontro do olhar desses dois personagens que pela educação e pelo samba propuseram em minha visão duas das maiores aventuras civilizatórias e, por que não, revolucionários que conheço. 

A Quilombo do Educandário fundada por Geraldo Filme, não foi apenas um nome de um Escola de Samba que durou menos de uma década em um bairro afastado da capital paulista. A “Quilombo do Educandário” é um sonho de revolução social pelo encantamento. Pois é possível fazer uma revolução no Brasil pela Educação. Mas sem a Escola de Samba é impossível realizar revolução alguma. 

Estátua de Geraldo Filme na praça David Raw

Mural de Paulo Freire do outro lado da avenida

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