Colunista Convidado

O retorno da lendária Mestre Ambrósio (ou a continuação do Fuá)

por Luiz Ribeiro Fonseca

sexta, 28 de outubro de 2022

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“Eu sou Ambrósio
Eu vivo no mundo
Comprando, vendendo e trocando figura”

Em 19 de Maio de 1999, o jornal O Fluminense anunciava que o Rio de Janeiro receberia, até o final daquele mês, uma série de concertos do Mestre Ambrósio, banda pernambucana que, nas palavras do redator, tinha “como característica reinventar a música nordestina a partir das influências globais. Forró dos Balcãs, ciranda da Jamaica, e samba do Cabo Verde são alguns dos estilos criados pelo grupo”. Três anos antes, no Jornal do Brasil, o jornalista Tárik de Souza afirmava que a banda – surgida no contexto do Manguebeat, em meados dos anos 1990 – se distinguia por usar “menos guitarras grunge e maior porcentagem de zabumba, triângulo, fole de oito baixos e rabeca”.
Talvez seja justo afirmar que, do ponto de vista mercadológico, o Mestre Ambrósio ocupe uma posição menor no panteão que compôs o estrondoso movimento Mangue, composto por bandas como Nação Zumbi e Mundo Livre S/A. Entretanto, no que tange à influência do grupo sobre a música brasileira dos anos 1990 e 2000, o conjunto formado por Siba, Helder Vasconcelos, Sérgio Cassiano, Eder O Rocha, Mazinho Lima, e Maurício Badé, é o que se pode chamar de um verdadeiro “medalhão”.

Assim, nada mais justo que, aproveitando o fato de que a banda anunciou uma turnê que comemora os 30 anos de sua fundação, adentremos no universo mítico-profano do Mestre Ambrósio. Para guiar essa breve – porém fortíssima – jornada, nada melhor que se debruçar sobre a dimensão filosófica e poética da música “Fuá na casa de Cabral”.

Mestre Ambrósio em ação no final dos anos 1990 (O Fluminense)

Canção homônima ao penúltimo álbum da banda, lançado em 1998, “Fuá” é um forró de pouco mais de três minutos de duração. Com uma zabumba acelerada, os versos de Siba e Helder Vasconcelos reinventam o nosso “mito criador”, isto é, a conquista (ou, em termos mais justos, a invasão) iniciada por Pedro Álvares de Cabral e perpetrada ao longo dos séculos. 

Entretanto, a aparente plácida chegada de Cabral é subvertida pelo encontro com o Brasil do século XX em todo seu esplendor estético e popular. O colonizador – ébrio de cachaça – já está familiarizado com o forró, com o toré e com o samba. Durante a empreitada, Cabral canta modas de viola, celebra uma missa, e jura “pelo Alcorão” sua crença cristã. Os entrecruzamentos entre a música europeia, a africana e a indígena parecem se estruturar num país avesso ao tempo, num tempo antes do tempo. Ao final, passada a embriaguez, ele declara: “O Brasil que eu descobri, queria cobrir de novo”.

Diversos autores, a exemplo de Darcy Ribeiro em “O Povo Brasileiro” (1995), Sérgio Buarque de Hollanda em “Raízes do Brasil” (1936), ou mesmo Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala” (1933), buscam dar conta do enigma que ainda hoje se apresenta neste canto do mundo. Haveria uma identidade brasileira? Se sim, qual seria? O que queremos como nação e qual o caminho que esta nos apresenta? São perguntas que, em uma semana politicamente decisiva, parecem soar de modo mais intenso quando ouvimos “Fuá na Casa de Cabral” – que inclusive faz parte do documentário em homenagem à obra de Ribeiro.

Musicalmente, “Fuá” parece primar pela torção melódica como um sinal da dissonância histórica de sua letra. Em outras palavras, o instrumental produz, ainda que em sintonia com a letra, um universo próprio, que simultaneamente aceita e rejeita o mito português. Calcado nos textos do modernista Oswald de Andrade, podemos afirmar que a alteridade, aqui, é “o sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si, de constatar-se em si o desastre, a mortificação, ou a alegria do outro”. De certo modo, a sanfona de Helder Vasconcelos cumpre esse papel: ao modular a sequência melódica da canção, o músico recria, através do fole de oito baixos, um novo Brasil, ao mesmo tempo em que caçoa da figura desgastada do colonizador.

Por sua vez, o clipe da música, lançado em 2009 e dirigido por Jodele Larcher e Richard Luiz, parece adicionar mais matizes à obra: cenas “frias” e monocromáticas da chegada de Cabral e do seu encontro com indígenas são alternadas com planos “quentes” e coloridos nos quais figuram os integrantes do Mestre Ambrósio. A distância entre os tempos, traduzida pela imagem, vai aos poucos se diluindo e, ao final do clipe, a banda se encontra dançando e jogando futebol com o invasor, em meio a um fundo recheado de bandeirinhas do Brasil. Dança, música, festa e cordialidade aparecem como componentes clássicos do país. No fim, Cabral, este suposto cidadão de bem, apesar de se sentir culpado e pedir à Igreja Católica sua absolvição, não resiste à farra. 


Repleto de referências – e reverências – filosóficas à mata, aos caboclos e aos gêneros populares nordestinos, a exemplo do caboclinho, do maracatu de baque solto e do forró de rabeca (derivados de permanente pesquisa por parte dos integrantes), o Mestre Ambrósio ainda se impõe, em toda a sua leveza árida, como uma força artística que regionaliza o universal, e universaliza o regional. Em um “Brasil antigo, perdido no desengano”, a volta do Mestre Ambrósio e do seu Fuá são mais que bem-vindos: são imprescindíveis.


Mestre Ambrósio atualmente. Foto: José de Holanda (2022)



Luiz Ribeiro Fonseca é músico, jornalista e mestrando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF). Pesquisa fonogramas de maracatu gravados na primeira metade do século XX.


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