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O multifacetado “Noturno”, novo disco de Maria Bethânia

quinta, 19 de agosto de 2021

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Mais que uma cantora, Maria Bethânia ergue-se como uma entidade da MPB. Situa-se à parte de movimentos, mesmo tendo o mano Caetano Veloso como um dos artífices do fulcral tropicalismo, ao qual ela nunca aderiu, embora tenha integrado o quarteto Doces Bárbaros, ao lado dele, Gilberto Gil e Gal Costa, em 1976. Mesmo sem ser compositora seus discos são essencialmente autorais, já que cada música passa por seu crivo estético/ético rigoroso e projeta significados, muitas vezes fora dos limites do propósito original. Seu novo disco, gravado entre setembro e outubro de 2020, e maio deste ano, em plena treva da pandemia interminável, “Noturno” (Biscoito Fino), como assevera o poeta e ensaísta Eucanãa Ferraz, em substancioso texto de apresentação, “não significa ausência de luz. Refere-se antes, à noite – quando, não raro as luzes se acendem”. Sob direção musical e arranjos do modernista baiano Letieres Leite e produção musical do baixista Jorge Helder, ela abre o cortejo multifacetado pinçando uma relíquia, “Bar da noite” (Bidu Reis / Haroldo Barbosa), de 1953, lançada pela precursora voz de contralto confidente de Nora Ney, uma pré bossa novista militante do samba canção. Escoltada apenas pelos contornos do piano de Zé Manoel, ela singra a letra (“quantos estão pelas mesas/ bebendo tristezas/ querendo ocultar/ o que se afoga no copo/ renasce na alma/ desponta no olhar”), típica da disseminada dor de cotovelo/fossa da época. A vida noturna carioca de então, era personagem palpável do cenário poético, ainda sorvido por Bethânia quando desembarcou da Bahia, em 1965.

A esse respeito, o samba sombreado “De onde eu vim”, do paulista versado em baianidade, Paulo Dafilin, anuncia: “Quando eu sai da Bahia/ pedi a benção pra Nosso Senhor do Bonfim/ pedi pra ele me ajudar/ me proteger, me iluminar”. Parceria dele com o local Roque Ferreira, “Lapa santa” mergulha na religiosidade ecumênica da cantora, de voz a um tempo rascante e cálida, emoldurada por cordas diáfanas. “Tanto romeiro/ tanta romaria/ tanto Jesus, tanta Maria/ tanto devoto, tanta devoção/ tanta reza, tanta procissão”, enumera a letra. O mesmo Roque, sem parceria, oferece a esperançosa “Música música” (“nascem novamente no meu peito as ilusões/ como flores novas num jardim/ corre novamente/ um rio dentro de mim”), em que Bethânia é assessorada apenas pelo violão 7 cordas de João Camareiro, outro expoente da nova geração instrumental brasileira, como Zé Manoel. Também recém revelado, Tim Bernardes, do trio O Terno, filho do iconoclasta compositor Mauricio Pereira (Os Mulheres Negras) surpreende com um sambolero, de refrão aparentado ao icônico “Vingança”, do sentimentalista Lupicínio Rodrigues: “Prudência/ não me venha falar em prudência/ as paixões que me descontrolaram/ são as que fizeram eu ser como eu sou”.

Foto: Jorge Bispo

Já o sobrinho Zeca (filho de Caetano) Veloso articula uma canção exilada, “O sopro do fole” (“eu sou passarinho sem casa/ mexendo a asa eu vivo no mundo/ mas não sou daqui”), encordoada apenas pelo violão de Pedro Franco, com adornos suaves do acordeon de Toninho Ferragutti. Do universo flamenco, Bethânia traz a desconsolada “Vidalita” da cantautora catalã Mayte Martin, que emparelha com “A flor encarnada”(“o amor não gosta mais de mim/ nunca mais vi seu clarão”), de Adriana Calcanhotto. Cada vez mais relevante também como compositora, a gaúcha radicada no Rio, ainda comove com a litania narrativa “Dois de junho”, cevada pela guitarra de Pedro Sá. Recapitula a absurda morte do garoto negro Miguel, filho de uma empregada no Recife, cuja patroa negligenciou sua guarda, E, como Ícaro, ele caiu “35 metros de vôo/ do nono andar / 59 segundos”.

Alternando trevas e cintilações ao longo de “Noturno”, inesperadamente, Bethânia desemboca num samba reluzente de superação, “Cria da comunidade” (“essa guerreira lá do morro da Pedreira/ pra fazer a faculdade se formou”), de Serginho Meriti e Xande de Pilares que dedilha o cavaquinho e divide o vocal com ela. O maestro Letieres Leite dá um show no alinhavo da percussão com as cordas. Do paraibano Chico Cesar, fiel fornecedor da cantora, é outra centelha, “Luminosidade” (“na sombra de cada passo/ na dança de todo tropeço/ é tudo o que hoje peço”). A canção prepara o clima para o último ato, apenas declamado, “Uma pequenina luz”, do poeta luso Jorge de Sena. “Bruxuleante e muda/ como a exatidão, como a firmeza/ como a justiça/ brilha/ Não na distância/ Aqui no meio de nós/ brilha”. Oxalá, Bethânia!

Tárik de Souza

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