Colunista Convidado

O canto plural de Lúcia Menezes

quarta, 14 de abril de 2021

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Numa época em que a MPB tornou-se exilada em seu próprio país, pela onipresença da massificação pop rasteira, é surpreendente a trajetória da cantora Lúcia Menezes, cearense radicada no Rio. Ela desembarca seu sétimo disco solo, “Até que alguém me faça coro pra cantar na rua” (Atração), impávida em sua trajetória de intérprete de um repertório que estabelece pontes entre seu nordeste de origem e a residência carioca, desde 2002. E ainda, entre o passado de ídolos como Carmen Miranda e a contemporânea Adriana Calcanhotto, sempre com escolhas criteriosas. Tal resiliência e solidez estética vem de uma ligação primordial com a música.

Aos quatro anos de idade, Lúcia Menezes ganhou o concurso de Melhor Voz Infantil da Radiadora do Cafita, de Itapipoca, uma rádio comunitária de sua cidade natal, no Ceará. Cantou no coral da Universidade Federal do Ceará, e em 1988, foi premiada no Festival de Camocim, com a concorrente “Se a Amazônia falasse”, de Pedro Magalhães e Maria Lúcia. Em seu primeiro LP, “Divina comédia humana”, de 1991, ela dedicou meia face a composições de Belchior, e o outro lado a releituras do repertório do também conterrâneo Fagner. Coube a Lucia o feito histórico de cantar pela primeira vez em público uma composição de Belchior, aluno de um de seus irmãos e colega de outro na Faculdade de Medicina. Ela tinha apenas 12 anos, quando apresentou “Espacial” no IV Festival da Música Popular do Ceará, em 1968. Homenageou Carmen Miranda num show em 1996, ano em que lançou o CD “Lucinha Menezes ao vivo”, ambos discos de repercussão apenas regional. Em 2002, fez o show de abertura da cantora Beth Carvalho, no Centro Dragão do Mar, em Fortaleza. Mas sua estreia nacional foi em 2005, num disco que levou seu nome, com arranjos da dupla que sempre a acompanharia, Cristóvão Bastos e João Lyra – um pianista carioca e um violonista alagoano, o diálogo sonoro das duas regiões musicais que a balizaram.

Seu “Pintando e bordando”, de 2008, valeu a ela indicação no Premio da MPB, como “melhor cantora regional”, um nicho pouco abrangente para sua elasticidade estética. “Lucinha”, em 2012, atesta isso, nas escalações nada óbvias de uma pérola recôndita do eterno rei do baião, Luiz Gonzaga (“O torrado”, com Zé Dantas), do tropicalista impenitente Tom Zé (“O amor é velho e menina”), do sambista sincopado Geraldo Pereira (“Pisei num despacho”, com Elpídio Vianna) e do iconoclasta alado Sérgio Sampaio (“Que loucura”). Em 2017, “Lúcia” reuniu duos com os ilustres irmãos cariocas Chico Buarque (“Desencontro”) e Miúcha (“Sonho de marinheiro”), o sambalanço "Recado” (Djalma Ferreira/ Luis Antonio), ao lado de reminiscências nordestinas, em composições de Chico Anysio (“A fia de Chico Brito”), Ednardo (“Enquanto engomo a calça”, com Climério) Vital Farias (“Sete cantigas de voar”) e, de novo, Luiz Gonzaga (“A letra I", outra com Zé Dantas).

Foto: Leo Aversa

Mais uma vez sob acurados arranjos da dupla Lyra e Bastos, “Até que alguém me faça coro pra cantar na rua” extrai seu título da esquecida “Um chorinho”, de um Chico Buarque dos primórdios, de 1967. A melancolia da letra combina com os tempos sombrios atuais: “ai quem me dera ter um choro de alto porte/ pra cantar com a voz bem forte e anunciar a luz do dia”. Fã da exuberância precursora de Carmen Miranda, Lúcia repesca do cardápio da Pequena Notável o choro espevitado “Tico tico no fubá” (com letra original do ex-affair da cantora, Aloysio de Oliveira, de 1944), que ela picota em três velocidades, fazendo baixar uma Ademilde Fonseca na faixa. E mais, o farpado Assis Valente de “E bateu-se a chapa”, de 1935 (“a minha cabeleira ficou despenteada/ só pra esconder tua camisa de malandro toda esburacada”), turbinado por flauta.

Num pólo oposto, fustiga o gaiato xaxado, movido a sanfona, zabumba, pandeiro, triângulo e agogô, “Forró do beliscão” (João do Vale/ Ary Monteiro/ Leôncio), sucesso de Ivon Cury, de 1960: “beliscar não é pecado/ diz o padre capelão”. Outras facetas agrestes saltam de “Quando a égua esfrega o bode”, cerzida por rabeca (“um violino caboclo/ esculpido no pau oco/ cordas de tripa caprina/ seu arco é feito de crina”) e “Caatinga seca”, ambas do filho da cantora, Eduardo Menezes Macedo, este um xote lamento dramatizado por sanfona: “Meus olhos de verão já não tem água pra chorar/  são sede e solidão, tapera, noite sem luar”. Outro xote, “Pra incendiar seu coração", de Moraes Moreira e Patinhas, do grupo Bendengó (nome artístico do marqueteiro político João Santana, envolvido na Operação Lava Jato) investe na metáfora amorosa: “uma lágrima na bacia, era teu nome que ardia/ mas não chegava a brilhar”. Os dois arranjadores e regentes também fornecem matéria prima para o disco. A lírica “Lua de esperar” (Cristóvão Bastos/ Roberto Didio) e a semovente “Ciranda do beijo roubado” (João Lyra/ Zeh Rocha), turbinada por piston. No turbilhão de ritmos do roteiro não falta coco (“Samambaia trepadeira”, de Gervásio Horta), marcha rancho (“Rancho das borboletas”, de Paulo Cesar Pinheiro e Miguel Rabello) e um samba gingado da gaúcha Adriana Calcanhotto, de impecável suingue e letra aguda: “Você disse não lembrar/ do que eu não sei esquecer”.

Tárik de Souza

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