A música de

O que resta da Semana de Arte Moderna de 1922?

por Nashla Dahás

sábado, 12 de março de 2022

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Desde fins de 2019, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 vem sendo antecipado em diversos circuitos, da grande imprensa às sensibilidades ilustradas de maior prestígio no país. O interessante nesse movimento de rememoração, que também ocorre com o centenário republicano ao seu modo, é, no entanto, que a Semana paulistana tal como a conhecemos está desaparecendo; cedendo lugar a um mosaico de movimentos que compunham o horizonte cultural brasileiro daqueles anos 20. Mais do que isso, a música é o elemento a partir do qual esse acontecimento politicamente tão gasto vem se renovando, em verdade, vem se radicalizando.

Resta da semana de 22 tudo o que não enxergamos ao longo dos últimos 100 anos. Com outras palavras, é o que diz o escritor, jornalista e colunista da Folha de São Paulo Ruy Castro, ao nos mostrar Como a Semana de 22 virou vanguarda oficial depois de 50 anos esquecida (FSP, 05.02.2022) pelas mãos da ditadura militar, que soube explorar astuciosamente a raiz nacionalista e homogeneizadora do evento. Segundo o escritor, durante o primeiro meio século a partir de 1922, só os remanescentes da Semana e os promotores de sempre falavam dela. As obras expostas, os poemas declamados e as palestras realizadas durantes aqueles 3, apenas 3 dias intercalados ao longo de uma semana, estavam em situação semelhante à da maioria das teses e dissertações acadêmicas produzidas atualmente, engavetadas em armários e presas às edições originais, sem nenhum exercício político ou impacto social. 

Fachada do Theatro Municipal de São Paulo, 2014. / Fonte da imagem: Reprodução da internet

Antes de ser revitalizada pela ditadura militar, porém, o governo Getúlio Vargas já havia experimentado a Semana de 22 como política de Estado; é o que nos conta o historiador da arte Rafael Cardoso, autor do livro Modernidade em Preto e Branco - Arte e Imagem, Raça e Identidade no Brasil (2022). De acordo com o historiador, a Semana teve capilaridade apenas no interior de um meio restrito de artistas e intelectuais; mas sua reinvenção acontece após 1945, sobretudo após a morte de Mário de Andrade – que, assim, não teria acompanhado o êxito histórico da Semana em vida. Nesse momento, o grupo de homens, jovens intelectuais egressos da USP, responsável pela criação da revista Clima, tomaria para si a tarefa de reinterpretar a Semana como um marco fundador da cultura brasileira e origem do Modernismo no país. Nesse grupo estavam futuras celebridades da crítica literária e das artes em geral, como Antonio Candido, Antonio Branco Lefèvre, Decio de Almeida Prado, Paulo Emilio Salles Gomes, Roberto Pinto Souza, Alfredo Mesquita e Lourival Gomes Machado. 

Nessa versão, é a intelectualidade paulista, portanto, na virada dos anos de 1940 para a década de 50, que cria a história da Semana de Arte Moderna como ela se consagraria até nos livros didáticos, com a exposição de Anita Malfatti e obras de Di Cavalcanti e Victor Brecheret, entre outros, que teriam escandalizado o gosto público brasileiro, além da burguesia paulistana, tradicional, retrógrada e desacostumada às novas formas de representação propostas pelo modernismo europeu, sobretudo pela arte francesa. Mais ainda do que as luzes próprias desses jovens artistas do começo do século XX, o ponto alto da interpretação residiria no deslocamento do locus cultural do Rio de Janeiro para São Paulo, vista agora como epicentro difusor da cultura moderna para o resto do Brasil. 

Rafael Cardoso explica ainda que esses usos políticos do passado não são gratuitos e se inserem em contextos históricos mais amplos que, nesse caso, incluem os longos ressentimentos da então Província de São Paulo – em 22 estávamos há pouco mais de 30 anos do golpe republicano e do fim oficial do regime escravista. O Brasil era um país majoritariamente analfabeto cuja identidade estava sendo forjada, e disputada, pelas elites de maior pressão sobre o Estado. Especificamente sobre as elites paulistas, o autor ressalta que à derrota da Constitucionalista de 1932 se seguiu a ditadura do Estado Novo com importantes intervenções em São Paulo que, por sua vez, crescia sob o espírito de uma nascente metrópole, alimentada pelos lucros dos barões do café. Esta seria, eu penso, a condição de classe do Modernismo paulista, que nutria pavor distintivo de tudo o que viesse do interior. 

Feitas essas brevíssimas considerações iniciais a respeito do quadro atual da história da Semana de Arte Moderna de 1922, recorremos ao produtor musical, compositor e saxofonista Livio Tragtenberg, cuja publicação intitulada O que se ouviu e o que não se ouviu na Semana de 22 (2020) vai direto ao que nos interessa. De acordo com a leitura que proponho do livro, embora a Semana tenha se transformado num ícone oficial da história do espírito de “brasilidade”, a música consiste em uma brecha latente que de pouco estudada até hoje, muito diz sobre o que se viveu e ainda resta viver desse passado histórico em constante metamorfose. Inescapável nesse campo seria a presença de Heitor Villa-Lobos na Semana paulista, Villa-Lobos, carioca da gema, o “elefante na loja de louças” em 1922 que, em diversas ocasiões afirmara sobre o acontecimento: “Eu só fui fazer um cachê em São Paulo” (Tragtenberg, ME, Episódio #1, 2019). De acordo com Tragtenberg, a história não é exatamente essa, já que logo depois da Semana, o maestro viu abrir-se o abastado mercado de São Paulo e, já na semana posterior, teve agendada uma série de concertos na Sociedade de Cultura Artística, criada ainda na primeira década daquele século para promover e divulgar obras consideradas de elevadíssimo nível técnico, cultural e artístico.

O fato de que Villa-Lobos não apresentou nenhuma produção nova na Semana e de ter dito isso a quem quisesse ouvir reforça uma série de percepções menos evidentes desses capítulos da história cultural do Brasil. Vou sistematizar alguns a partir da bibliografia especializada que venho citando até aqui. 

- Em primeiro lugar, segundo Livio Tragtenberg e o jornalista e crítico musical João Marcos Coelho – em conversa ao vivo realizada pela Revista Comunicação e Memória no ano de 2022 -, ao contrário do que se pensa de forma geral, foi Villa-Lobos quem abriu caminhos para Mário de Andrade e não o contrário. Desde o fim do século XIX, e muitos antes do poeta, o pianista já se alimentara de ideias e sonoridades nordestinas que lhe seriam fundamentais, com a diferença de que Villa-Lobos não apenas teorizava sobre música, mas fazia música. Sobre Mário de Andrade, inclusive, recairá certa responsabilidade pela manutenção do elitismo que caracterizou o Modernismo paulista. Também de acordo com intervenção do historiador Rafael Cardoso em episódio de podcast da Folha de São Paulo sobre Os mitos sobre a Semana de 1922, cem anos depois (11.02.1922), a ideia de “descoberta do Brasil” ou do “Brasil profundo” pelos modernistas é epistemologicamente equivocada, pois, como se pode compreender a partir dos recursos analíticos de que dispomos atualmente, sugere que os múltiplos Brasis simplesmente não existissem antes da chegada desses brilhantes intelectuais. De modo que o percurso de Mário de Andrade pela cultura paraense teria ignorado completamente a própria produção cultural que vigorava em Belém do Pará em nome daquela que o escritor e musicólogo modernista criou para a região. Esse processo – importante notar – não teria ocorrido apenas com Mário de Andrade, mas o escritor teria sido durante bastante tempo persistente nessa abordagem que distingue o universo da música popular e o da música letrada.

- Segunda inferência: existe uma diferença fundamental entre a constituição da música popular - samba - no Rio de Janeiro e a música popular - caipira – em São Paulo, e essa distinção é importante para compreender a Semana de maneira menos simplista. De acordo Livio Tragtenberg (2022), havia um fosso enorme entre a São Paulo da elite paulistana e a São Paulo dos migrantes, dos bairros populares, do bairro do Bixiga, por exemplo. Os participantes e fundadores da Semana de 1922 estavam, na verdade, em busca de uma atualização em relação à cultura europeia a qual tinham acesso, especialmente a francesa. Estavam, nas palavras do produtor musical “de costas para os cortiços”, para as ruas, para toda a cultura anarquista que fervilhava em São Paulo, que já refletiam a hibridez da cidades, basicamente formada por uma população rural, mas iniciando uma experiência metropolitana:

Juó Bananére nunca passaria pela cabeça daqueles rapazes bem nascidos, como sinônimo de modernidade. Na conformação intelectual deles, música popular era coisa rural, de gente iletrada, ligada a um passado colonial, que eles queriam justamente superar. Só que a elite paulistana era extremamente provinciana em relação à cultura europeia, especialmente a francesa. (Tragtenberg, Memória e Comunicação. Live. 2022). 

Já no Rio de Janeiro, então grande centro produtor de cultura, a música popular teria avançado, contaminando o Centro da cidade:

Como o samba chegou ao Rio de Janeiro, segunda uma das vertentes explicativas? Após 1888, as fazendas de café do Vale do Paraíba começaram a se desfazer dos trabalhadores negros, que tiveram que migrar para as grandes cidades. Chegando ao Rio, eles vão para os morros e levam consigo essa cultura rural do jongo e dos maxixes do Vale do Paraíba. Ali se conforma essa zona intermediária entre morro e cidade baixa. [...] Pela própria geografia vai se construindo essa interação mais intensa. Villa-Lobos convida os sambistas todos para gravarem no navio quando Leopold Stokowski vai gravar no Rio! Villa--Lobos já transitava entre a “malandragem”, já era conhecido ali, não estava em um universo separado. (Tragtenberg, Memória e Comunicação. Live. 2019). 

Por essas e outras razões, o que não se ouviu na Semana de 1922, segundo Livio Tragtenberg, foi a música que se praticava quatro quarteirões depois do Anhangabaú: o Bixiga, a Praça da Bandeira. O que se ouviu foi o que se praticava no eixo da elite paulistana cafeeira; música de orientação francesa mediana.

- Terceira inferência: a grande ausência da Semana de Arte de 1922 é, segundo a pesquisa do historiador Rafael Cardoso (2022), a efervescência da música popular que estava evidentemente acontecendo no período. Nesse caso, a ausência do maestro carioca Pixinguinha tem sido notada por diversos estudiosos. 

Retomando a espinha dorsal de nossa discussão e saindo da sistemática brevemente apresentada, vale a pena conferir como o antropólogo e professor de música Rafael José de Menezes Bastos narra a trajetória de Pixinguinha até se tornar primus inter pares da música popular brasileira (Bastos, 2005). Um passo fundamental dessa jornada teria se dado exatamente em 1922, quando Os Batutas, grupo musical dirigido por Pixinguinha e que incluía Donga, entre outros membros importantes do círculo de música popular do Rio de Janeiro, passaram seis meses em Paris, referência central das elites paulistanas que participaram da Semana de Arte Moderna. Segundo Rafael Bastos, apesar de carioca, Pixinguinha tinha uma profunda lealdade em relação à Bahia, pois, como Donga e João da Baiana, era filho de pai carioca e mãe baiana. Isso teria criado as condições para sua inserção no universo do samba. Além disso, Pixinguinha e Villa-Lobos frequentavam ambientes comuns proporcionando a um o acesso à música erudita ocidental e ao outro o contato com o mundo do samba e das disputas entre as vertentes baiana e carioca do samba praticado no Rio de Janeiro.  

Seria legítimo, portanto, perguntar: por que Pixinguinha não estava sequer representado na Semana de Arte paulista de 1922? Abundam respostas complementares que nos ajudam a compreender a Semana como o fato histórico em seu próprio tempo e como memória emblemática de certa perspectiva sobre a cultura popular persistente ainda hoje. Christian Ribeiro, colunista do portal Geledés.org (24.03.2021), postula mesmo que o Brasil se insere à modernidade como prática cultural europeia pela construção do samba moderno de Pixinguinha, em especial a partir da mencionada excursão com os Batutas pela França, patrocinada por Arnaldo Guinle, após o conhecerem durante temporada de sucesso no Cabaré Assírio, no subsolo do teatro municipal do Rio de Janeiro, apesar das críticas negativas de cunho racista dos cadernos culturais da época. 

A viagem d’Os Batutas a Paris também é analisada desse ponto de vista por Rafael Bastos, que a interpreta como um ponto de viragem para a consagração de Pixinguinha como o símbolo da música popular brasileira, ao tempo em que sua música se tornava compatível com o jazz, nova linguagem musical do sistema mundial (Bastos, 2005). Isso porque o fato de que Os Batutas eram em sua maioria negros e de que o tipo de música que faziam continha influências centrais do mundo periférico, urbano, popular que se constituía nos grandes centros no começo do século XX, eram, por si só, motivos para críticas: “identificá-los à genuína musicalidade nacional, significava para muitos uma desqualificação em termos de uma pretensa universalidade equacionada com o cânone da música clássico-romântica ocidental e um veredicto de provincianismo”, afirma o antropólogo. 

Oito Batutas, 1923. Imagem de autor desconhecido sob a guarda de Afro-Brazilian musicians in the early twentieth century. / Fonte da imagem: Reprodução da internet

Pixinguinha não estava representado na Semana, entre outros motivos, porque a Semana é um acontecimento histórico não apenas de ruptura, como seus fundadores talvez pretendessem, mas de muitas permanências e descontinuidades que, de tempos em tempos, voltam a ser localizadas naquele instante. Nesse ponto, Ruy Castro, cuja coluna inicia nosso texto, é incisivo: o Rio de Janeiro já era moderno bem antes de 1922:

Se em 1922 a Semana de Arte Moderna veio para nos ensinar a ser modernos, o que estavam fazendo no Rio naquele ano pessoas como Agrippino Grieco, Álvaro Moreyra, Gilka Machado, Lima Barreto, Orestes Barbosa, Edgar Roquette-Pinto, Théo-Filho, Bertha Lutz, J. Carlos, Ismael Nery, Pixinguinha, Sinhô, Elsie Houston e muitos outros, todos ativos e produtivos, além de João do Rio, que havia morrido em 1921, e de Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e Villa-Lobos, que por acaso “emprestamos” à Semana? Todos já eram “modernos”, no sentido de que faziam coisas que ninguém ainda tinha feito no Brasil. E, se fôssemos estender esse elenco aos que chegariam nos anos seguintes - como a Semana e 1922 costuma fazer – poderíamos acrescentar Adhemar Gonzaga, Aracy Cortes, Bidu Sayão, Carmen Miranda, Ismael Silva, Mario Reis, Francisco Alves, Oswaldo Goeldi etc. Nenhum deles era “modernista” - ou seja, trabalhava com aqueles cacoetes verbais, nem escrevia “milhor” em vez de “melhor” ou “fumo” em vez de “fomos”. (Castro, Jornal da Unicamp, 10.02.2022). 

Não se trata, por isso, de procurar na Semana das artes eruditas do modernismo paulistano de 1922 o que ela não era ou o que lhe faltava de uma perspectiva evidentemente presentista, mas de evocar um debate historiográfico amplo, que conta hoje com historiadores(as), jornalistas, músicos(as), cientistas políticos(as), críticos(as) literários(as) e demais pesquisadores(as) de diversas áreas cuja percepção da História ultrapassa a descrição dos acontecimentos e suas ressignificações, propondo, muitas vezes, a ampliação da consciência histórica possível até o momento em que estamos. Do ponto de vista da história da música na Semana de 22, pode-se dizer que há universos pouco explorados pois percebidos através de lentes mais contemporâneas ligadas às lutas por emancipação, decolonialidade, epistemologias periféricas, movimentos sociais identitários, ou como quer que se queira chamar a expansão de nossos horizontes de sensibilidade histórica. 



Nashla Dahás é historiadora, doutora pela UFRJ com pós-doutorado em História do tempo presente pela UDESC. Atua como professora colaboradora da Uenp (PR), como coeditora do site de divulgação História da Ditadura Novas Perspectivas, colaboradora do portal A Música de História Pública da Música no Brasil e revisora da Editora Raiz Educação-RJ.


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