A música de

O Canto Latino-Americano De Geraldo Vandré

Por Luís Felipe Machado de Genaro

terça, 02 de abril de 2024

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Quando nos encontramos em conjunturas políticas tensionadas, períodos de polarização e acirramentos eleitorais, somos impelidos a caminhar e protestar nas praças públicas brasileiras, espaços onde se arregimentam partidos progressistas, sindicatos de trabalhadores, grupos de professores, estudantes e toda a sorte de cidadãos. 

Nesses dias, é comum marcharmos ao som de canções ditas “de protesto” – uma das mais conhecidas do cancioneiro popular, “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores”, do compositor e artista paraibano Geraldo Vandré, é sempre tocada. 

As “flores vencendo o canhão” ressoam como se, na realidade, apesar de todos os pesares e transformações, ainda estivéssemos correndo algum tipo de “perigo”, risco ou hecatombe política e social. Como se o passado autoritário da ditadura militar brasileira que censurou e perseguiu o compositor nordestino, ainda não tivesse passado. 

Recuperar canções engajadas das décadas de 1960 e 1970 no tempo presente não é uma singularidade brasileira. No Chile, durante as manifestações ocorridas na capital Santiago, em 2019, manifestantes recuperaram uma das figuras mais proeminentes da canção popular do país, Victor Jara. O compositor foi preso, torturado e fuzilado três dias depois do golpe militar de 1973. A canção “El Derecho de Vivir en Paz” ecoou nos protestos recentes entre as avenidas e praças, em meio a bombas de efeito moral e tiros de bala de borracha. 

Vandré, assim como Jara, fez parte de um “espírito de época” que enraizou-se no continente latino-americano durante a segunda metade do século XX, o “espírito latino-americanista”, numa conjuntura em que diferentes movimentos de renovação sonora enlaçaram-se na heterogênea e diversa Nueva Canción Latino-Americana. 

Neste período, a canção popular dos mais distintos países da região viu emergir o que José Miguel Wisnik descreveu como “fator popular”, quando os sujeitos das massas trabalhadoras protagonizaram composições musicais que tinham como intuito, entre tantos outros que a música se propõe, o de conscientizar, dialogar, e mesmo “agitar” os seus ouvintes, tornando certas canções uma “munição crítica” contra o autoritarismo das ditaduras militares que grassavam no continente.

Um nordestino latino-americano

Nascido em João Pessoa, no ano de 1935, Geraldo Vandré foi personagem de um enredo histórico complexo, uma realidade cruenta para aqueles que, absortos perante o que se passava nessas terras, não se deixaram emudecer. Em muitos momentos, transitou entre as categorias de vilão e herói dos ouvintes de esquerda e também de receptores de direita. Compositor e artista, também foi servidor público federal (COFAP), formado no Rio de Janeiro no conturbado ano de 1961. 

O seu afastamento dos palcos e gravadoras não pode ser considerado, hoje, como mero desdém pelos acontecimentos que sucederam na década de 1970, mas resultado de escolhas pessoais advindas de pressões e opressões até o presente, difíceis de serem totalmente compreendidas. 

À época, o Brasil viveu o auge do que se considerava “canção de protesto”, tornando os representantes da Música Popular Brasileira inimigos íntimos da ditadura deflagrada em 1964. Mais que o “protesto” – um grito rouco dos desesperados – as canções compostas e interpretadas por Nara Leão, Chico Buarque, Milton Nascimento, Sergio Ricardo, Carlos Lyra e o próprio Vandré, desnudavam uma realidade nebulosa e obscura, entre lirismos, poesia, rítmicas e sonoridades advindas da bossa nova e do samba em explícita conexão com os demais países da América Latina. 

Partícipe do famoso Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes e dos festivais da canção popular idealizados pela TV Record – disputando com nomes que se consolidariam como ícones da MPB – carecemos inserir esse personagem em um cenário ampliado: para além do Brasil, um continente marcado por processos de violências, injustiças e desigualdades históricas, enfrentando, naquele momento, juntas militares, golpes de Estado e a ingerência estrangeira de maneira feroz: um ciclo de ditaduras romperia o tecido social e esvaziaria o espaço público de maneira igualmente violenta.

Os protagonistas nas canções de Vandré

Lembremos que no último álbum de Vandré, “Das Terras de Benvirá”, de 1973, o “espírito latino-americanista” que influenciou tantos artistas e compositores de sua geração encontraria o seu apogeu. Relatemos que são muitos os elementos e categorias que evidenciam a sua aproximação com as canções engajadas na América Latina – residindo no Chile, neste período. 

Entre as décadas de 1960 e 1970, artistas como Daniel Viglietti, no Uruguai, Mercedes Sosa, na Argentina, Amparo Ochoa, no México, Ali Primera, na Venezuela, Ángel e Isabel Parra – os filhos de Violeta Parra – no Chile, eram algumas das “raízes regionais” que davam sustentação aos movimentos musicais engajados. 

Esses artistas compunham e cantavam as agruras, sofrimentos e revezes dos povos latino-americanos frente às classes dominantes politicamente estruturadas, fazendo da região latino-americana um “moinho de gastar gentes”, como explicitou Darcy Ribeiro em ensaio famoso de 1995. 

As canções escancaravam as relações de poder e as desigualdades sociais, a fome, a miséria e o analfabetismo, o cotidiano de arbítrio e exceção dos regimes autoritários, abordando temáticas como a escravização, a colonização e os genocídios que ocorreram, e ainda estariam ocorrendo, nos rincões da América Latina. 

Quando no álbum de 1973, Vandré compõe a faixa “De América”, o som e o sentido desse “espírito latino-americanista” aproxima o compositor dos cantautores engajados mais proeminentes, que não apenas cantavam e tocavam, mas inseriam o sujeito latino-americano na cultura e nas artes, tornando-os protagonistas do processo histórico. 

A inserção dos povos originários, vivendo há muito sob o manto da vigilância e do extermínio, e a perspectiva utópica da unidade continental, encontrariam espaço nos versos dessa canção. Foram muitos os “quechuas, tamoios, mapuches, tabajaras, guaranis incas, astecas e maias, aimarás e tupis” que tornaram-se “alvo” do colonialismo na região – vivendo sob o medo e a exploração constantes.

Da mesma forma, os trabalhadores do campo teriam sido protagonistas de outras canções de Vandré, como “Arueira” e “O Plantador”, composições do álbum “Canto Geral”, de 1968. Em um país marcado pela concentração de terras por minorias latifundiárias e a violência brutal nas relações de trabalho nos interiores – assim como em muitas outras regiões do continente – Vandré colocaria o camponês na ponta de lança de um provável processo de transformação, algo que ocorreria com o advento de uma profunda reforma agrária. A canção desnuda a relação injusta e brutal imposta ao “plantador”: “O dono quer ver /A terra plantada/ Diz de mim/ Que vou pela grande estrada/ Deixem-no morrer/ Não lhe dêem água/ Que ele é preguiçoso/ E não planta nada”

Os elementos de incredulidade e inconformismo vividos no presente das suas canções estão diluídos nas faixas de sua obra, como “De Serra, de Terra e de Mar”, também de 1968, e “Hora de Lutar”, do álbum de 1965. 

Na primeira, o compositor esclarece a necessidade de união de todas as gentes numa vontade de “se abraçar” mesmo frente ao pouco que tinham – sempre apontando para o que poderiam ter. Nesse caso, Vandré evidencia a empatia que nutria por aqueles sujeitos que considerava compatriotas seus, irmãos de um mesmo país e continente. 

Na outra, recuperando elementos e o simbolismo da capoeira, esclarece ser “tempo de agir”, mover-se ativamente para uma mudança radical da realidade, transformação que já era a hora, tendo chegado o “seu tempo”. 

As dores e silêncios de Vandré

As composições de Geraldo Vandré, não apenas na palavra-cantada, mas nos ritmos e instrumentos, como a introdução de cantos melancólicos graves e o som pesado da viola, o colocariam na mira – e na ira! – dos militares e de setores conservadores.

Como a documentação dos centros de segurança e repressão das ditaduras evidenciam, diversos artistas e compositores viveram a experiência amarga do exílio, censura e prisões arbitrárias, como Mercedes Sosa, Chico, Gil e Caetano; outros, já detidos, teriam sido torturados, como fora o caso de Victor Jara e Daniel Viglietti. Como Vandré, eles cantavam e compunham a perspectiva de “outro mundo” possível, novo horizonte, uma mudança em prol das massas exploradas e ofendidas. 

Naquela conjuntura, em terras tropicais, microfone e violão haviam se tornado armas potentes como fuzis e granadas. Censurado e exilado após o Ato Institucional Nº5, já que insustentável teria ficado a sua permanência no país, o compositor paraibano consegue fugir, retornando ao Brasil apenas em 1973.

Vandré, em uma rara entrevista concedida à Globo News, em 2012, “quebra o silêncio” e fala sobre os acontecimentos que envolveram as suas composições mais conhecidas. A percepção que o telespectador ficou do compositor é de um homem de poucas palavras, objetivo, um tanto confuso e crítico a respeito da relação entre artistas e a mídia, ou, em suas palavras, da “massificação” cultural.

O artista diz ter ficado “fora dos acontecimentos”, vivendo em “um Brasil que não está mais aqui”, quando “não havia esse processo de massificação”. Critica a denominação “protesto” na sua música, dizendo que “protesto é coisa de quem não tem poder”.  

Interessante notarmos que, durante a entrevista, Vandré utiliza diversas vezes a palavra “subdesenvolvimento” para classificar o Brasil do momento em que está sendo entrevistado – já no século XXI, quando o conceito perdeu significativa relevância no universo acadêmico e mesmo da política – comentando que as Forças Armadas entenderam mais as suas canções que a sociedade civil à época.

Daquilo que apreendemos, permanece a beleza da performance e do compromisso social e político do canto latino-americano de Geraldo Vandré, recuperando o “espírito de época” que transitava entre os artistas e compositores engajados daquele momento, na tentativa de ampliar horizontes verdadeiramente populares e justos. 

“Estou exilado ainda hoje, eu não voltei”, conclui o compositor na entrevista. Apesar de todos os pesares, dores e encantos, Vandré ainda permanece um enigma, diamante soterrado. 

Referências:

RIBEIRO, Darcy. América Latina: a Pátria Grande. São Paulo: Ed. Global, 2017.

SQUEFF, Enio; WISNIK, José. Música: o nacional e o popular na música brasileira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1983. 

GLOBO NEWS. Geraldo Vandré quebra o silêncio após 37 anos e fala da ditadura. Youtube, 19 nov. 2012.   

Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=OpUcFX2qVFA>. Acesso em: 20 mar. 2024.

Luís Felipe Machado de Genaro é mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutorando em História no Programa de Pós-Graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pesquisa e publica sobre a história do tempo presente, os debates latino-americanos recentes e a história cultural da canção popular na América Latina. E-mail: lmachadodegenaro@gmail.com. 

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